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Modernidade, corpo e futebol: uma análise sociológica
da produção social do jogador de futebol no Brasil
Francisco Xavier Freire Rodrigues

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 57 - Febrero de 2003

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    O mundo moderno criou conhecimentos, normas, técnicas e discursos que são operadores e legitimadores do controle do corpo. Muitos destes conhecimentos encontram-se relacionados ao mundo do esporte. Este se configura como uma das esferas das sociedades contemporâneas mais importantes de organização da corporeidade.

    O esporte é um dos mais fortes vetores que potencializa o domínio do corpo. As identidades sociais modernas se constroem em torno do corpo, sendo muito presente o princípio do rendimento. Vivemos numa sociedade esportivizada no sentido de busca pelo aperfeiçoamento do corpo. As academias são exemplos ilustrativos disso.

    O treinamento esportivo é um dos aspectos mais relevantes do esporte moderno de competição. As metodologias e os princípios de treinamento são sustentados por conhecimentos científicos, positividades e dispositivos contendo elementos que buscam melhorar o desempenho esportivo, sendo que uma das exigências/critérios é exatamente colocar o corpo sob um perfeito controle. É necessário operacionalizar o corpo, tornar possível alcançar elevada performance desportiva. No treinamento esportivo, o corpo aparece como um objeto passível de manipulação, adestramento e operacionalizável, comparável a uma máquina. O corpo pode ser colocado em funcionamento, para isso recebe treinamentos especiais.

    Trata-se de uma consciência mecânica do corpo no esporte. A teoria do treinamento desportivo pode assemelhar-se a outras técnicas e outros discursos sobre o corpo, tais como os cuidados com a dieta, estética.


4.1- Paralelo entre a produção do soldado e a formação do jogador de futebol moderno

    A produção social do corpo pode ser analisada à luz da sociologia de Michel Foucault (1987, 2001). A partir da metade do século XVIII surgem novos interesses e conhecimentos sobre o corpo. O soldado passa a ser fabricado, treinado, tornando-se praticamente uma máquina especializada, sobre a qual se exerce controle. A partir deste momento, o soldado deixa de ser um camponês recrutado, sendo um corpo totalmente disciplinado, construído socialmente através de mecanismos disciplinares (positividades) (Foucault, 1987:125).

“[...] o soldado tornou-se algo que se fabrica; de uma massa informe, de um corpo inapto, fez-se a máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos hábitos; em resumo, foi ‘expulso o camponês’ e lhe foi dada a ‘fisionomia de soldado’” (Foucault, 1987:25).

    Isto nos permite fazer uma analogia com o jogador de futebol no Brasil. A figura do jogador-operário desaparece com o processo de profissionalização, momento em que se exige mecanismos específicos e um processo de produção do jogador, um corpo útil ao futebol, um profissional. Um exemplo clássico de jogador-operário é Garrincha. Começou sua carreira futebolística no time Sport Club Pau Grande em 1949, time organizado pelos operários da tecelagem Cia. América Fabril de Paul Grande no Rio de Janeiro (Antunes, 1994:109; Castro, 1995). Além de receber o salário como operário, recebia presentes e gratificações como segundo salário. É ilustrativo também o caso de Tesourinha, um dos grandes jogadores do SC Internacional na década de 40. Ao assinar seu primeiro contrato profissional por 200$000 mensais e mais dois litros de leite e um quilo de carne diariamente, Tesourinha continuou no seu antigo emprego de artífice de armeiro na Briga Militar (Ostermann, 1999:46).

    Voltando à analogia da produção do corpo do soldado e do jogador de futebol modernos, pode-se salientar que, em ambos os caso, se trata de um processo de profissionalização, pode ainda ser entendida, à luz do conceito de campo (Bourdieu, 1999 e 1990) como autonomização dos respectivos campos: segurança/policial e esportivo/futebolístico.

    Na sociedade contemporânea se produz um corpo conforme à necessidade, buscando atingir o máximo de rendimento, tornar o corpo útil. Isso serve para pensar o futebol também. Com o advento do futebol profissional, o jogador deixa de ser o operário-jogador, sendo agora fabricado em escolinhas, nos clubes, disciplinado, alvo de controle, disciplina e poder.

    No futebol, a vigilância classifica o atleta, seu ritmo de jogo, rendimento e sua capacidade de suportar os esforços nos treinamentos. É esta vigilância, essa disciplina que produz o jogador de futebol moderno nos clubes. Isso nos permite entender o futebol como instituição disciplinadora.


4.2 - Disciplinamento do jogador de futebol

Tabela 01: Mecanismos de Disciplinamento


Fonte: Pesquisa de campo - 2002

    Os dados acima indicam que o controle social (60,7%) e os treinamentos (25%) são, na visão dos atletas, os mecanismos principais no disciplinamento e na formação do atleta. A repressão, por meio de punições, afastamento do grupo, banco de reservas e multa em parte do salário aparecem em terceiro lugar, com 14,3%. O processo de disciplinamento ao qual está submetido o atleta se reveste de um poder (Foucault,2001 e 1987) positivo, ao qual produz o jogador desejado pelo clube ao mesmo tempo em que forma um cidadão dotado de comportamento altamente regulamentado. A internalização de regras, esquemas táticos e normas de conduta implica na civilização (Elias, 1992) do atleta. Por isso, defende-se a hipótese de que a produção social do jogador de futebol moderno consiste num processo educativo, disciplinador e civilizatório.

    Pode-se apontar determinadas proximidades e semelhanças entre o processo de formação do sujeito moderno e aquele que é adotado no treinamento do corpo no esporte. Em ambos, parece haver sacrifícios. A lógica do sacrifício é compartilhada pelo esporte, podendo ser observada na formação do jogador de futebol e durante o exercício da carreira, pois a tensão entre vida profissional e pessoal é constante nos debates entre jogadores, técnicos e dirigentes.


4.3 - Principais sacrifícios na formação do jogador de futebol

Tabela 02: Sacrifícios na formação do jogador de futebol


Fonte: Pesquisa de campo - 2002

    A nossa pesquisa revela que os principais sacrifícios na formação do jogador de futebol são as concentrações (50%), a renúncia da vida pessoal (26,8) e os treinamentos excessivos (23,2%). Em relação a este último, inclui-se os treinamentos físicos, técnicos e táticos. As concentrações podem ser entendidas como uma forma de controle total do atleta, implica no domínio do corpo e da alma. O objetivo é deixar os atletas separado do mundo extra-futebol. Na verdade, pode-se concluir que o futebol moderno exige um ascetismo profissional praticamente religioso, tendo no futebol um fim em si mesmo.

    É de amplo conhecimento um movimento contestatório da forma de concentrações no futebol brasileiro que surgiu no SC Corinthians Paulista na década de 1980, sendo liderado por Sócrates, Casagrande2 e outros.

    A lógica do sacrifício é inerente aos treinamentos esportivos. Nestes o corpo é visto como um objeto manipulável e peracionalizável, comparável a uma máquina. Então, sendo o corpo comparável a uma máquina, deve-se lembrar que possue peças substituíveis, reparáveis em caso de problemas de funcionamento.

    Uma análise profunda desta questão pode nos levar a entender que o jogador perde parte considerável do controle sobre seu corpo e sua vida em detrimento do crescimento do controle que os clubes assumem sobre o mesmo. Isto continua sendo substancial mesmo depois da abolição do passe. Pois os treinamentos e as concentrações consumem muito tempo da vida dos jogadores. Portanto, a o processo de formação do jogador de futebol é especial, exige um tremendo sacrifício por parte do atleta. Isso precisa ficar evidente para combater discurso do senso comum segundo o qual a vida de jogador de futebol é moleza, formada por jogos, brincadeiras, apenas por momentos agradáveis. Este sacrifícios mencionados anteriormente pode ajudar-nos a explicar as razões porque a grande maioria do jogadores de futebol no Brasil têm origem nas classes menos abastadas, médias e populares. Pois, segundo Medina (2001), os jovens de famílias ricas mostram menos disposição em se submeterem ao conjunto de exercícios, esforços e sacrifícios inerentes ao mundo do futebol, especialmente ao futebol profissional. Esta tese, para ter credibilidade, requer um estudo empírico mais acurado, o que não pode ser feito nos limites do presente trabalho, e nem está dentro dos propósitos no momento.


4.4 - Motivação profissional

Tabela 03: Motivação pelo futebol


Fonte: Pesquisa de campo - 2002

    A tabela 03 apresenta a distribuição da motivação profissional dos atletas pesquisados. A pergunta colocada era a seguinte: Por quê escolheu o futebol como profissão? Para 21,4% (12 atletas), escolheram o futebol porque pretendem enriquecer através dele. Este grupo representa atletas que tem um projeto de vida baseado no cálculo, acreditando que o futebol é o canal mais adequado para realiza-lo. O incentivo da família aparece como terceiro fator mais importante, com 14,3%. Neste caso, o futebol como profissão é um projeto mais amplo, representa a possibilidade de mobilidade social para toda a família, e não apenas para o atleta. Outros estudos apontam esta tendência e a relevância da família como estímulo ao futebol (Araújo, 1980).

    A seleção brasileira aparece como motivação para o futebol para 10,7% dos pesquisados. Entre estes, além do valor simbólico que é representar a pátria através da seleção, está a possibilidade de valorização do passe e do salário. Jogar na seleção significa exposição no mercado futebolístico e conseqüentemente a ampliação do mercado de trabalho.

    Os 28 atletas (50%) que apontaram o fato de serem dotados de “dom” como principal motivo para escolherem o futebol como profissão nos surpreendeu, pois esperávamos maior freqüência no item “enriquecer”, devido a atual valorização econômica da profissão de jogador de futebol. Entretanto, pode-se cogitar que o dom indica atributos naturais para esta atividade, bem como eventual existência de uma “vocação” para o futebol. Este tem um valor em si, é uma causa, uma fonte de realização. Neste sentido, seria conveniente traçar um paralelo, se houvesse espaço neste trabalho, entre a vocação para o futebol (do jovem brasileiro) e a vocação do jovem cientista na Alemanha e nos Estados Unidos, tomando como referência o trabalho de Weber (1968), para quem certas características do cientista, dependem também “[...] - de um dom pessoal e de maneira alguma se confunde com os conhecimentos científicos de que seja possuidora uma pessoa” (Weber, 1968: 23).

    A vocação para determinadas áreas faz com que o sujeito vocacionado viva somente para sua vocação, atropelando sua vida pessoal, não apenas no momento de formação (Weber, 1968: 24). Como ressalta Weber, há grandes prejuízos para a vida interior do cientista.

    Tal fato se reflete na formação e vida do jogador de futebol, onde a vida pessoas é sacrificada desde cedo. Os jogadores revelaram na pesquisa que os principais sacrifícios são renunciar á vida pessoal, as concentrações e os treinamentos excessivos. Esta vocação indica que a profissão tem um valor em si, proporciona sentido, auto-realização, algo muito do que a remuneração. É assim que podemos entender os motivos pelos quais jovens se dedicam ao futebol e à ciência, além de outros ofícios.

5. Modernização no futebol brasileiro:
a intervenção científica na formação do jogador de futebol

5.1. O Advento dos Centros de Treinamento no futebol brasileiro

    No Brasil, os Centros de Treinamentos fazem parte de um movimento de modernização dos clubes iniciado na década de 80. Trata-se de uma tentativa de formar novos jogadores no Brasil, o que revela um alinhamento com os padrões de formação no futebol mundial, padronizando os métodos e técnicas. Estes são elementos da modernização porque passa o nosso futebol e foram proporcionados por parcerias entre os clubes e as empresas. Pode-se pensar estes centros como verdadeiros laboratórios de formação e preparação de atletas, implementando uma nova concepção de futebol competitivo, onde a preparação física e tática ganha relevo especial.

    Os CT3s utilizam tecnologias e valoriza conhecimentos científicos e novos profissionais, como preparadores físicos, fisiologistas, supervisores, nutricionistas, psicólogos e outros na formação de atletas. O que até então era desprezado no Brasil. De fato, “Os CTs consistem, portanto, em laboratórios de novos projetos que atendam a uma escala mais ampliada de formação, preparação, competitividade e negociação de atletas, preferencialmente para o exterior, contemplando uma demanda internacionalizada de circulação no mercado de jogadores” (Toledo, 2002:136). Entre as virtudes nos atletas fabricados em CTs estão: disciplina, pontualidade, capacidade de adaptação, técnica, preparação física4. A disciplina deve-se em parte pelo confinamento do atleta numa estrutura especialmente voltada para tal fim, além de seguir uma rigorosa rotina de treinamentos, testes, preparação física e reparações médicas, os CTs separam os atletas do mundo exterior. Trata-se de um regime militar adaptado ao futebol, onde o disciplinamento dá-se também através de multas para intimidar os atrasos e faltas aos treinos. Os clubes utilizam manuais de conduta, cartilhas de comportamento, como São Paulo, Palmeiras, Inter e outros.

    As mudanças no futebol implicaram na necessidade de novas pedagogias na formação de atletas e no condicionamento tático. Tais pedagogias proporcionariam, além do adestramento e manutenção do preparo técnico, físico e moral dos jogadores, ciclos mais abstratos e sistematizados de assimilação da técnica, bem como mecanismos capazes de incrementar a capacidade de aprendizagem do atleta.

    Entre as inovações que as novas pedagogias proporcionaram, está à gravação de treinamentos, avaliação individual do atleta, cine-vídeo, treinos com paredão metálico, com viseiras, metodologias informacionais, jogos virtuais. Isso exige uma formação mais ampla, diga-se, globalista. Tal perspectiva sustenta o trabalho adotado no SC Internacional a partir de 1997, quando ocorreu uma reformulação do departamento de futebol e nova integração entre os setores ligados à formação de jogadores, bem como uma maior intervenção científica nos treinamentos e na preparação dos atletas. Algo semelhante havia acontecido em outros grandes clubes brasileiros, como o São Paulo ainda na década de 1980.

    No caso do São Paulo, é preciso frisar que o movimento de transformação do departamento de futebol em laboratório de fabricação de jogadores, data de 1986, momento no qual se passa a utilizar a medicina especializada e a fisiologia do esforço. Assim, segundo o administrador do futebol profissional do São Paulo, Marco Aurélio Cunha: “[...] daquele trabalho agregado entre departamento médico e comissão técnica, todos agindo com um instrumental fundamental, os dados da fisiologia, ‘nasce’, entre outros meninos então franzinos, craques como Cafu, Muller, Juninho [...]” (A Gazeta Esportiva, 16/11/1986; 23/1/1997).

    Na verdade, a década de 90 marca a consolidação do modelo jogador-máquina. Produto da do esquadrinhamento do corpo do atleta por intermédio da ciência esportiva. Talvez o maior exemplo deste tipo de atleta seja Ronaldo Nazário ou famoso Ronaldinho goleador do campeonato mundial de 2002.

    Trata-se de um jogador criado na era do computador. Pois, “Com ajuda de um aparelho de musculação informatizado (ele) mudou por completo sua força física nos últimos dois anos: passou de 76 para 80 quilos e cresceu de 1,76m para 1,82m” (O Globo, 20/02/96). O jogador-máquina é normal, paciente e não se mete em confusões, obediente aos esquemas táticos. Rivaldo como exemplo de jogador moderno, marca, ataca e faz gols, atende os esquemas, é disciplinado. O advento deste tipo de jogador é mais uma faceta da modernidade no futebol brasileiro, em que o mesmo é tratado como peça, uma coisa, manipulável.

    O São Paulo adotou procedimentos de avaliação dos jogadores, medição do rendimento, capacidade e como adequar seus jogadores ao estilo do técnico. Utilizou a filmagem de treinos e jogos, criando um trabalho de laboratório. O que aconteceu no SC Internacional com Medina pós-1997.


5.2. Modernização e futebol científico no Sport Club Internacional

    A modernização do departamento de futebol do SC Internacional teve como base inicial a criação de alguns projetos. Entre os mais importantes citamos: (1) Modernização e remodelação de todos a estrutura do departamento de futebol; (2) Criação do Internacional Data Center (o Intercenter), uma rede de informática com 14 computadores no Beira-Rio contendo programas específicos para o futebol, como jogos virtuais, modelos de técnicas, esquemas táticos, simulações de jogadas; (3) Criação do departamento de psicologia e pedagogia; (4) Cine-vídeo; (5) Construção de módulos de treinamentos específicos para as categorias de base; (6) Promoção de palestras com especialistas em futebol (técnico, atleta, pesquisador etc.) para os jogadores das categorias de base; (7) Programa de integração entre as categorias inferiores e profissional; (8) Criação de um modelo tático único para toda as categorias de base até os profissionais.

5.2.1. Novas técnicas de treinamento

    Ao elaborar novos módulos de treinamento para aplicar no SC Internacional, Medina consultou jogador consagrado e especialista em chutes forte e de efeito como Rivelino e Neto, visando aperfeiçoar as técnicas de chute. Utilizou também métodos de treinamentos de outros esportes coletivos. Em 1994, Telê Santana auxiliou Medina a desenvolver a técnica de treinamento que utiliza uma cesta para ensinar e aperfeiçoar lançamentos, visando melhorar a precisão de passes e lançamentos de longa distância. O treino com a cesta utiliza-se ainda do paredão metálico que consiste basicamente em “[...] uma espécie de paredão metálico com várias marcações e uma cesta. O jogador deve acertar as marcas na parede ou tentar colocar a bola na cesta, para aprimorar a precisão dos lançamentos” (Zero Hora, 17/05/1997, Esportes, p.06).Esta técnica consiste em colocar cesta a certas distâncias e ordenar que os jogadores lancem bolas tentando acerta-las dentro da cesta. Com esta técnica, Telê Santana ensinou lançamentos a Raí, Palhinha, Juninho Paulista, Muller e outros grandes atletas.


Lecturas: Educación Física y Deportes · http://www.efdeportes.com · Año 8 · Nº 57   sigue Ü