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A educação corporal no aformoseamento
da cidade de Fortaleza no final do século
XIX e início do século XX

   
Mestre em Educação Brasileira- Faced/UFC.
Professora de Educação Física-UVA.
 
 
Ariza Maria Rocha Lima
arizarocha@zipmail.com.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
Trabalho apresentado no II Congresso Brasileiro de História da Educação, UFRN, Natal, novembro 2002
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 57 - Febrero de 2003

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    Com o interesse em conhecer a educação do corpo no início do século XX na cidade de Fortaleza, vasculhei os jornais locais no intuito de captar pelas notícias as preocupações de uma sociedade que teve suas idéias e ideais refletidos na história social e educacional, ocasionando uma mudança na concepção do ócio para o lazer institucionalizado.

    Percorrer tal caminho é alargar a compreensão da história do homem cearense e seus desdobramentos na cultura corporal. Com tal direcionamento, encontrei nas matérias veiculadas pelo jornal O POVO os sinais dos esportes praticados na praia naquele período. O referido Jornal foi articulador de um debate e das reivindicações de dois banhistas sobre as condições de lazer na praia Praia de Iracema1. As matérias são:

Contra o Foot-ball nas Praias de Banho Escrevem-nos um banhista:
Roga-lhe a fineza de, por meio de seu conceituado jornal, chamar a atenção do sr. Delegado auxiliar desta cidade para o seguinte fato.
Como é do conhecimento de todos, as nossas praias de banho, atualmente grandemente freqüentadas pelo público, estão oferecendo sério perigo aos respectivos banhistas e espectadores, em razão do animado jogo de "foot-ball", travado, ali, todas as tardes.
Efetivamente, para os banhistas que não fazem parte desses "team" impetuosos, é, sem constestação uma eminente ameaça não só a sua epiderme, senão também às de quantos se aventurem a passar em frente ao local do banho.
Mais de uma pessôa tem sido atingida pela bola; e hontem mesmo uma criança de pouco mais de três anos fasendo vitima dum tremendo "schoot", que, milarosamente, não atirou por terra.
Ora, isso, decididamente, não condiz com os nossos faros de civilizados. Como ninguem ignora, atualmente, em qualquer praia de banho da cidade culta, não mais se permite tal pratica.
No Rio, de há muito a policia fez sentir sua ação repressiva contra semelhante abuso... (O POVO, 10/10/1932 ).

    Essa matéria trouxe à tona uma discussão bastante atual. Primeiro, em relação a revolta dos banhistas com o futebol na praia, e, segundo, pela freqüência de evocar o quanto outras cidades são consideradas cultas e modernas por conta do progresso material. Neste sentido, Fortaleza precisava "evoluir" para atingir a sonhada "modernização".

    Continuando a desterrar o passado, o Jornal publicou, de um outro banhista, identificado por Valmiki de Albuquerque, a seguinte resposta:

A Reclamação, agora, é contra as Corridas de Cavalo
A Praia de Iracema não é Pista-afirma um Prejudicado.
Recebemos:
Li hontem no seu jornal uma reclamação contra o jogo de futebol em nossas praias.
Acho-a razoavel, embora me caiba a carapuça, pois sou um dos apreciadores e praticantes desse esporte no referido local.
Entretanto, todos hão de convir que a reclamação melhor ficaria se fosse endereçada contra a perigosa, desenfreada e despropositada correria de cavalos que se pratica na Praia de Iracema, na hora de mais intenso movimento. Os joqueis são mais danosos que os futebolers.
E o peor é que os cavalerianos nenhuma contemplação têm para com os banhistas, expectadores e jogadores.
Eu, em só tarde, fui vitima de dois atentados de um "cavaleiro fantasma", que, por felicidade inaudita, não me deixou prostado,"rente ao sólo patife".
Acho que isto sim, que a policia mui bem avisada se comportará, si proibir em absoluto essas demonstrações hipicas na nossa formosa Praia de Iracema
Seu admirador
Valmiki de Albuquerque (O POVO, 11/10/1932).

    Pelas matérias veiculadas, é possível localizar o lugar social dos indivíduos e o contraste nas suas opções de lazer: o primeiro banhista, em prol de uma sociedade civilizada e culta, apela para a ação repressiva da polícia para conter tamanho "abuso", ou seja, proibir o futebol na praia. No discurso do segundo banhista, encontramos a reivindicação, neste espaço social e público, da defesa do futebol e a reclamação das demostrações hípicas na praia.

    Em comum, as matérias nos apresentam as práticas corporais naquele espaço social. No transcorrer histórico, as práticas corporais passaram por uma mudança na mentalidade social. De ócio e associada à idéia de irresponsabilidade e falta de decência aos bons costumes da boa família, passaram a ser cultuadas como uma necessidade social extensiva a todos. Daí o afloramento da seguinte indagação: em que momento histórico a cidade de Fortaleza passou a institucionalizar o lazer como educação do corpo em proveito da sociedade cearense?

    Minha tese é de que as práticas corporais se redefiniram com a influência da higienização emersa com o crescimento urbano desordenado, as transformações sociais na corrida à modernização do País, a proliferação das epidemias e, ainda, a necessidade de limpar a cidade dos retirantes das secas. Com tal empreendimento evitaria a feiúra da Cidade e dos corpos doentes, se fazia necessário, então, disciplinar e controlar o corpo individual e coletivo para o aformoseamento da Cidade, que vivia sua belle époque.


O pensamento higienista

    O século XVIII foi marcado na Europa pelo início do pensamento de higienização. A voz do médico comandava a reforma social que almejava a limpeza dos locais públicos aos particulares, da intimidade para a rua. No Brasil, este movimento predominou na transição da Monarquia para a República, condizente com o contexto social na corrida de tirar o País de seu atraso econômico e cultural.

    A higiene era a solução para a transformação do corpo, dos espaços e dos costumes dos mais desfavorecidos em prol da manutenção da "ordem e progresso". Neste sentido, Vigarello descreve a ética da pureza como uma solução pedágogica, pois,

É que esse mecanismo dos tempos futuros não é proposto apenas como um instrumento de saúde, mas também como um instrumento de moral: uma limpeza impondo-se cada vez mais, até atingir os hábitos íntimos dos mais humildes.(...)Não se trata, como no século XVIII, de evocar apenas os vigores, trata-se também de evocar os recursos insuspeitados da ordem. A ética das "purezas": "A sujeira nada mais seria do que a insígnia do vício". E o público alvo, longe de ser a burguesia, é evidentemente o povo pobre das cidades... (Vigarello, [1996], p.212).

    Vale destacar que a caçada se dava ao corpo sujo do pobre, e de seus espaços desfavorecidos, considerados como frutos da ignorância e da falta de moral e não das condições de vida atreladas a um modelo social emergente de uma cidade industrial. A limpeza do pobre seria a garantia da eliminação dos ares poluídos de epidemias, causadoras das doenças físicas e dos males morais, como, por exemplo, a prostituição, a preguiça, o ócio e a vadiagem.

    Deste pensamento, surgiu uma série de medidas preventivas, com o objetivo de livrar de impurezas as condutas, comportamentos, enfim, as práticas corporais. Surgiu a mania de se civilizar pelo asseio, tanto visível (os corpos, espaços..) como invisível (o ar, os costumes...). Vejamos esta passagem:

...Ambição que se expressa de modo exemplar com a promoção da intervenção médica no modo de vida familiar e urbano. Na verdade, numa era de modernização das grandes cidades brasileiras, médicos e engenheiros justificam o devassamento das intimidades familiares e físicas a partir da higiente e da saúde. Como se "o fantasma puritano da limpeza encontrasse enfim um pretexto científico" (Sant'Anna, 1996:122).

    Os higienistas, com sua ambição de adaptar-se aos usos e costumes modernos, infiltraram-se nos mais diversos espaços da cidade e na vida de seus habitantes, como, por exemplo, nos hospícios - corporação judicial, alimentação, sexualidade, comportamento e nas práticas corporais - como as esportivas, a gymnastica e as atividades lúdicas nos espaços de descanso e diversão do trabalhador.

    Multiplicaram-se, rapidamente, as campanhas para o cumprimento da exigência de se livrar de toda a sujeira que pudesse corromper o ser humano. Neste contexto, o discurso da higienização tomou para si a função de moralizar, institucionalizando-se na necessidade de inventar, educar, administrar e fiscalizar pelas regras as condutas, comportamentos e costumes, a gestação de um novo homem em um novo corpo. Até então, a Educação Física, que possuía um caráter eminentemente militarista, aceitou a função de garantir a saúde, como se observa a seguir,

... a educação física começa a receber uma atenção especial. Ao contrário dos espartilhos e coletes que moldam o corpo do exterior, sem exigir dele nenhuma força, com os esportes e a ginástica o corpo é chamado a se fortalecer sozinho, utilizando para tanto suas próprias capacidades. A voga do sportman não revela apenas um novo gosto pelo espetáculo do corpo em movimento. Ela atesta uma nova autonomia a ele concedida e sugere uma responsabilidade pessoal, desde então inexpurgável ao ser humano: aquela de criar um corpo novo, "uma nova raça"...( Sant'Anna, 1996, p.124).


O controle social dos retirantes da seca no aformoseamento da cidade de Fortaleza

    No final do século XIX e início do século XX, o Ceará vivia dias de efervescência política, econômica, cultural envoltos à miséria da seca. Fugindo da seca, o retirante do sertão trouxe para Fortaleza a triste realidade da fome e do abandono, o que chocou a classe privilegiada que traçava os planos de "aformoseamento"2 da Cidade e seus dias de belle epóque.

    Sustentar esta massa de famintos pela caridade geraria nesta população o ócio e a preguiça, contudo não poderia deixá-los morrer à míngua, pois, isto feria os princípios do cristianismo. Se, pelo trabalho, o homem se libertaria, as autoridades aproveitaram a massa de retirantes para o "aformoseamento" de Fortaleza, na construção das estradas de ferro para Baturité, por exemplo, além de que esta seria a forma de combater os saques cometidos pelos fugitivos da seca e da fome.

    Para o "aformoseamento", a Câmara Municipal contratou os serviços do arquiteto-engenheiro Adolfo Herbster, com o propósito de disciplinar esteticamente o espaço urbano para que a Cidade pudesse acompanhar os anseios da modernidade. Sobre este processo, Neves descreveu que:

....a remodelação da cidade não se constituía apenas numa técnica de planejamento urbano, mas numa mecânica de controle das atividades desenvolvidas pelos diversos grupos sociais, na qual não havia lugar para miseráveis em busca de uma mutualidade perdida.Os planos de expansão projetavam Fortaleza em direção à civilização de modelo europeu, traçando geometricamente as ruas, praças e bulevares, pretendendo dar-lhe um ar de metrópole. A criação de asilos, hospitais, teatros e outras instituições que constituem o palco da vida urbana moderna foi pensada e planejada a partir deste ano (Neves, 2000, p.25).

    Como a última seca tinha sido em 1845, tudo indicava que as condições climáticas garantiriam um período fértil para a estabilidade urbana, no entanto, a seca de 1877 castigou o homem sertanejo, expulsando-o de sua terra e obrigando-o a procurar abrigo no litoral, levando consigo, além das marcas da fome em seu semblante, o corpo "contaminado" pelas doenças, o desesmpero, mortes, suicídios e os "vícios", aumentando a criminalidade e a prostituição, chocando e abalando os planos de civilização da elite local.

    Para Neves (2000), em termos de intensidade, duração, extensão ou mortalidade, a de 1877 não apresentou alterações em relação às demais secas, no entanto, representou uma mudança no imaginário da população urbana e das autoridades, pois foi a partir dela que a seca passou a ser vista como um fenômeno de caráter social. Neves comentou que:

A seca de 1877- 1880 trouxe novidades no campo das relações de poder que ficaram incorporadas ao imaginário político e social. O impacto deste evento sobre as formas de perceber a pobreza, a migração, a caridade e as responsabilidades sociais não pode ser medido quantitativamente; porém, muitas dessas transformações vieram a compor decsivamente o ambiente cultural no qual a multidão passará a agir durante o século XX e, especificamente, após 1932... (Neves, 2000.p.47-48).

    Uma elite que orgulhamente via nos espaços públicos de sua cidade- como por exemplo, os boulevares, praças, avenidas e o famoso Passeio Público3, entre outros melhoramentos4 a exemplo das metrópoles, serem invadidos por aquelas figuras desfiguradas da seca, estendendo suas mãos sujas e pedindo esmolas pelo "amor de Deus"- se via tomada por um duplo sentimento que se confrontavam: ora se sensibilizavam com o retrato da fome estampado nos rostos e corpos desalinhados daquelas formas sub-humanas, ora se preocupavam com a falta das noções de higiene dos famintos esquálidos que enfeiavam a cidade, empobrecendo o retrato da modernização daquele centro urbano.

    Na luta, não contra a seca, mas contra os famintos da seca, ocorreu um processo de mudança no olhar da elite diante destes retirantes. No meio da confusão de sentimentos de caridade, assistencialismo e paternalismo de uma sociedade liberal, a solução encontrada pela população urbana e suas autoridades foi a de manter os refugiados longe do centro urbano.


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