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Modernidade, corpo e futebol: uma análise sociológica
da produção social do jogador de futebol no Brasil

   
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(Brasil)
 
 
Francisco Xavier Freire Rodrigues
xavierfreire@bol.com.br
 

 

 

 

 
    O trabalho investiga a relação entre modernidade, disciplina e formação do jogador de futebol profissional. Discute o futebol moderno como instituição disciplinadora, dotada de regras, normas e princípios científicos (positividades), tendo como objetivo produzir, manipular, individualizar, adestrar e aperfeiçoar o corpo do indivíduo, tornar o jogador dócil e utilitário. A modernidade, caracterizada pela secularização, subjetivação, triunfo da racionalidade instrumental, domínio da natureza e o surgimento do indivíduo moderno, transforma o ser humano em objeto de conhecimento. O campo empírico da investigação é formado pelas categorias de base do Internacional (RS). A pesquisa constata que a produção social do jogador de futebol consiste num processo de disciplinamento, adaptação, socialização, adestramento, desenvolvimento e aperfeiçoamento das potencialidades físicas e técnicas do atleta, além da administração do seu potencial genético. Trata-se de um processo disciplinador, pedagógico e civilizatório caracterizado pela regulamentação, controle, institucionalização e racionalização. O jogador de futebol é uma força de trabalho produto do disciplinamento, treinamentos físicos, técnicos e táticos e do desenvolvimento de suas capacidades genéticas.

Ponencia presentada para el IV Encuentro Deporte y Ciencias Sociales, Buenos Aires, noviembre de 2002
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 57 - Febrero de 2003

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1. Introdução

    O presente trabalho tem por objetivo investigar a relação entre modernidade, disciplina e formação do jogador de futebol profissional. Discute o futebol moderno como instituição disciplinadora, dotada de regras, normas e princípios científicos (positividades), tendo como objetivo produzir, manipular, individualizar, adestrar e aperfeiçoar o corpo do indivíduo, tornar o jogador dócil e utilitário. Traça um breve paralelo entre a produção social do soldado e do jogador de futebol, com base no referencial de M. Foucault, entendendo estes como resultado do poder disciplinar em suas respectivas instituições das quais são produtos.

    Trata-se de uma pesquisa empírica sobre a formação do jogador de futebol profissional no Brasil, tendo como recorte empírico as categorias de base (Juvenil e Júnior) e Profissional do Sport Club Internacional de Porto Alegre-RS1.

    O procedimento metodológico consistiu inicialmente numa revisão da literatura. Utilizou-se entrevistas semi-estruturadas com seis atletas, sendo três da categoria juvenil e três dos profissionais. Aplicamos 56 questionários divididos da seguinte forma: 20 na categoria juvenil, 20 entre os atletas júniores e 16 na categoria profissional. Realizamos entrevistas com dirigentes e técnicos.


2. Breve relato histórico sobre o futebol no Brasil

    O futebol surge no Brasil no final do século XIX, quando Charles Miller retorna da Inglaterra, em 1894, trazendo materiais próprios desse esporte: bolas, camisas, calções e chuteiras. Charles Miller introduz o futebol no Brasil, inicialmente no estado de São Paulo, entre os jovens da elite paulistana. O elitismo é uma marca do nascimento do futebol no Brasil. Negros e mulatos eram excluídos dessa “nobre prática esportiva”, sendo um privilégio dos membros da elite nacional. O futebol aparece como elemento da modernidade. Como afirma Helal (1990:38), “De início, logo após a atividade de missionário exercida por Charles Miller, o futebol teve como focos de irradiação o meio industrial e aristocrático, ligados aos hábitos de lazer da colônia européia”.

    É somente nas primeiras décadas do século XX que começa a popularização do futebol. Sua democratização e consagração como elemento da cultura nacional dá-se nos anos 1930, quando ocorre a profissionalização em 1933 (Moura, 1998:19).

    O futebol seria um instrumento de emancipação social dos negros, mulatos e brancos pobres no Brasil, um espaço que possibilitaria ascensão social, independentemente de poder econômico e do grau de escolaridade (Rosenfeld, 1993; Lever, 1983). Esta tese é defendida também por Mário Rodrigues Filho (1964) em “O Negro no Futebol Brasileiro”. Trata-se de um trabalho tido como referência para outros estudos, mas muito contestado pela utilização de modelos gerais de elitismo, racismo e luta de classes. É rico em informações e pobre em análise, sendo dotado de pouca cientificidade. No entanto, nas décadas de 1980 e 1990 o perfil sócio-econômico do jogador brasileiro altera-se, especialmente com a proliferação de escolinhas particulares e a redução dos campos de várzea resultantes da expansão imobiliária e da modernização do futebol. As possibilidades de mobilidade social via futebol são cada vez mais estreitas ou até impossíveis (Melani, 1999; Pimenta, 2000). A defesa da tese do futebol como instrumento de ascensão social requer um estudo empírico amplo.

    A história do futebol no Brasil pode ser divida em cinco períodos. Levine (1982: 23) utiliza a seguinte periodização: (a) primeira fase (1894-1904): marcada pela chegado do futebol ao país e a criação de clubes urbanos por imigrantes europeus que aqui moravam. Importa frisar a relevância do São Paulo Athletic Club a quem Charles Miller se filiou organizando a prática futebolística em São Paulo. Nesta fase, o futebol era praticado nos colégios da elite paulista e carioca Alfredo Gomes, Anglo-brasileiro (Caldas, 1990:23), além de outros estados; (b) fase amadora (1905-1933): caracterizada pelo elitismo na platéia e na composição dos times (Lopes, 1994:70), e ampla divulgação pela imprensa (Levine, 1982:25). Havia racismo forte, eram proibidos negros na seleção brasileira e em vários outros times. Este período coincide com o futebol de fábricas, onde o futebol era usado como mecanismo de diversão e disciplina para os trabalhadores, bem como veículo publicitário importante na divulgação da imagem e prestígio das empresas (Antunes, 1994:106-107). Mas o que melhor define esta fase é o amadorismo “[...] herdade da concepção aristocrática de uma prática esportiva oriunda da classe dos lazeres, vinda da Inglaterra e reservada a uma elite, e o esporte ‘paternalista’, representado pelas equipes de empresas” (Lopes, 1994:66); (c) fase do início do profissionalismo (1933-1950), regulamentação do futebol como profissional pela legislação social e trabalhista do governo Vargas 1930-1936. O futebol torna-se um espetáculo de massa; (d) fase do reconhecimento (1950-1970). O Brasil consolida seu estilo de jogar futebol, tendo como arquitetos os negros e mulatos. O futebol-arte, feito de magia, ginga e improviso constrói a identidade nacional, tendo Leônidas, Domingos, Garrincha e Fausto como principais expressões (Rodrigues Filho, 1964). Esta fase se caracteriza pela crescente comercialização do futebol. Desejamos acrescentar uma outra fase: fase da modernização (Pós-1970), marcada pelo crescimento de recursos financeiros no futebol, televisionamento das partidas, crescimento no nível salarial dos jogadores e no êxodo de jogadores brasileiros para o futebol europeu nas últimas décadas do século XIX.

    A passagem do amadorismo para o futebol profissional é marcada pela entrada em cena de jogadores de origens populares nos grandes clubes, apesar dos obstáculos quase instransponíveis que tiveram que enfrentar. Os jogadores negros e mestiços são os pioneiros no que viria a ser chamado de “estilo brasileiro de jogar futebol”. Esses serão os atletas socialmente identificados como os criadores e a razão de ser do conhecido futebol-arte, uma das peculiaridades brasileiras nesse esporte (Lopes,1998:19). A forma espontânea de jogar, caracterizada pela astúcia, criatividade e improviso, segundo a narrativa que domina o imaginário social sobre o futebol, nos diferenciaria dos países europeus. Essa técnica futebolística (“ginga brasileira”) seria também considerada um elemento importante na construção da identidade nacional.

    O momento que marca realmente a consolidação do profissionalismo no futebol brasileiro pode ser dado de 23 de janeiro de 1933. A luta pelo profissionalismo pode ser traduzida em lutas entre classes e grupos sociais. Antes desta data, havia o famoso “profissionalismo marrom”. Os jogadores recebiam para jogar, mas o pagamento era disfarçado para burlar as proibições e legislações vigentes (Caldas, 1990).


3. A modernidade

    A modernidade caracteriza-se pela descontinuidade, fragmentação, ruptura e deslocamento do sujeito de estruturas tradicionais Giddens (1991), Harvey (1992), e Laclau (1990). A era moderna inicia-se com a superação da ordem medieval, provocando alterações em praticamente todas as dimensões da vida humana. A modernidade, enquanto projeto de civilização, assenta-se num conjunto de valores como racionalidade, individualismo, autonomia, desencantamento do mundo e a universalidade. Valores estes apresentados como universais. A explicação das relações sociais travadas na modernidade é o propósito maior da sociologia como ciência.

    É importante frisar que os clássicos da sociologia trataram a modernidade, em determinados aspectos, de modo semelhante, entendendo-a como época nova, oposta ao passado, caracterizada por rupturas nas diversas esferas da vida social. Trata-se de momento de expansão social do saber e dos domínios sobre a natureza, entre os homens e as possibilidades de progresso. Nesta perspectiva, a modernidade é antinatural, antitradicional, antimetafísica, tendo como polaridades básicas: social/natural, moderno/tradicional, racional/emocional, científico/metafísico. Associação entre universalismo e individualismo como tendência moderna: este é o entendimento comum entre os clássicos.

    Na sociologia clássica, o mundo moderno é marcado pela sociedade dos indivíduos. Os homens têm interesses, ações liberadas, quebrando barreiras, mas criando outras, como o Estado de Direito (Durkheim), Burocracia (Weber) circuito do capital (Marx). civilização moderna como uma cultura racionalista, tendo como pilares o individualismo (o homem moderno), universalismo (o contexto moderno como inovação histórica) e cognitivismo (a ciência moderna). É necessário ressalta que as concepções sobre a modernidade a racionalidade são diferentes. Em Marx percebe-se uma crítica ao caráter e uso burguês da ciência e sua conseqüente transformação em força produtiva. Weber preocupou-se em sublinhar a singularidade da cultura Ocidental, sendo a racionalização o componente chave desta cultura. Em Durkheim, verificamos a ênfase da dimensão coletivista da racionalidade.

    A individualidade do homem como condição para a universalidade. Ruptura com a tradição, ensejando novas bases de intercâmbio dos indivíduos. É, portanto, o momento no qual culmina o processo de separação entre o homem e natureza. Marca o advento de determinado tipo de interesse pelo corpo.

4. Poder disciplinar, corpo, formação do indivíduo moderno e
a produção social do jogador de futebol

    Em Vigiar e Punir Foucault (1987) elabora uma genealogia do direito penal racionalizado e da execução penal cientificamente humanizada. Sua análise centra-se no surgimento do regime moderno de poder, o qual busca o afinamento e a adaptação aos instrumentos que vigiam a identidade, os gestos, as atividades e os comportamentos cotidianos dos indivíduos. O poder é imposto por meio de processos de aprendizagem prático-moral, contribuindo com o adestramento dos indivíduos através da socialização.

    As instituições sociais modernas: escola, fábrica, hospital, polícia disciplinam o indivíduo, manipulam e controlam os corpos. A ordem social sustenta-se na sua capacidade de comando e direção permitida pelo conjunto de instituições e organizações administrativas. A manipulação ocorre através do disciplinamento por meio das instituições sociais. O esporte moderno pode ser considerado como instituição disciplinadora dos corpos. Esta concepção integra a obra de Muller, Dieguez e Gabauer (Bracht, 1997:46). O que nos possibilita investigar o futebol como instituição disciplinadora de corpos.

    A análise de Foucault acerca do poder preocupa-se em captá-lo em suas extremidades, capilar, ramificações, manifesto nas instituições locais e regionais, examinado sua materialização. O poder como algo que circula, funciona em cadeia e redes (Foucault, 2001:182-3). O poder passa sobre os indivíduos, fazendo com que os gestos, corpos, desejos e discursos funcionem e sejam identificados como indivíduos. O indivíduo é um efeito do poder, sendo criação e veículo de transmissão.

    A idéia de poder como rede, micro, estendendo-se ao conjunto de esferas sociais pode ser aplicada à análise do futebol, especialmente as relações de controle social, condicionamentos físicos, técnicos e táticos, ordenamentos e hierarquia das posições. O técnico revela seu poder por meio dos esquemas, os atletas procuram sempre “escutar e fazer o que o técnico manda” (D.Rincón, 20, atleta). Trata-se de um poder disciplinar em forma de técnicas, dispositivos, métodos de controle do corpo e dos atos dos indivíduos, almejando à docilidade e utilidade. Os treinamentos físicos, táticos e técnicos manipulam o corpo, na tentativa de alcançar o padrão ideal de jogador, resistente e habilidoso. Trata-se de colocar os jogadores “em forma”, preparados para jogar.

    A disciplina produz maneiras de agir e comportamentos, fabrica o homem necessário a determinadas funções. O poder disciplinar trabalha o corpo no sentido de torna-lo força de trabalho, capaz de proporcionar os melhores rendimentos possíveis. O jogador de futebol é uma força de trabalho produto do disciplinamento, treinamentos e do desenvolvimento de seu potencial genético (Carravetta, 2001:19).

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). [...], ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma aptidão, uma capacidade que ela procura aumentar; e inverter por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita (Foucault,1987:127).

    Disciplina como obediência técnica e tática, sendo uma disciplina corporal e moral. O poder disciplinar manifesta-se das seguintes formas: (1) A disciplina é um tipo de organização do espaço. Distribui os corpos em espaços específicos e individuais, classifica-os, conforme determinadas funções. A disciplina constitui um controle do tempo (Machado, 2001:XVII). Horários marcados para as tarefas. O corpo é sujeito ao tempo, busca-se produzir com rapidez e eficácia. O que mais interessa é o desenvolvimento e não o resultado da ação. Nos clubes de futebol existem horários marcados para treinamentos, jogos e atividades recreativas. Tem-se o controle minucioso do corpo e de suas operações, buscando articulação entre corpo e objeto manipulado. Interessa-nos saber como se organiza o espaço entre os jogadores do SC Internacional, na distribuição de funções e o controle que o técnico tem nesse processo. (2) A vigilância como instrumento de controle social usado pelo poder disciplinar. Trata-se do controle discreto, invisível. Por exemplo, o poder vigilante do Panopticon de Bentham (Machado, 2001:XVIII). Este controle sem ser visto pode existir também no clube de futebol. Os atletas em formação reclamam da ausência de vida normal, do excesso de trabalho, treinos de diferentes naturezas e as proibições de sair à noite constituem uma espécie de controle social.

    É neste sentido que a noção de vigilância de Foucault será utilizada para investigar o controle dentro do clube.

    O objetivo político e econômico do poder disciplinar é tornar o corpo humano útil e dócil (Foucault, 2001). O poder disciplinar não é negativo, mas positivo, ele produz o indivíduo moderno, sendo uma técnica de controle social muito eficiente desenvolvida nas sociedades modernas desde o século XIX. Para Foucault (2001:183-4), “[...] o indivíduo não é o outro do poder: é um de seus primeiros efeitos. O indivíduo é um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constituiu”. O poder moderno ao invés de massificar, descaracterizar, ele individualiza e unifica. Numa massa desordenada, o poder faz o indivíduo emergir como alvo, esquadrinhado. O nascimento da prisão não é uma massificação, mas o isolamento celular, total ou parcial, inovação no sistema penitenciário. O nascimento do hospício não destruiu o específico da loucura, ele é produzido como doente mental, individualizado, com relações disciplinares de poder para cuidar do doente.


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