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A educação corporal no aformoseamento da cidade de Fortaleza |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 57 - Febrero de 2003 |
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Esta foi a forma encontrada pelos "cidadães" para não serem agredidos por "seres inferiores pela raça, pela falta de educação doméstica e cívica" no desenvolvimento de aformoseamento da cidade, ao mesmo tempo em que se combatia o aumento da criminalidade, prostituição e da mendicância mantendo estes que foram " criados na satisfação de sua índole má e péssimos instintos". Nas palavras de Neves (2000), a seguinte afirmação:
...a necessidade que começa a se formar nesses instante é de manter os retirantes fora de um limite de contato, longe dos espaços públicos frequentados principalmente pelas elites aburguesadas da capital.(...) cada vez mais esta necessidade se manisfestará, alcançando as atitudes individuais e coletivas, isoladas ou institucionalizadas. (...).Controlar os movimentos dos retirantes, impedir sua livre circulação pelas cidades e até por todo o território do estado, vai ser a principal medida a ser implementada pelos governos provinciais ou estaduais desde então... (Neves, 2000, p.49).
Das condições precárias dos acampamentos, o grande sanitarista Rodopho Theophilo5 já denunciava que estes mais pareciam depositários fedidos de carnes humanas. Assim, no acumular de tantas secas e experiências, surgem do relacionamento, dos interesses conflitantes dos atores envolvidos, a necessidade de "novas atitudes com relação ao corpo, à higiene e à moral" (Neves, 2000, p. 53). Implementam-se novas tecnologias e saberes. Entre eles, o saber do médico.
Para muitos sertanejos, acostumados às rezadeiras, às raízes, às curandeiras que tiravam o "mau-olhado e os "quebrantos", este foi o primeiro contato com a chamada "medicina oficial". Se o saber médico trouxe alívio, também trouxe indignação pela invasão da intimidade de seu corpo, além do choque cultural entre o saber médico e o saber popular. Acompanhemos a seguinte passagem:
...Estas disposições geravam novas disciplinas e, como não poderia deixar de ser, novos conflitos e resistências. De um lado, os retirantes- normalmente pequenos proprietários e arrendatários que praticavam uma agricultura familiar de subsistência associada (ou não) a uma pecuária rudimentar - tratavam contato com uma nova forma de vida em comum, mais coletiva, dividindo barracas, banheiros, postos de saúde e refeitórios, ao mesmo tempo em que se relacionavam com novas tecnologias de trabalho- a divisão de tarefas e a obediência ao chefe - e de higiene- do tipo"obturação hidráulica " e "descarga geral" dos banheiros. De outro lado, as pressões sobre os hábitos comuns dos retirantes, especialmente de higiene, geravam descontentamentos e revoltas... (Neves, 2000, p.124).
Em nome dos hábitos higiênicos, a disciplina e a moralidade passaram a fazer parte da vida da Cidade e dos que viviam à sua margem. A preocupação dos reformadores sociais era de que a falta de educação desta gente miserável gerasse, além de uma "massa de mão-de-obra desqualificada e circulante", os focos das infeções das doenças corporal e espiritual, daí o dever moral e científico de controlar e disciplinar seus habitantes. Para tanto, se fazia necessário intervir, racionalizar e organizar o espaço urbano para sair do atraso da fome, da seca, do rural, das crendices populares, vícios, preguiça, prostituição e da criminalidade.
Segundo Neves (2000, p.77), "os investimentos de normalização urbano-social em Fortaleza" ocorreram com maior frequência a partir dos governos de 1896 a 1930, o que alinhava ao projeto nacional de modernização, assim como era coerente com os interesses de um grupo dominante que tinha como anseio o progresso das atividades comerciais e industriais.
A institucionalização da higiene no combate o ócio e a imoralidadeNesta trajetória, tomando 1930 como marco histórico, a caridade, o paternalismo e o assistencialismo passam das entidades benefientes para as "fundação de organismos, na maioria estatais, de apoio ou estímulo aos "trabalhadores", "operários", "agricultores" ou "pequenos produtores", segundo Neves (2000, p.86).
O medo do ócio das massas, foi fruto da preocupação das autoridades, pois, nesta se encontrava a semente adormecida do mal e de uma catástrofe social. A partir desta idéia se encaminhou, a partir de 1930, o interesse em estudar, disciplinar, controlar, enfim, intervir no tempo livre do trabalhador, pois, na mentalidade de muitos, é do tempo livre (ocioso) que, segundo Sant'Anna (1994, p.20), brotariam "tanto o erro, a irregularidade, como o bem, a salvação social e individual.
Assim, através dos programas e da compreensão do lazer na educação de um corpo que necessitava ser dirigido, corrigido, controlado e fiscalizado institucionamente, ergueu-se a idéia do combate, em nome da boa ordem e dos padrões de decência, à indesejável instituição do ócio, até então vista como coisa imoral. Diante disto, o controle se cristalizava no comportamento vigilante dos setores policiais, que se voltavam com rigidez para os pobres. Desse modo, constata-se a relação entre o poder estabelecido na sociedade e o usuário das atividades recreativas, como demonstrou Jucá, na praia de Iracema, em Fortaleza, na década de 30,
...A presença de pobres, quase sempre "pretos" nas praias e festas públicas, valorizadas pelas pessoas de "boa família", era associada à irresponsabilidade e falta de decência.(...).Os meios de controle e o rigor das sanções impostas variavam, dependendo da posição social dos agentes envolvidos. As rígidas normas morais orientadoras da constante vigilância simbolizavam um sustentáculo repressor da conduta social, onde o ideal e o real nem sempre se coadunavam (Jucá,1996, p. 4).
Conta-nos Linhares que a exploração sociodemográfica e urbanístico o divertimento e a valorização do corpo na praia ocorreram a partir da década de 30. Linhares citou, ainda, que este movimento se deu em outros países, assim como na Praia de Iracema, momento em que," surgiram os primeiros bares à beira-mar, a moda de praia cearense deu o ar de sua graça..." (Linhares,1992, p. 277).
A limpeza do corpo, dos costumes e dos espaços públicos extrapolou os limites dos médicos e juristas, enfim dos reformadores sociais, para tornarem-se um produto explorado economicamente. Foi na Praia de Iracema que, segundo Linhares, desenvolveu-se o primeiro espaço de sociabilidade, lugar que percorria o sujo e o limpo, o doente e o saudável, o rico e o pobre, o permitido e o proibido, como também o caráter conservador e repressivo de uma sociedade tradicionalmente paternalista enquadrada na vida dos fortalezenses. Sobre as mudanças urbanísticas ocorridas no uso do lazer e do corpo neste espaço social, Linhares escreveu:
Antiga Praia do Peixe, que em 1925 recebe a extensão da linha de bondes pela rua dos Tabajaras. Em 1927, com a inauguração da ponte de desembarque, ganha o nome de Praia de Iracema. Ali se desenvolveu o primeiro espaço de socialidade com características de uma cultura de praia, (...)Os banhos de mar, ainda de modo reservado, começavam a atrair a população como forma de lazer coletivo e gratuito, deixando de figurar como tratamento de saúde recomendado pelos médicos...(Linhares, 1992, p. 277).
Neste espaço social, a distinção dos grupos sociais, não poderia ser diferente, também se fez presente do proletariado ao povão na diferenciação do uso do lazer, do corpo e dos costumes vistos como uma forma de exibição de um determinado status social. Daí a educação corporal de uma classe social que se volta para o lazer como forma de distinguir " a união valorativa" do ter e do poder visível, pois, segundo Jucá, "o modo e os meios de diversão e entretenimento envolviam a ânsia de exibir uma situação social de prestígio" excluindo, muitas vezes, os menos favorecidos, como podemos perceber na seguinte citação:
Quanto aos pobres, as opções encolhiam, restando apenas a participação em festas religiosas ou algumas atividades singelas. (...)Desse modo constata-se a relação entre o poder estabelecido na sociedade e o usuário das atividades recreativas. O controle se cristalizava no comportamente vigilante dos setores policiais, que se voltavam com rigidez para os pobres. As regras que orientavam a decência e o moralismo deviam ser cumpridas à risca, sobretudo por pessoas de condição social subalterna...(Jucá,1996, p.24).
Considerações finaisAs preocupações iniciais das autoridades e dos habitantes do centro urbano de Fortaleza acerca a degradação moral e física trazida pelos retirantes, com suas almas e corpos miseráveis transformaram-se no cuidado do que fazer e como ocupá-los, gerando todo um aparato institucionalizado e um saber científico, justificando a higienização nas ações de controle social e o disciplinamento dos corpos, chegando até ao lazer do trabalhador.
O lazer tornou-se um direito, contudo, nasceu da preocupação de algumas instituições de que o tempo livre não se transformasse em um momento de "desperdício" ou de "focos de contágio" ao corpo e ao meio urbano.
Modernizar o País significou corrigir, controlar, reprimir e evitar costumes ditos "coloniais", criando uma imagem do Ceará pelo corpos higienizados cheio de saúde, livre das ignorâncias e produtivo no trabalho, de limpar, sanear, despoluir tudo o que impedia o crescimento socioeconômico e político no Brasil.
Notas
Sobre a Praia de Iracema consultar Linhares (1992, p. 227).
Cf. Neves ( 2000, p. 25).
Segundo Neves (2000, p. 85), O Passeio Público, ao mesmo tempo, significava, na época, a " principal área de lazer e sociabilidade" da cidade e a vitrine ideal para o desfile das elegâncias", um espaço de sociabilidade feito à imagem e semelhança das elites locais, ocupadas em "europeizar-se", o que significava "civilizar-se". A ocupação deste espaço por estes" seres inferiores"em estado de miséria e inanição é, portanto, ofensiva à civilização, à moral e aos bons costumes.
Segundo Neves (2000, p.76), as modificações iniciam em 1896, com o construção de novas ruas e calçamentos, iluminação moderna, um sistema de transporte, enfim toda sorte de equipamentos urbanos, inclusive teatros e cinemas, ao lado de instituições do saber, como a Academia Cearense e o Instituto Histórico do Ceará, que a podiam situar no rumo da modernidade, como pretendiam seus dirigentes. São momentos desse processo a construção do Mercado de Ferro(1897), das principais praças(1902-3) e do "requintado" Teatro josé de Alencar(1910).
Segundo Neves (2000, p. 84) "... não havia uma estrutura sanitária no campo, que mais parecia um " depósito de seres humanos", Os " banheiros", por exemplo, ficavam " à sotavento do abarracamento, no fundo do cercado, ao poente(...) onde os famintos, numa promiscuidade de bestas, defecavam, ficando as fezes expostas às moscas", levando à necessária conclusão de que" aquele atentado à sã higiene não podia deixar de ter conseqüênicas desastradas". Não é à toa que Rodopho Theophilo, com seu olhar higienista, se refere várias vezes àquela população concentrada como uma " esterqueira humana".
Referências bibliográficas
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O POVO, Jornal. A Reclamação, agora, é contra as Corridas de Cavalo. 11/10/1932.
JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. O lazer em Fortaleza (1945-1960). Fortaleza: UFC/NUDOC,1996(Caderno do NUDOC; 18).
LINHARES, Paulo.Cidade de Água e Sal: por um antropologia do litoral Nordeste sem cana e sem açúcar. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1992.
VIGARELLO, Georges. O limpo e o sujo: uma história da higiene corporal. São Paulo:Martins Fontes, [1996].
SANT'ANNA, Denise Bernuzzi de. O Receio dos trabalhos perdidos: Corpo e cidade."Projeto História", São Paulo,(13), jun, 1996,p.121-128.
SANT'ANNA, Denise Bernuzzi de. O Prazer Justificado: História e lazer. São Paulo, 1969/1979- Editora Marco Zero em co-edição com o Programa Nacional do Centenário da República e Bicentenário da Inconfidência Mineira MCT-CNPq, 1994.
FROTA, Luciara Silveira de Aragão e. Documentação Oral e a Temática da Seca: Estudos-Brasília: Centro Gráfico, Senado Federal, 1985.
NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massas no Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, Ceará: Secretaria de Cultura e Desporto, 2000.
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