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Memórias da natureza: Georges Hébert e a educação do corpo
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 55 - Diciembre de 2002 |
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Idéias moralistas, naturalização das práticas sociais, oposições entre vícios e virtudes, retorno à natureza, ela mesma enquadrada em uma concepção própria do período em que Hébert viveu e escreveu sua obra, período atravessado por movimentos naturistas tanto médicos quanto pedagógicos, período em que a natureza selvagem esteve na moda, conforme afirma Delaplasce45. Período em que a vida selvagem é vivenciada também no escotismo, lembrando sempre que a “pedagogia da aventura faz parte do jogo colonial” 46.
Hébert acentua, em suas propostas de educação, a necessidade de ser forte, definindo que “ser forte” significa se desenvolver de uma maneira não só completa, mas completa e útil. A força do “selvagem”, tratado pelas teorias científicas do século XIX como pertencente a “raças inferiores”, é resgatada como modelar para o desenvolvimento do homem e da mulher urbanos e, assim, redimida pelas virtudes que possui. Sua obra combina o fascínio pela potência misteriosa de populações exóticas com processos “científicos” de apropriação de suas forças ocultas pela imitação de seu modo de vida, de sua condição de existência.
Seria esta a razão de sua pouca penetração no Brasil, país que desejava “embranquecer”, e cuja elite buscava imitar comportamentos, hábitos e atitudes do mundo europeu, identificando-se mais com a ginástica sueca, rigorosamente científica e cujos modelos eram europeus? Ou seria talvez a sua atitude um pouco desdenhosa em relação ao processo de afirmação científica vivido pela educação física européia ao longo de todo o século XIX47, de certo modo secundarizado quando enaltece o instinto como grande guia de nossa existência ou, então, quando critica a inclusão de enfadonhos desenvolvimentos de análise muscular uma vez que, para ele, as “atividades vitais são feitas de exercícios naturais e utilitários e para os quais nosso corpo é especialmente construído” 48? Estas indagações não podem ser respondidas no âmbito deste artigo, mas indicam caminhos possíveis para pensar problemáticas contemporâneas acerca das práticas corporais; as ausências, os silêncios são férteis indícios para pensar e escrever a história.
Talvez a busca de um retorno racional à natureza, adaptado à vida em sociedade e, mais precisamente, à vida em sociedades urbanas empreendida por Hébert, tenha o seu similar contemporâneo nos chamados esportes radicais, nos quais a natureza, para aqueles que os praticam, é tão-somente um meio (mais um) para obter uma sensação. A natureza é desnaturalizada e domesticada para tornar-se campo de novos velhos rituais revisitados e vendidos como poderosos elixires anti-stress, como as novas fórmulas de educação da vontade daqueles que podem pagar.
A título de conclusão, algumas indagações podem ser formuladas a partir das idéias aqui desenvolvidas: não haveria hoje um higienismo e por que não dizer um eugenismo contemporâneos verdadeiramente assustadores, concepção que tem acentuado a idéia de ser o corpo um objeto de conhecimento destituído de história e apartado da cultura49? Sendo o corpo um elemento privilegiado na interconexão entre natureza e cultura, uma vez que pertence aos dois mundos -natural e social/biológico e simbólico - seria possível a partir dele esboçar saberes e práticas para se pensar um outro projeto civilizatório50 ? Poderiam as práticas corporais realizadas na natureza contribuir para uma compreensão mais ampliada das problemáticas ecológicas que dizem respeito a todas as formas de vida no planeta?
São tantas as indagações que não cabem nos textos. São tantas as respostas que não alcançam ser lidas. O que fica mesmo são nossas expectativas, experiências, desejos e aspirações do presente a mobilizar nossas incursões sobre uma idéia de passado, sobre a descontinuidade da história buscando conceder-lhe um sentido. Um sentido51 que só o presente pode dar, pois é ele que determina as escolhas52 dos lugares, das pessoas, das ações humanas que vamos tomar no tempo como testemunhos, como indícios e sinais tanto de aspirações como de tiranias e redenção de sociedades inteiras.
Notas
Gagnebin, 1994, p. 3
Georges Hébert nasceu em Paris em 1875 e morreu em Deauville em 1957.
Este método procurou distinguir-se das ginásticas analíticas assim como da especialização esportiva. Ver a respeito Hébert , 1927, 1928 e 1941a; Cambier, 1930, p. 437-489; Pereira, [s.d.], p. 443-486; Langlade & Langlade ,1986, p. 268-290; Laty, 1996 , p. 263-266, entre outros.
Ver Hébert, 1941a, p. 1.
Cambier, 1930, p. 441.
Hébert , 1941a, p. 1 e 6 : “(...) l’homme à l’état de nature, le sauvage par exemple, obligé de mener une vie active pour subvenir à ses besoins et assurer sa sécurité, réalise son développement physique integral en vivant au grand air dans l’état de quasi-nudité et en exécutant uniquement les exercices naturels et utilitaires qui sont ceux de notre espèce et pour lesquels notre corps est spécialement bati et organise.(...) Ce retour à l’activité physique dans les conditions les plus naturelles possibles constitue ce que nous appelons la Méthode Naturelle.”
Ver especialmente a obra Emílio ou da educação (Rousseau , 1992).
Ver a respeito Vigarello,1978, p.162-190 e 1993, p. 219-232; Sant’Anna, 1993, p. 243-265.
Ver Hébert,1941a , p. 4.
Hébert, 1941a , p.15.
Hébert, 1941a , p.15: “(...) La culture du corps pour les corps ou pour la domination par la force brutale n’a jamais rien produit de beau, de bon, ni d’élevé ; elle mène toujours, aujourd’hui comme hier, aux pires excès moraux et sociaux. »
Métoudi e Vigarello ,1980 , p. 20.
Andrieu , 1995, p.36 : “(…) La beauté sauvage, la beauté antique et la beauté d’un organisme pleinement adapté à l’éffort qu’il doit produire, sont trois images portées par la même analyse. Contre la société qui enlaidit le retour à la nature s’impose.(...) Le beau naturel apparaît comme le contraire du beau civilisé, du beau fabriqué, à la mode, du beau conventionnel. Il découle d’une adaptation parfaite aux lois de la nature et cette adaptation se travaille essentiellement par toutes les formes de locomotion dont l’homme est capable à l’état de nature. Les muscles développés par un travail naturel donnent à l’individu, intégralement développé, des formes semblables à celles des athlètes antiques et tout particulièrment celles d’un athlète léger .
Le beau naturel est en quelque sorte un beau utile... ”Hébert apud Métoudi e Vigarello, 1980, p. 21-22 : “(…)La Méthode Naturelle est un vaste système de développement et d’entretien physique conforme à la nature, imité de celui des êtres primitifs agissant par instinct et par besoin ”.
Métoudi e Vigarello, op. cit. , p.21. “(…)La nature n’est ni lieu d’expérience, ni lieu de vérification objective. Elle n’est même pas le thème d’un véritable connaissance. Elle est valeur active. Elle parle : il suffit de s’abandonner à l’instinct et à l’intuition. (...) Imitation du sauvage, instinct et intuition deviennent les clefs de toute conceptualisation : Hébert est l’apologue de l’antiscience ”.
Delaplasce, 2000 ; ver especialmente p. 22-30.
Ver , por exemplo, Azevedo [s.d.] ; Marinho, 1952; Ramos, 1944 ; Ramos, 1982; Bonorino et al., 1931, entre outros.
Hébert , 1927, p.4 -5.
“Companhia do Brasil”; sobre este periódico ver o excelente trabalho de Goellner, 1999.
Revista Educação Physica , n. 1 , p.3, 1932.
Ver a revista Educação Physica , n. 8 , 1937.
Revista Educação Physica , n. 8 , 1937.
A ditadura do Estado Novo ocorreu entre 1937 e 1945; sobre o tema ver Fausto, 1984; Sola, 1984, entre outros. O Brasil viveria, ainda, uma segunda ditadura no século XX, a ditadura militar que ocorreu entre 1964 e 1979.
Ver a respeito as análises de Goellner, 1999, p.6-7.
Ver revista Educação Physica , n. 17 , p. 24-26, 1938.
Para este estudo foram consultados 44 exemplares dos 86 existentes.
Hébert, 1928 , p.245 : “(…)est individualiste et égoïste en ce sens qu’elle sacrifie la masse à l’individu; en fin est presque immorale, socialment parlant, en poussant trop souvent par le travail spectaculaire continuel, les jeunes gens à ‘vendre leurs muscles’ ”.
Hébert , 1942, p.12.
Hébert, 1941b, p. 10, 11, 66 e 67.
Hébert, 1941c , p.10, 11, 61, 62 e 63.
Hébert, 1941b , p.11.
Idem, p.66.
Idem, ibidem.
Hébert, 1941b, p.10, 11, 61, 62 e 63.
Hébert, 1941c, p.10.
Hébert, 1941c, p.10.
Hébert, 1941c, p.61.
Idem, ibidem.
Hébert, 1941d , p.10.
Hébert, 1943, p 27.
Idem, ibidem.
Rousseau, 1992, p. 111.
Hébert, 1943, p. 27.
Idem, p. 28.
Delaplasce, 2000, p.82.
Idem, p.79.
Tema desenvolvido em nossas pesquisas de mestrado e doutorado, e publicadas respectivamente em Educação Física: raízes européias e Brasil, 1994 (2.ed. em 2001) e Imagens da Educação no corpo: estudo a partir da ginástica francesa no século XIX , 1998 (2.ed. em 2002).
Ver a respeito as análises empreendidas por Métoudi e Vigarello , 1980, p.23-24.
Ver a respeito Sant’Anna , 1995 e 2001; Fraga , 2001.
Ver a respeito o denso trabalho de Silva , 2001.
Ver Bloch [s.d.].
Ver Febvre, 1989, p.19
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