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O futebol, nacionalismo e tradição. |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 47 - Abril de 2002 |
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Mesmo antes de 1914 alguns deles [os esportes] tinham se difundido amplamente na classe operária. O futebol é o exemplo mais característico. Estes fatos determinaram a adoção de um critério imposto pelas classes superioras, o amadorismo. O amadorismo foi resultado da proibição ou marginalização pertinaz dos praticantes profissionais nos esportes da época. O grau de amador só poderia ser conferido à pessoas que dedicassem mais tempo ao esporte que um operário poderia se dedicar.
A diferença mais acentuada entre o futebol inglês e o brasileiro nos seus primórdios diz respeito à profissionalização. Na Inglaterra ela foi primordial para a popularização do esporte, no Brasil a profissionalização só ocorreu porque os jogadores estavam emigrando para países que pagavam salários mensais (principalmente Argentina, Uruguai, Espanha e Itália).
Contudo alguns fatos podem ser hipotetizados como parte de um conflito de classe, como as constantes sisões entre as ligas estaduais. Nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná formam criadas ligas alternativas que permitiam a presença de negros e proletários, pagando gratificações por vitória, ou pelo menos, flexibilizando o horário de trabalho para que estes jogadores pudessem treinar e arranjando cargos mais amenos, onde o trabalho físico não exigisse tanto esforço (era comum, por exemplo, jogadores serem promovidos de operário padrão a supervisor). Este tipo de pagamento foi chamado pelos pesquisadores do futebol de "profissionalismo marrom".
Não podemos categoricamente afirmar que tais conflitos tratavam-se de lutas de classe. Pois os defensores da profissionalização eram os dirigentes de alguns clubes e não os jogadores proletários ou os torcedores operários. Estes dirigentes também pertenciam à elite, contudo, por motivos diversos acreditavam que o futebol deveria ser profissional. Por exemplo, o Vasco da Gama defendia o profissionalismo pelo fato de se sentirem descriminados como um time basicamente de origem portuguesa; já o Bangu, time de origem inglesa, pertencente à fábrica de tecidos situada neste afastado bairro, pendia para a profissionalização já que as elites (diretores ingleses da empresa) não eram em número suficientes para montar uma equipe, necessitando desta forma, da participação de alguns operários para conseguir completar o time; alguns dirigentes de outras equipes apenas observavam o que acontecia na Europa e acreditavam naquele modelo como incontestável, supunham que as diretrizes tomadas nos países europeus eram o melhor para o Brasil.
Especulações sobre o Futebol e sua TradiçãoI Hobsbawn em parceria com Terence Ranger foram os organizadores de uma obra intitulada "A Invenção das Tradições", esta obra tratando-se de esportes (com especial referência ao futebol) colabora para esclarecer os primórdios dessas atividades. Hobsbawn no último capítulo, "A Produção em Massa de Tradições: Europa, 1879 a 1914", dedica boa parte do seu ensaio para justificar o surgimento e a massificação dos esportes no final do século XIX e início do XX.
Para compreendermos o surgimento dos esportes devemos primeiramente conceituar o que é uma tradição inventada. Segundo a análise marxista de Hobsbawn e Ranger, "Por "tradição inventada" entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado." Os autores ainda esclarecem que o termo "tradição inventada" é empregado em grandes contextos, mas em contextos nunca ilimitados, isto é, o futebol pode ser visto como uma nova tradição européia, mas não significa que também era uma nova tradição no Brasil.
Assim, descobrir se o futebol pode ser considerado (ou não) uma "tradição inventada" no Brasil ainda está para ser pesquisado. O modelo europeu mostra o caminho a ser percorrido na pesquisa, mas não pode ser meramente transposto. Contudo neste trabalho nos ateremos ao estudo realizado nos países europeus, tentando mostrar alguns nuances entre a prática esportiva européia e a brasileira, o que inviabiliza a utilização de um único modelo metodológico.
Cabe distinguir também que existe uma significativa diferença entre as tradições - inventadas ou não - sugeridas por Hobsbawn e Ranger e, os costumes termo bastante utilizado por um outro pesquisador que serve de referência metodológica para as pesquisas sobre futebol, Norbert Elias. Enquanto Elias vê nos costumes algo em constante mudança, dinâmico, o que remete para um processo que pode acentuar o aumento ou diminuição de civilidade. Hobsbawn e Ranger afirmam que as tradições têm como característica primária a invariabilidade, o estanque, não podendo desta forma, ser deduzido processo algum, muito pelo contrário, apenas deduziu-se nas tradições inventadas a tentativa oficial ou não de denotar um caráter de permanência. Outras características fundamentais das tradições que não estão necessariamente presentes nos costumes são a falta de função simbólica e também a falta de rituais importantes, além de ter como justificativa apenas técnicas e nenhuma ação ideológica.
Foram delimitadas três categorias de "tradições inventadas" sobrepostas: a primeira tenta demonstrar a coesão social de um determinado agrupamento social ou comunidade; a segunda tem por finalidade legitimar instituições e/ou figuras públicas dando-lhes status social e/ou econômico; a terceira categoria diz respeito à socialização, imposição de idéias, valores ou impor determinados comportamentos.
A "invenção das tradições" está intimamente ligada ao surgimento das nações e do nacionalismo. Vejamos na próxima citação como as invenções são incorporadas aos padrões de comportamentos, muitos deles já universalizados, logo após explicitaremos o quanto estas "tradições" estão ligadas à prática do futebol, principalmente em jogos internacionais.
Pode-se observar uma nítida diferença entre as práticas antigas e as inventadas. As primeiras eram práticas sociais específicas e altamente coercivas, enquanto as últimas tendiam a ser bastante gerais e vagas quanto à natureza dos valores, direitos e obrigações que procuravam inculcar nos membros de um determinado grupo: "patriotismo", "lealdade", "dever", "as regras do jogo", "o espírito escolar", e assim por diante. Porém, embora o conteúdo do patriotismo britânico ou norte-americano fosse evidentemente mal definido, mesmo que geralmente especificado em comentários associados a ocasiões rituais, as práticas que o simbolizavam eram praticamente compulsórias - como, por exemplo, o levantar-se para cantar o hino nacional na Grã-Bretanha, o hasteamento da bandeira das escolas norte-americanas. Parece que o elemento crucial foi a invenção de sinais de associação a uma agremiação que continham toda uma carga simbólica e emocional, ao invés da criação de estatutos e do estabelecimento de objetivos de associação. A importância destes sinais residia justamente em sua universalidade indefinida [...].
Pode-se constatar que ao contrário das tradições antigas e os costumes, as tradições inventadas "simulam" ter aspectos simbólicos, porém, como o autor descreve são apenas generalizações, o que dificulta a conceituação ou o entendimento racional - como exemplo relacionado ao esporte podemos citar o termo "espírito esportivo" - este tipo de termo na verdade não contém nenhum conteúdo simbólico, apenas serve para condicionar o praticante de atividades esportivas a não cometer nenhuma atitude violenta quando estiver praticando o esporte ou relevar quando um adversário tiver tais atitudes.
Desta forma, podemos afirmar categoricamente que o termo adequado para o exemplo inglês de cantar o hino ou o americano de hastear a bandeira, pode ser apropriado da Psicologia Comportamental: condicionamento - qualquer comportamento imposto através da repetição, cuja base é feita de reforços (tanto positivos quanto negativos), ou seja, quando um ato é espontâneo pelas inúmeras vezes que é visualizado e/ou repetido.
Ainda sobre os exemplos dados por Hobsbawn, notamos que algumas das práticas condicionadas estão vinculadas até a atualidade com o futebol. Pois, se notarmos jogos entre seleções, constataremos que será cantado o hino, todos os espectadores ficarão de pé, possivelmente também será hasteada as bandeiras dos países que disputarão a partida e do local sede, se isto não ocorrer pelo menos as equipes entrarão em campo segurando a bandeira do seu país e posteriormente os capitães trocarão flâmulas, representando a cordialidade existente entre os países adversários.
II Como já foi argumentado o surgimento do futebol no Brasil deve ser analisado com mais rigor para descobrir se sua introdução no país foi uma "tradição inventada" ou apenas um ato espontâneo. Contudo, posteriormente à profissionalização mundial do referido esporte, algumas características podem ser enquadradas como "sintomas" da tradição inventada na Europa, nas crônicas de Nelson Rodrigues, exemplificando, podemos notar a acentuada ligação entre o selecionado e a nação e através desta ligação ao patriotismo (leia-se nacionalismo exacerbado). Vejamos um trecho dos escritos deste autor: "Até o Armando Nogueira, que separa o Brasil do escrete, a pátria do futebol, pingava patriotismo. Com esporas e penacho, e mais uns bigodões, ele seria um autêntico dragão de Pedro Américo. E nenhum de nós ficava atrás, nos arrancos de civismo. Então, no meu canto, eu descobri o óbvio ensurdecedor, ou seja: - que o ressentimento funda uma nação. Nunca fomos tão brasileiros, tão Brasil."
A Grã-bretanha foi o precursor neste amálgama entre futebol e ideal nacional, indiferente da classe social dos seus praticantes e espectadores. Tanto os esportes voltados à classe média - como o tênis, o golfe, o rugby e o críquete -, quanto os esportes adotados pela classe operária - como o futebol, o boxe e a luta livre - eram utilizados como ideologia, podendo ser considerados "tradições inventadas" no plano social e políticas. Cuja finalidade era servir de identidade nacional além de criar a falsa idéia da existência de uma comunidade artificialmente criada em torno do esporte.
Nos primórdios dos esportes outro fato interessante ocorreu: os ideais nacionalistas à medida que aumentavam não suportavam a pressão de saber que o esporte teve origem em outro país. Assim, eram modificadas as regras e, ao nome do esporte era acrescentado o nome do país: por exemplo, pode-se citar o rugby galês, o futebol irlandês, mais tarde o próprio basquete nba (norte-americano).
No Brasil, após as vitórias na Copa do Mundo de 1958 e de 1962, respectivamente na Suécia e Chile, incentivados pela imprensa brasileira surgiu uma corrente que afirmava que o futebol incorporou o estilo brasileiro, baseado na técnica criativa dos seus jogadores, ou como preferem os antropólogos na "ginga", "malícia" e "jeitinho" brasileiro, superando então a rígida tática implantada pelos europeus. Esta corrente não chegou ao extremo de sugerir uma mudança de nome, mas buscava de qualquer forma diferenciar o futebol praticado no Brasil do futebol praticado nos outros países. Exemplifica-se: os cronistas que até então acreditavam que os jogadores brasileiros não estavam preparados para vencer e que tinham "tremedeira" nos jogos decisivos mudam sua opinião radicalmente, Garrincha e Pelé maiores referenciais brasileiros, tornam-se heróis nacionais, o primeiro como representação do invertido, símbolo da imagem pictórica, o que deu certo pelo caminho errado. Apelidado de anjo negro ou anjo das pernas tornas, Garrincha até a atualidade é o anti-herói, a figura viva de Macunaíma imortalizada na obra de Mário de Andrade reencarnada nos campos de futebol. O segundo, Pelé, viria a se tornar depois o "rei do futebol", maior jogador de futebol do mundo, eleito o atleta do século. Mas neste período pós bi-campeonato sua função foi servir de exemplo para a valorização do negro, mostrou que a "mestiçagem" brasileira era uma virtude e, não motivo de vergonha como acreditava o presidente Epitácio Pessoa, que em 1921 as vésperas do campeonato sul-americano, deu uma ordem direta para o presidente da CBF evitar a convocação de negros.
O racismo se acentuou com a derrota na Copa do Mundo de 1950, os dois jogadores responsabilizados pela derrota brasileira eram mulatos: o goleiro Barbosa pelos gols sofridos e, Bigode por ter levado um tapa na face depois de uma discussão com o capitão uruguaio Obdúlio Varela. Pelé dissipou a idéia racista que o negro brasileiro era o responsável pelas nossas constantes derrotas, além de representar também a juventude, a perspectiva, pois na copa de 1958 tinha apenas 17 anos. Como acreditava Nelson Rodrigues, Pelé não era apenas significado de um futuro promissor para o futebol brasileiro, ele representava um futuro promissor para a nação.
Porém, Hobsbawn acentua que embora fundamental para o nacionalismo este não era o fator mais importante no desenvolvimento do futebol. Era mais importante os laços de identidade que uniam a população de um determinado Estado, amenizando as diferenças regionais e locais, mesmo que este mecanismo tenha acontecido através de influências comerciais. Também era relevante, que o esporte - no caso inglês o futebol não estava incluído, pois ele era um esporte típico da classe baixa - tenha acentuado as diferenças interclassistas entre o proletariado e a classe média. A classe média de difícil delimitação, por ser minoria "esmagada" entre a classe operária e a burguesia, se organizou na tentativa de manter seu domínio sobre o esporte usando como principal artimanha o amadorismo e estilo de vida de respeitabilidade, como o surgimento da célebre frase do olimpismo: "o importante não é ganhar e sim competir".
Notas FinaisEste trabalho baseou-se nos escritos de um historiador marxista que acentuou o valor cultural do futebol. Contudo, como o próprio Eric Hobsbawn escreveu em uma de suas obras, muita coisa sobre a história dos esportes ainda está para ser escrita, principalmente a participação das classes médias e altas na formação dos esportes.
Também esclarecemos que os estudos históricos feitos por Hobsbawn não podem simplesmente ser transpostos para o histórico do futebol no Brasil, entretanto seu trabalho nos possibilita delimitar parâmetros comparativos, permite-nos visualizar categorias marxistas no estudo histórico do futebol e também refletir sobre a participação efetiva dos esportes no grande contexto histórico seja ele econômico, social ou cultural. Devemos proceder assim porque as obras de Hobsbawn se referem basicamente ao modelo bretão; em algumas situações ao contexto europeu e; uma única vez diretamente ao Brasil, nesta singular oportunidade foi escrito:
No campo da cultura popular, o mundo era americano ou provinciano. Com uma exceção, nenhum outro modelo nacional ou regional se estabeleceu globalmente [...]. A única exceção foi o esporte. Nesse setor de cultura popular - e quem, tendo visto a seleção brasileira em seus dias de glória, negará sua pretensão à condição de arte? - a influência americana permaneceu restrita à área de dominação política de Washington.
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