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ISSN 1514-3465

 

De Irajá para o mundo: a jornada da brasileira multicampeã Fabi Alvim

From Irajá to the World: the Journey of the Brazilian Multi-Champion Fabi Alvim

De Irajá para el mundo: la trayectoria de la multicampeona brasileña Fabi Alvim

 

Erik Giuseppe Barbosa Pereira*
egiuseppe@eefd.ufrj.br
Marcelo Luís Ribeiro Silva Tavares**
marcelo.tavares@estudante.ufjf.br

Victoria Sanches Cunha Leite de Morais+
vicsclm@gmail.com

Rafael Marques Garcia++
rafaelgarcia@eefd.ufrj.br

 

*Mestre em Ciência da Motricidade Humana pela UCB- RJ

Doutor em Ciências do Exercício e do Esporte da UERJ

Professor associado UFRJ, líder do GECOS

Pesquisador "Jovem Cientista do Nosso Estado" - FAPERJ
**Jornalista e Educador Físico

Mestre em Educação Física e Doutor em Urbanismo

Bolsista de Pós-doutorado Júnior

do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

no Programa de Pós-graduação em Comunicação

da Universidade Federal de Juiz de Fora
*Mestre em Educação Física pela UFRJ

Mestranda em Dança pela UFRJ

Licenciada e Bacharel em Educação Física
**Professor adjunto da Escola de Educação Física e Desportos

da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EEFD/UFRJ)

Licenciado, Bacharel, Mestre e Doutor em Educação Física pela UFRJ

Associado e membro do Comitê Científico do GTT Gênero

do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE)

(Brasil)

Recepción: 09/06/2024 - Aceptación: 13/08/2024

1ª Revisión: 07/08/2024 - 2ª Revisión: 13/08/2024

 

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https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/deed.pt

Cita sugerida: Pereira, E.G.B., Tavares, M.L.R.S., Morais, V.S.C.L. de, e Garcia, R.M. (2024). De Irajá para o mundo: a jornada da brasileira multicampeã Fabi Alvim. Lecturas: Educación Física y Deportes, 29(316), 49-65. https://doi.org/10.46642/efd.v29i316.7713

 

Resumo

    No voleibol brasileiro, as mulheres têm tido muitas conquistas no âmbito profissional. O objetivo deste artigo foi descrever a jornada pessoal e esportiva de Fabi Alvim e sua importância no cenário esportivo feminino brasileiro. A metodologia se caracteriza pela realização de entrevista, de uma revisão de literatura e do estudo de reportagens já realizadas com a atleta. Verificou-se que a trajetória foi permeada de desafios que foram importantes para o seu crescimento não só como profissional do esporte, mas como ser humano interessado em novos aprendizados. Conclui-se que sua carreira está em curso e em ascensão como comentarista esportiva, mãe e cidadã.

    Unitermos: Mulheres. Voleibol. Brasil.

 

Abstract

    In Brazilian volleyball, women have had many achievements at the professional level. The objective of this article was to describe Fabi Alvim's personal and sports journey and her importance in the Brazilian women's sports scenario. The methodology is characterized by an interview, a literature review, and the study of reports already made with the athlete. It was verified that her trajectory was permeated with challenges that were important for her growth, not only as a sports professional, but as a human being interested in new learning. It is concluded that her career is in progress and in an ascension as a sports commentator, mother, and citizen.

    Keywords: Women. Volleyball. Brazil.

 

Resumen

    En el voleibol brasileño, las mujeres han tenido muchos logros profesionales. El objetivo de este artículo fue describir el recorrido personal y deportivo de Fabi Alvim y su importancia en el panorama deportivo femenino brasileño. La metodología se caracteriza por la realización de una entrevista, una revisión bibliográfica y el estudio de informes ya realizados con la deportista. Se constató que la trayectoria estuvo permeada de desafíos que fueron importantes para su crecimiento no sólo como profesional del deporte, sino como ser humano interesado en nuevos aprendizajes. De ello se deduce que su carrera continúa y va en ascenso como comentarista deportiva, madre y ciudadana.

    Palabras clave: Mujeres. Voleibol. Brasil.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 29, Núm. 316, Sep. (2024)


 

Introdução 

 

    Com um papel cada vez mais central na sociedade, o esporte é compreendido como prática amistosa, que se estende para além do lazer. “O esporte, tal como outros fenômenos culturais humanos, está circunscrito em seu tempo histórico, e não podemos compreendê-lo fora dele” (Malina, 2009, p. 27-28). Profissionalizado, muitos esportes têm movimentado divisas e elevado os/as inúmeros/as atletas ao status de celebridade. Majoritariamente, esses atletas são homens (Firmino, e Ventura, 2015). Às mulheres, têm cabido um conjunto enorme de desafios de superação para o reconhecimento em termos próximos ao que acontece com os homens, conforme afirma Knijnik (2003, p. 25): a participação de mulheres no esporte “foi mais uma das diversas lutas pela emancipação feminina que tiveram início ao final do século XIX e começo do século XX”.

 

Figura 1. Ex-jogadora, de voleibol brasileira, bicampeã olímpica 

em Pequim 2008 e Londres 2012 entre outras conquistas

Figura 1. Ex-jogadora, de voleibol brasileira, bicampeã olímpica em Pequim 2008 e Londres 2012 entre outras conquistas

Fonte: Fabi Alvim, perfil oficial. https://x.com/fabialvim14

 

    No voleibol, esporte tido como segundo em preferência no Brasil e quarto ou quinto no mundo (Marques Junior, 2016), percebe-se que as jogadoras da modalidade no país têm, desde os anos 1980, tido importantes conquistas e avanços no reconhecimento de suas práticas profissionais (Tavares, 2015; 2016). O crescimento na popularidade do voleibol se traduziu em campeonatos mais organizados, com salários mais equilibrados e em conquistas e reconhecimento mundial, tanto nas areias quanto nas quadras.

 

    Neste artigo, o foco é a trajetória da ex-atleta Fabiana Alvim, conhecida e tratada como Fabi e/ou até pelo apelido carinhoso de Fabizinha. Apontada como uma das melhores jogadoras de todos os tempos na sua posição e especialidade – a de líbero, a multicampeã Fabi relembra aspectos importantes da sua participação no esporte, desde jogos emblemáticos, personagens que a inspiraram, sua migração profissional para comentarista esportiva, após o encerramento da carreira de atleta e até suas construções como pessoa singular e público.

 

    Logo, o objetivo central deste artigo foi descrever a jornada pessoal e esportiva de Fabi Alvim e sua importância no cenário esportivo feminino brasileiro. Para nortear nosso texto, foi necessário perguntar: como foi desenhada a trajetória de Fabi e sua representatividade no universo do esporte feminino?

 

    Por fim, nas considerações finais, retomamos algumas ideias que se tornam valiosas para discussão em tempos atuais: a afirmação da mulher-atleta como um ser integral que enfrenta muitos desafios para se destacar no esporte profissional (Goellner, 2005). Os resultados obtidos pela ex-atleta da seleção, sua continuidade profissional como comentarista esportiva, mãe e cidadã dão a dimensão de como Fabi compreende a sua própria trajetória.

 

Metodologia 

 

    Apoiado em pesquisas que primam pela abordagem qualitativa, esse estudo se utiliza da entrevista semiestruturada como recurso metodológico principal para ampliar as análises de um entrevistado (Richardson, 2008). Embora não se caracterize como uma metodologia apoiada nos pressupostos da história oral temática, com todo seu aparato e rigores necessários (Meihy, 2005; Meihy y Seawright, 2020), procuramos correlacionar a entrevista realizada com outros documentos que ampliem os assuntos abordados, inclusive, trajetórias de outras atletas de voleibol.

 

    A história oral temática é, portanto, uma inspiração para tratar as respostas da nossa entrevistada como uma expressão autêntica da voz de uma atleta que muito tem a colaborar para a difusão do esporte, sobretudo praticado por mulheres, além de procurar criar uma aproximação com os leitores do artigo, uma vez que “Entrevista é trânsito no mundo do outro: oportunidade de incursão em campo diverso, plural e experencial [...] construção mnêmica que envolva intersubjetividade e experiência compartilhada”. (Meihy, e Seawright, 2020, p. 113-114)

 

    Assim, com base no uso de entrevistas com personagens-chave da história do voleibol feminino brasileiro, alguns cuidados éticos foram adotados para as principais ações desse texto, a partir de outros resultados já publicados, tais como os de Tavares, e Pereira (2019, 2020), Tavares, Morais, e Pereira (2021) e Tavares, Pedrosa, e Pereira (2021). O convite foi feito à entrevistada por meio da rede social Whatsapp que, prontamente, foi acolhido de forma amistosa. A conversa foi realizada de forma remota, ocorrendo em 14 de outubro de 2021 com duração de 01 hora 30 minutos, aproximadamente. Esse encontro foi uma iniciativa do coordenador e professor da disciplina “Fundamentos do Voleibol” da Escola de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Rio de Janeiro e foi aberta a todo a comunidade, tanto interna quanto externa à instituição. No início da entrevista, Fabi Alvim, gentilmente, declarou que a entrevista poderia ser gravada, transcrita e, em caso de fins acadêmicos e científico, autorizou a sua publicação. Ressaltamos que após a finalização desse texto, a protagonista teve acesso ao manuscrito para rever e retificar informações inconsistentes.

 

    O roteiro1 foi seguido, com vinte perguntas feitas à atleta sobre temas organizados em três blocos principais: inserção no esporte, características, desafios e aprendizados de sua atuação e, ainda, considerações sobre seus sonhos, aspirações e realizações. Participaram da entrevista o professor proponente e a comunidade acadêmica da universidade. Em um momento final, os participantes foram estimulados, pelo professor, a fazerem perguntas, tendo duas manifestações, com questões sobre o jogo contra a Rússia nos Jogos Olímpicos de Londres (2012) e como foi ser treinada pelos técnicos Bernardinho e José Roberto Guimarães.

 

    Sublinhamos que a entrevista foi transcrita pelo software gratuito “Pinpoint” para uma primeira transcrição e foram feitas mais duas revisões até se chegar ao material editado e utilizado para o artigo, destacando-se as falas da entrevistada sempre por aspas. Durante as análises, seguimos o roteiro proposto por Bardin (2011) e reagrupamos as falas a partir de assuntos comuns e mais significativos para atingir o objetivo do estudo, passando pela pré-análise de todo material, codificação e interpretações referenciais. Sugeriu-se, assim, novas ideias sobre o tema da trajetória de atletas no voleibol.

 

    Para melhor compreensão da síntese da entrevista realizada com Fabi, este artigo foi dividido em quatro partes: (1) “Tempos de descobertas: o aquecimento”, que aborda os desafios da entrevistada para ingressar no esporte; (2) “Preparação intensa: o treinamento”, que recupera as condições para se profissionalizar e se especializar no voleibol; (3) “Concentração total: o jogo”, quando se destaca aprendizados memoráveis ao longo de jogos-chave que a entrevistada participou e (4) “Vida integral: para além do pós-jogo”, quando um balanço geral da carreira é feito através do destaque a decisões fundamentais que foram tomadas por Fabi.

 

Resultados e discussão 

 

Tempos de descoberta 

 

    Nascida e criada em Irajá, subúrbio do Rio de Janeiro, Fabi faz questão de afirmar que escolheu o vôlei porque “brincava muito na rua” e se espelhava em ídolos do esporte, como a geração masculina de voleibol de 1992, que conquistou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Barcelona e que segundo ela “teve um papel fundamental” na sua “escolha pelo vôlei”. Esse é um aspecto bastante comum para muitos atletas. O começo da carreira da, também, ex-jogadora de vôlei, Ana Moser, foi semelhante, uma vez que também começou cedo em vários esportes e “fazia tudo o que era brincadeira de rua”. (Moser, 2003, p. 58)

 

    Apesar de medir 1,67 metros, Fabi jogava na posição de ponteira e sabia que não teria futuro no voleibol: “eu estava no último ano do juvenil e por mais que eu achasse que desse, não daria para jogar profissionalmente”, uma vez que conforme ela mesma afirma “com esse tamanho aqui era pouco provável”. Então, quando completou 18 anos (1997), foi oficializada a posição de líbero e apesar de esta função não atacar, não bloquear, não sacar e não fazer ponto à época, surgia uma possibilidade de jogar profissionalmente. Por essa razão, a atleta afirma que foi o vôlei que “acabou lhe escolhendo”.

 

    Sobre a sua origem, Fabi destacou em entrevista ao portal Hypeness que seu pai renunciou a um convívio diário para poder trabalhar como taxista e dar uma vida melhor para a família, e que sua mãe é um exemplo de mulher de fibra, que trabalhava como manicure e se multiplicava para cuidar dos filhos, os apoiar nos estudos e incentivá-los a seguir no esporte, no caso dela, uma grande paixão da sua vida. (Oliver, 2021)

 

    A atleta destaca que fez parte de uma geração da qual seus pais não tiveram acessos aos diplomas de nível superior e havia uma grande expectativa da família para “uma escolaridade de terceiro grau”. Fabi relata que seu irmão “acabou se tornando dentista”, mas que a sua realidade foi muito dura porque “chegando ali no (antigo) segundo grau, não dava para conciliar os treinamentos” com os estudos e “ingressar na faculdade”. Fabi discorre que conseguiu “conciliar bem os estudos até certo ponto”, mas compreende o quanto é difícil. A atleta avulta que levanta a bandeira da mudança de realidade esportiva do Brasil para “que o esporte possa caminhar juntamente com a educação”, ideia compartilhada com Moser (2003, p. 58), que afirma que no Brasil “não valorizamos o esporte na formação dos indivíduos, não fazemos dele parte do nosso dia a dia, como ir à escola, por exemplo” e que, na verdade, “o esporte na sua essência passa muito mais perto da educação do que das câmeras de TV”.

 

    Quando perguntada sobre a vida social e o apoio da família, Fabi aponta que “inicialmente eles não entendiam muito” e “batiam muito na tecla que eu tinha que estudar, que eu tinha que ser alguém na vida”. A atleta entendia o posicionamento deles porque isso fazia parte da educação que seus pais tiveram, “mas, eu mostrei para eles que eu também tinha uma outra oportunidade de profissão”. A ex-atleta de voleibol, Virna Dias, também relata a dificuldade pela qual passou para convencer os pais que precisava morar no Rio de Janeiro para dar continuidade a sua carreira. Segundo Virna, para seus pais, “escola era sinônimo de futuro bom e seguro, sem a insegurança e as incertezas que, na época, o esporte trazia para quem pensasse em viver dele”. (Hygino, 2007, p. 20)

 

    Fabi ressalta que o percurso da sua casa, em Irajá, para o local de treinamento, no Flamengo, era muito longo e que “esse deslocamento não era simples, eu sempre ia sozinha”. Aos 18 anos, Fabi saiu de casa para jogar em Macaé, interior do estado do Rio de Janeiro e disse que a preocupação da família foi muito grande. Contudo, com o passar do tempo “os meus pais foram vendo que as coisas estavam acontecendo e na medida que eu fui ganhando novas oportunidades, eles foram percebendo que era ali que estava a minha vida mesmo”. Nesse sentido, a ex-jogadora de voleibol, Virna, foi ainda mais precoce e pediu sua emancipação aos pais como presente de 15 anos, quando saiu da região nordeste para morar no Rio de Janeiro e jogar no Bradesco. (Hygino, 2007)

 

    Sobre a vida social, Fabi relata que “foi interessante abrir mão desse convívio social, dessas relações que um adolescente tem, de interagir”. Fabi afirma que “ir a baladas não fez muito parte” da sua adolescência, mas que ainda assim teve seus momentos de lazer. Diante desse cenário, a atleta precisou “entender as demandas e as necessidades” e que nesse sentido, “o esporte me ajudou a me desenvolver como cidadã e como ser humano”, mas “eu passei a entender e amadureci de forma muito rápida”, o que “foi muito bacana”.

 

    Quando perguntada sobre a sua inspiração na posição de líbero, Fabi destaca a importância de Sandra Lima como a primeira brasileira a ocupar a posição, e a Ricarda, que foi a primeiro líbero a participar dos Jogos Olímpicos nesta posição, em Sidney (2000). Fabi aponta que a transição da posição de ponteira para líbero foi difícil, porque “na cabeça da adolescente você estava perdendo um certo protagonismo”, apesar de hoje em dia ter outra visão de protagonismo e entender que ser protagonista “não tem relação só com ser melhor ou ter maior destaque”. Aos poucos, Fabi foi descobrindo seu “protagonismo ao longo do crescimento da própria posição” e disse que não conseguia “nem imaginar jogar em outra posição que não fosse a de líbero”.

 

Preparação intensa: o treinamento 

 

    Fabi foi convocada pela primeira vez para a seleção brasileira em 2001, ainda sob o comando do técnico Marco Aurélio Motta. Quando José Roberto Guimarães assumiu o comando técnico da seleção brasileira, a atleta chegou a ser cortada em 2003. Contudo, a garra de Fabi prevaleceu e a atleta reconquistou seu lugar: voltou a seleção em 2005, e em 2006 tornou-se titular absoluta. (Baldini, 2022)

 

    Em um momento da conversa, Fabi discorreu sobre a participação das mulheres nos Jogos Olímpicos, lembrando que elas inicialmente foram impedidas de participar. Lembrou da importância dos Jogos de Tóquio (2021) para discutir temas relevantes como a saúde mental, levantada por uma mulher negra, a Simone Biles e a questão dos uniformes da ginástica artística, da Alemanha. Como reforçam Tavares, e Braida (2021, p. 15), as mulheres puderam ter “o palco do maior evento do esporte mundial para protestar contra a sexualização de seus corpos e provar que as mulheres estão atentas às demandas contemporâneas”.

 

    Sobre a troca de experiências com a jogadora Arlene, que disputou a posição de líbero para os Jogos Olímpicos de Atenas (2004), a atleta destaca que “ela levava uma certa vantagem em relação à experiência”. No final, “ela foi aos Jogos de 2004 e a partir de 2005 eu começo a ganhar mais espaço” na seleção brasileira. A disputa foi intensa, mas Fabi reconhece que “a Arlene ajudou muito” no seu desempenho.

 

    Ao ser perguntada se já sofreu algum tipo de preconceito por ser mulher, Fabi relatou que “aqui no Brasil, o que foi mais notório e emblemático foi aquele episódio que a gente foi muito taxada de amarelona. Eu vivi muito essa geração pós-2004”. A atleta lembra e destaca uma reportagem que dizia “Jogaram como nunca e perderam como sempre”, o que foi muito doloroso para todas as atletas que perderam o jogo de semifinal nos jogos de Atenas (2004) para a Rússia, e reitera “Parece até piada, mas não é. Isso foi matéria de jornal”. Fabi aponta que sempre foi muito questionada sobre a fragilidade feminina e que para ela “era quase que inconcebível escutar as pessoas falando [...] que na hora do vamos ver é sempre difícil, que a mulher não consegue”.

 

    Sobre os valores das premiações do naipe masculino serem, usualmente, maiores do que o do naipe feminino, Fabi afirma que era comum “numa mesma competição, as mulheres ganhavam um valor e os homens ganhavam duas vezes mais. E a gente não entendia. Acho que a gente avançou nessa discussão. A exemplo do tênis, “não é uma causa somente das mulheres e sim de toda a sociedade. Então, os homens também precisam abraçar essa causa para que haja uma mudança”. Na realidade, a mudança ocorreu em 2018, com a chegada da Liga das Nações de Voleibol, que substituiu a Liga Mundial (naipe masculino) e o Grand Prix (naipe feminino). Até 2017, a seleção campeã do naipe masculino recebia 1 milhão de dólares e a seleção campeã do naipe feminino recebia 600 mil dólares. A partir de 2018, ambos os naipes vencedores passaram a receber 1 milhão de dólares. (Voleibol Sempre, 2018)

 

    A atleta também se posicionou sobre a presidência do COI ter sido, até o presente momento, de homens, cis, brancos e, predominante, europeus que reforçam a subserviência da mulher. Apontou para a ausência de mulheres em postos de gestão e até para as questões culturais que impedem que as mulheres exerçam suas funções profissionais, como a assessora de imprensa do Brasil que foi alertada que a mulher não pode assistir aos jogos nos ginásios do Irã. Por fim, relata que entre avanços e retrocessos, felizmente não sofreu nada pessoalmente nesse sentido. Estudos que se debruçam a analisar o espaço da gestão no ambiente esportivo corroboram com as afirmações de Fabi, tais como Gomes (2008), Derós, e Goellner (2009), Melo, e Rubio (2017), Passero et al. (2020), Barreira (2021) e Guimarães, Barreira, e Galatti (2023).

 

    Finalmente, ao ser perguntada sobre jamais ter jogado fora do Brasil, Fabi ressalta que chegou a receber propostas da Itália e da Espanha, nos anos de 2007 e 2008, mas que naquela época a posição de líbero era uma função pouco valorizada e movimentada do voleibol mundial. Segundo Fabi, “os times de fora queriam jogadores decisivos, atacantes”, às vezes “um levantador” e que, portanto, “para viver fora do país, longe das pessoas que gosto, tinha que valer a pena financeiramente”. Fabi afirma que jogou por 13 anos em times competitivos do Rio de Janeiro, sempre sob o comando do técnico Bernardinho, profissional pelo qual tem idolatria e que “ajudou muito na minha evolução como atleta e como ser humano”. Portanto, ela não se arrepende de não ter jogado fora do país.

 

Concentração total: o jogo 

 

    Em 2007, nos Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro, a derrota para Cuba foi muito dolorida, conforme aponta Fabi: “A gente sofreu algumas derrotas difíceis, mas essa foi a que mais doeu”. No final desse jogo, a atacante Sheilla afirmou que “temos que continuar lutando nas próximas competições, pois sempre tivemos um objetivo: os Jogos Olímpicos. Isso não mudou” (Redação, 2007, s/p.). As palavras de Sheilla vão ao encontro do depoimento de Fabi sobre essa derrota para as cubanas: “eu me arrisco a dizer que a gente começa a escrever aquela medalha de ouro (olímpica em 2008) depois daquela derrota tão difícil de ser digerida (no Panamericano, em 2007)”.

 

    Fabi também abordou a hegemonia de algumas seleções, como a do Peru, nos anos de 1980 e a de Cuba na década de 1990, que sempre foram adversários muito difíceis de serem vencidos pela seleção brasileira. Após o declínio técnico-tático e físico dessas duas seleções, a dificuldade do Brasil passou a ser a Rússia e sobre esse tema, Fabi destaca que “sempre foi um adversário duro de ser batido” e que a seleção “protagonizou alguns jogos inesquecíveis como as quartas de final de Londres (2012) e alguns campeonatos mundiais”. Fabi ressalta também que os jogos eram tão disputados, que os torcedores brasileiros lembram até hoje de nomes como Gamova, Artamanova e Sokolova e ela “sentia aquele frio na barriga para jogar também”.

 

    Ao ser perguntada sobre como encarou as vitórias consecutivas nos Jogos Olímpicos de Pequim (2008) e Londres (2012), Fabi respondeu que em 2008 “foi incontestável”, que a seleção brasileira “perdeu apenas um set, na partida final para os Estados Unidos” e que “uma campanha assim não dava nem para imaginar”. De acordo com Baldini (2022), o ouro brasileiro foi um dos pontos altos do Brasil no vôlei.

 

    Em 2012, porém, Fabi ressalta que a seleção “estava defendendo o favoritismo” e que isso é muito difícil porque “os adversários estão te vendo e você pode cair em algumas armadilhas”. O fato é que em 2012 “foi dureza”. “Foi a Olimpíada da afirmação e da confirmação”, “foi uma mistura de vários ingredientes a conquista daquela medalha”.

 

    A atleta diz que tem duas medalhas de ouro olímpicas, “mas com sabor e pressão totalmente diferentes”. Em 2012, Fabi destaca que “foi muito a cara do Brasil, desde a vitória nas quartas contra as russas”, sendo que o “favoritismo absoluto era dos EUA” e a seleção brasileira “as colocou numa fria e acabamos vencendo a final olímpica e nos tornando bicampeãs olímpicas de forma consecutiva”. Fabi ressalta que às vezes precisa se “beliscar para acreditar que é verdade”. Baldini (2022) afirma que o bicampeonato olímpico foi um dos mais importantes momentos do esporte brasileiro e que se houvesse um “hall da fama” de momentos do esporte brasileiro, o vôlei feminino de 2012, em Londres, estaria estampado.

 

    Sobre não ter o título de campeã mundial, Fabi afirma que “tá tudo certo” e tem muito orgulho de ter disputado “duas finais de mundiais, em 2006 e 2010”. Afirma que “adoraria ter conquistado aqueles títulos”, mas que “não trocaria nada”. Fabi ainda explica que “não dá para banalizar nem a derrota, nem a vitória”, é preciso entender que ambas fazem parte. Fabi olha para as medalhas de prata e sente orgulho de ter igualado “a conquista da geração de 1994, que foi prata no Mundial diante de Cuba” e termina lembrando que a sua geração “conquistou a primeira medalha de ouro olímpica, em 2008, mas teve gerações que estão construindo isso desde 1980, com a primeira participação olímpica, num momento em que tinham que se dividir entre esporte amador e profissional”. Fabi reitera que não se sente “frustrada em relação a isso” e espera “que o vôlei feminino ainda conquiste esse título mundial, que é o único que falta na história”.

 

Vida integral: para além do pós-jogo 

 

    Em 2018, Fabi resolveu se aposentar do esporte e quando perguntada sobre esse tema, respondeu que “tomar a decisão de parar não é simples”, mas que é necessário “ter a noção real do teu corpo”, “de se entender” e disse também ser “um privilégio para poucos escolher o momento de parar”. Fabi reitera que sempre quis viver o esporte “de forma saudável”. Nesse momento da entrevista, Fabi disse que era casada com Julia Silva havia quatro anos e que ter um filho através de fertilização era uma prioridade para elas. Assim sendo, passou a entender os sinais do seu corpo, da sua mente, da sua família, das suas demandas emocionais, “até que chega a temporada 2017/2018 e aí eu começo a conversar muito com a minha esposa, com a minha família, com a minha mãe, que era sempre uma torcedora muito presente e a vender a ideia”.

 

    Segundo Fabi, ela estava “encerrando um ciclo e iniciando um novo”. Destaca que foram “vinte anos de um ciclo maravilhoso que chegava ao fim” e que mesmo sendo sempre difícil o encerramento de um ciclo “houve uma construção, uma atenção aos sinais e a decisão que chegava o momento de parar naquela temporada”. Fabi afirma que “era hora de buscar outros desafios e eu acabei seguindo no esporte como comentarista”.

 

    Conforme destacam Melo, e Rubio (2017), a transição na carreira de atletas pode ser influenciada por aspectos biofisiológicos, como lesões, fadiga ou desligamentos inesperados, ocorrendo quando o corpo já não responde às expectativas de desempenho. Para campeãs, essa mudança é ainda mais complexa devido à dificuldade de deixar a glória da vitória para trás. A aposentadoria de atletas olímpicas varia conforme a idade e o esporte, com aposentadorias mais precoces em esportes iniciados cedo. Sabe-se que, historicamente, as mulheres se aposentavam devido a fatores sociais como casamento e maternidade, enquanto lesões eram menos citadas. Com o tempo, atletas das décadas recentes conseguiram equilibrar melhor vida pessoal e profissional. Atletas de alto rendimento possuem maior capacidade de enfrentamento, e a forma como a transição é planejada ou compulsória afeta a adaptação futura. Melo, e Rubio (2017) mostram que atletas que planejam sua saída e desenvolvem novas identidades profissionais se ajustam melhor à vida pós-carreira, muitas vezes optando por profissões relacionadas ao esporte, apesar da predominância masculina na função de técnico.

 

    Sobre a saudade das quadras, Fabi disse que ficou no passado e que o mais importante foi compreender a importância dos finais de ciclos e guardar com carinho momentos especiais. A ex-atleta afirma que aproveitou intensamente tudo e que pode se considerar realizada nesse sentido. (Bertoldo, 2021)

 

    No que diz respeito a ser mãe, atleta e mulher no esporte, Fabi afirma que “é desafiador” e que sempre pensa como foi a sua “trajetória dentro desse esporte”. Nesse sentido, acredita que contribuiu “na causa do gênero” e tenta mostrar como é ser “uma mulher com relacionamento homoafetivo e o que que deu para fazer com todas essas coisas que eu tive a chance de viver”. De forma geral, Fabi disse que “fica orgulhosa com esse balanço” e afirma que “ser mulher é difícil, seja na área do esporte ou outras áreas” porque “nós vivemos num país machista”, onde “a mudança é lenta, mas nós já percebemos que não podemos retroceder nenhum passo para trás”. Fabi sinaliza que se “tornar mãe e atleta é desafiador”, mas que tem “construído esse lugar”, que é um “lugar de escuta, é um lugar de aprendizagem, é lugar de revisitar algumas memórias da infância” e “reviver tudo isso junto com a Maria”, sua filha.

 

    Os estudos de pesquisadores fora do campo da Educação Física, como os de Castro, Ribeiro, Cordeiro, Cordeiro, e Alves (2009), Gouveia et al. (2007), Lima, e Oliveira (2005) e Nascimento, Godoy, Surita, e Silva (2014) abordam a maternidade como um ato beneficente para a mãe e o feto em gestações não complicadas. Já os estudos feitos por professores de Educação Física, tais como Melo, e Rubio (2017), Fetter (2020) e Tavares, Pedrosa, e Pereira (2021), vão além do aspecto biomédico, esse grupo de estudiosos acredita que, além dos papéis sociais de ser mãe, as jogadoras abarcam os papéis de atleta e mulher.

 

    Fabi foi perguntada sobre como foi a sua declaração pública acerca de sua orientação sexual, e afirmou que “também foi uma construção”. Disse que se percebia “com esse conflito de orientação sexual aos 19 anos de idade [...], sem saber direito o que era aquilo e lidando com seus próprios preconceitos”. A ex-líbero da seleção brasileira reforçou que faz “parte de uma sociedade que além de preconceituosa é racista” e que foi tentando entender quem ela “era nesse mundo”, porque estamos todos “num processo de evolução, certamente”. Portanto, para “evoluir, a gente precisa primeiro reconhecer o que nós somos enquanto sociedade” e quando percebeu a sua “orientação, que, de fato, eu gostava de mulher, eu precisei decidir o que fazer com essa informação”.

 

    Assim, falou com seus pais, com sua família, com as pessoas mais próximas e passou “a usar as minhas redes sociais de forma mais natural, fui tentando abordar os temas mais sensíveis de forma mais natural, mas sempre lembrando que eu sou uma mulher branca, que foi bem-sucedida”. Dessa forma, Fabi explica que tenta “falar com todo mundo, eu tento ouvir todo mundo, tento ser a voz de todo mundo nesse sentido, apesar de saber que tem muita coisa pra caminhar”. Então, para concluir, “a minha saída do armário, inicialmente não foi simples, mas depois que eu percebi quem era nesse mundo e o que dava para fazer com ele, foi só motivo de orgulho. Eu tenho muito orgulho de ser quem eu sou, da minha família, do que a gente construiu e me percebo uma voz em defesa do amor livre, em defesa da inclusão e do acolhimento”. O estudo de Camargo (2018, p. 12) nos chama atenção para reflexão nessa temática à qual o autor afirma que atletas profissionais retardam o anúncio público da orientação sexual não-heterossexual justamente devido às suas carreiras. Enquanto isso, se submetem às situações extremas e desagradáveis (como o autocontrole, tentativas de suicídio, ingestão excessiva de remédios, drogas ou álcool, e mesmo a autoexclusão social).

 

    Sobre os novos desafios, Fabi abordou sua preparação para seu novo projeto profissional. Atualmente, Fabi é comentarista do canal de TV por assinatura “SporTV” e ao ser perguntada sobre como se prepara para as transmissões respondeu que estuda muito e que fica “ligada nas competições internacionais, nas performances de todo mundo”, e que criou uma rotina para estar sempre a par das notícias. No entanto, confessou que a “coisa que me seduz é contar a história do jogo e o que está por trás daqueles personagens”, por exemplo, “se uma jogadora faz 30 pontos num jogo, tem uma história por trás daquela marca”.

 

    Fabi disse espontaneamente que “se me perguntassem, o que você faria se não jogasse vôlei? Eu acho que eu estaria em algum contexto da educação física ou então alguma coisa ligada à história”. Disse que adora “história” e que “quando eu estou com o controle da TV, zapeando, o que me prende são as boas histórias”. Fabi apontou que sempre fica atenta aos temas relevantes também, como o “Outubro Rosa”2, assim como “às datas relevantes porque a gente tem uma responsabilidade enorme” com pautas importantes para a sociedade.

 

    A ex-atleta disse também que “com o microfone, a gente fala para um monte de gente, de diversos níveis sociais. Então, eu fico atenta a tudo isso e estudo muito para sempre trazer a informação certa”. Fabi frisa que não é “repórter”, mas “comentarista” e que, portanto, a sua “função é ajudar a contar aquela história”. Fabi disse que é “fã dos narradores, que são os grandes protagonistas de uma transmissão, que levam a emoção” e que se vê como “uma peça coadjuvante para contar uma história de um esporte que eu tanto amo, que é o vôlei”. Em entrevista concedida a Oliver (2021), Fabi já havia dito: “Sigo até hoje me desafiando, querendo conhecer cada vez mais como funciona a dinâmica da TV, apresentar quadros, por exemplo. Tenho uma sede por aprendizado, de consumir cada vez mais conhecimento e isso é muito legal”. 

 

Conclusões 

 

    O voleibol, como esporte de grande alcance nacional e internacional, conta com torcidas extremamente apaixonadas que acompanham de perto a trajetória de seus jogadores e jogadoras, especialmente aqueles que integram as seleções brasileiras. Fabi Alvim é uma das atletas que se destaca nesse grupo seleto, tornando-se uma personalidade muito querida pelo público e pelos/as amantes do voleibol.

 

    Suas características pessoais, como a reconhecida automotivação e o senso de compromisso, fizeram com que ela se destacasse como jogadora em uma posição com menos evidência quando se compara o líbero com os atacantes. Especialista em passes e defesas, o líbero se parece como um semeador, que fertiliza a jogada que começa por suas mãos. Em analogia com a trajetória compartilhada pela entrevistada nesse artigo, Fabi parece ter agido assim na própria vida. Discreta, empenhada, plantou bastante para que todas as equipes que jogou tivessem êxito, um resultado natural de seu empenho individual em prol do coletivo. E ela continua assim, mesmo fora das quadras.

 

    Ao recuperar memórias do início de seu ingresso no voleibol, foi possível notar que a família foi fundamental em todo o processo da sua construção como atleta e pessoa. A nova família formada, com sua esposa e filha, evidencia que a história continua. A sua participação fundamental em jogos decisivos, que redundaram em muitas vitórias, tanto em títulos nacionais (dez vezes campeã da Superliga), como internacionais (duas medalhas de ouro em Jogos Olímpicos), e prêmios individuais (melhor líbero do Grand Prix, em 2002 e dos Jogos de Pequim, em 2008), asseguram-lhe o adjetivo de atleta multicampeã.

 

    Agora, em novo desafio profissional como comentarista esportiva, vem se destacando e ganhando espaço em transmissões de jogos e em programas de entrevistas com atletas. Sem muito alarde, mas com postura firme, Fabi inscreve seu nome na história do voleibol brasileiro para além de seu talento como atleta, mas como cidadã que sabe que suas conquistas individuais são inspirações coletivas para discussão sobre temas sociais contemporâneos, que vão desde remuneração profissional, estudos continuados para atletas e afirmação de identidades de gênero. Tal qual como sempre fez em quadra, continua semeando.

 

Nota 

  1. Por ser tratar, em um momento, de uma ação pedagógica da referida disciplina, não foi enviado com antecedência o roteiro de perguntas para a entrevistada. No entanto, foi mencionado que se tratava de uma bate-papo aberto para além dos muros da Universidade.

  2. O mês de outubro é dedicado à sensibilização e compreensão sobre o Cancro da Mama (nota do editor).

Referências 

 

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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 29, Núm. 316, Sep. (2024)