O futebol, nacionalismo e tradição. Observações à partir de alguns escritos marxistas |
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Núcleo História e Sociologia do Esporte - UFPR Centro Universitário Positivo - UnicenP Centro Universitário Campos de Andrade - Uniandrade |
André Mendes Capraro andre.capraro@bbs2.sul.com.br (Brasil) |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 8 - N° 47 - Abril de 2002 |
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"O Futebol é um reino da liberdade humana exercida ao ar livre."
(Antonio Gramsci)"O futebol é feito por uma lei não escrita, o fair play."
(Antonio Gramsci)"No futebol o pior cego é aquele que só vê a bola."
(Nélson Rodrigues)"Se Charles Miller que levou a primeira bola de futebol para o Brasil, estivesse vivo hoje, seria não só um fenômeno de longevidade como um bom tema de sociologia."
(Luis Fernando Verissimo)"A bola de um gol tem duas faces: risos e lágrimas."
(Armando Nogueira)
IntroduçãoI Início do século XIX, Inglaterra, um antigo jogo que não tinha regras muito limitadas, mas contava basicamente com a utilização das mãos e dos pés para chegar a uma extremidade do campo gera muita polêmica: de um lado algumas escolas (locais onde era praticado este tipo de jogo) acreditavam que o jogo deveria ser mantido como estava, afirmando que o contato violento que predominava desenvolvia a virilidade, fator essencial na formação de uma raça forte. Do outro lado havia uma corrente que acreditava que o jogo era muito violento, não condizendo com os padrões de civilidade exigidos para uma sociedade que buscava o desenvolvimento. Esta divergência originou dois esportes distintos: o rugby, que manteve os mesmos padrões de violência, cujo contato físico é acentuado buscando não permitir que o adversário com a utilização das mãos atinja a qualquer ponto da extremidade do campo com a posse da bola; e criou-se também o football que deveria ser jogado somente com os pés (com exceção de um único jogador, o goal-keeper, que deveria proteger a baliza onde a bola deveria ser colocada para se obter um ponto). Logo esta pratica foi difundida pelo mundo todo, se tornando o esporte mais popular.
II Tão difundido quanto o futebol, os conceitos e as idéias de Karl Marx foram incorporadas ao pensamento mundial, sendo seguido por uma parcela significativa da população mundial por quase um século. Baseado no materialismo histórico e nos estudos sobre economia, Marx e, posteriormente vários estudiosos que seguiam seus princípios, acreditavam que as práticas físicas eram apenas usadas para alienar a classe operária, desviando esta do seu verdadeiro princípio que era a tomada do poder através do conflito com a classe burguesa. Assim, o método proposto nos escritos de Marx adotava como metodologia uma dialética, entre a classe operária e a classe burguesa.
Qualquer atividade de ócio representava um perigo para o ideal marxista. Por exemplo, Lênin, criticava a literatura livre remetendo-a como símbolo do ócio das classes burguesas, para ele a literatura dirigida ao povo deveria propagar o ideal socialista servindo de experiência do presente. Neste contexto o futebol torna-se, como esporte mais popular, um dos maiores, se não o maior, momento ocioso, onde o operário era distraído, enganado e manipulado pelos controladores dos meios de produção. A crítica do marxismo ortodoxo as atividades no tempo livre do operário permaneceu por muitas décadas.
No Brasil, por exemplo, militantes políticos de esquerda no período da ditadura militar acreditavam que a seleção brasileira de 1970 era usada como "ópio do povo". Porém, em muitos depoimentos é afirmado que quando a seleção entrava em campo era difícil torcer contra. Mas o que faz com que estudantes, mesmo com uma conscientização política apurada, cientes que aquelas partidas memoráveis da seleção só serviam para amenizar a dor do povo reprimido pela ditadura, torcessem pela vitória do selecionado que representava o Brasil?
III Fatos semelhantes ocorreram não somente no Brasil, mas em vários países aonde o futebol desenvolveu fortes raízes culturais, como a Inglaterra ou a Alemanha. Neste contexto, estudiosos marxistas começam a reavaliar a função do esporte na sociedade. Antonio Gramsci, Eric Hobsbawn, nomes expoentes do marxismo, propõem uma nova análise do futebol retirando-o da sua funcionalidade como alienante dos operários e aproximando-o das atividades artísticas. A própria vida pessoal destes pesquisadores justifica tal abordagem, enquanto Gramsci nasceu e viveu na Itália, país onde a prática do futebol é muito forte, Hobsbawn mesmo nascendo em Alexandria, posteriormente foi residir e seguiu carreira acadêmica na Inglaterra, "berço" do futebol. Era inevitável, que o contato tão próximo com o futebol sensibilizasse os pesquisadores à desenvolver novas interpretações sobre o fenômeno futebol.
Desta forma, estes novos historiadores marxistas (principalmente Hobsbawn) contribuem para uma nova formulação metodológica a respeito do futebol, principalmente nos seus primórdios onde sua criação foi fundamental no processo de nacionalização que se propagava por quase toda a Europa no final do século XIX e início do século XX. Discorrer sobre a historiografia marxista sobre o futebol, correlacionar os principais conceitos marxistas com o futebol (como ideologia, classe operária e classe burguesa) e, comparar o surgimento do futebol na Inglaterra e no Brasil, pensando as diferenças segundo a categoria "tradição inventada". Estes são os objetivos deste trabalho.
O Primórdio do Futebol, Nacionalismo e Conflito de ClassesI O surgimento dos esportes em geral e principalmente o futebol foi um fator fundamental no fortalecimento do ideal nacionalista, assim, segundo Hobsbawn "[...] o esporte como um espetáculo de massa foi transformado numa sucessão infindável de contendas, onde se digladiavam pessoas e times simbolizando Estados-nações, o que hoje faz parte da vida global."
Mais do que uma atividade de lazer o esporte adquiriu um caráter de representatividade das diversas nações européias, usado com a finalidade de provar a superioridade da raça. O exemplo mais celebre foi a utilização da Olimpíada de 1936 em Berlim, pelo ideal nazista de Adolf Hitler. Desta forma o esporte, adquire uma função simbólica, geralmente em tempos de paz, que significa o ideal da vitória, ou seja, da superioridade sobre o outro. "Eles [os esportes] simbolizavam a unidade desses Estados, assim como a rivalidade amistosa entre suas nações reforçava o sentimento de que todos pertenciam a uma unidade, pela institucionalização de disputas regulares, que provinham uma válvula de escape para as tensões grupais, as quais seriam dissipadas de modo seguro nas simbólicas pseudolutas."
No Brasil o futebol foi incorporado ao ideal nacional como modelador da raça brasileira. Como o Brasil é formado por uma diversidade étnica muito grande buscou-se fortalecer a nação brasileira através da aproximação dos ideais nacionais e a eugenia, os esportes, cujo maior referencial foi o futebol, serviu à este ideal. Como relata Hobsbawn "[...] o que trouxe a "raça" e a "nação" mais perto ainda foi a prática de usá-las como sinônimos possíveis, generalizando, de modo igualmente inexato, o caráter "racial/nacional", como era então a moda." No futebol brasileiro o começo da ligação entre futebol e nacionalismo deu-se em 1938, com a participação brasileira na Copa da França. Como é afirmado foi nesta Copa do Mundo que "Pela primeira vez, o poder público (em todos os níveis) assumiu a condição de apoiador da delegação de futebol. Os destinos do selecionado já não cabiam apenas aos setores diretamente ligados ao esporte bretão, mas cada brasileiro sentiu-se responsável pelo desempenho de toda a equipe. Era como se a nação Brasil estivesse para ser testada em terras européias."
Desta forma, a partir do final da década de 1930, o futebol era um exemplo, um "termômetro" do potencial da "raça" brasileira. Mário Filho, nome expoente da crônica futebolística brasileira, questionava em suas colunas o valor do "homem" brasileiro depois das derrotas frustrantes das Copas do Mundo de 1950 e 1954: "Descobriu-se que o jogador brasileiro temia em 54. Em 50 não se falou em tremedeira, falou-se em coisa pior. Chegou-se a dizer, com o exagero, aliás natural, da dor da derrota, que o jogador brasileiro era covarde." Esta crítica foi escrita pouco meses antes da estréia do Brasil na Copa do Mundo da Suécia em 1958, primeira Copa que o Brasil sagrou-se campeão. Muitas questões sobre a hombridade dos jogadores brasileiros eram levantadas, consequentemente estava-se questionando o valor de todo cidadão brasileiro. E, não se tratava apenas de uma opinião isolada, as dúvidas do cronista eram apenas um reflexo da sociedade. Posteriormente, finalizada a Copa o mesmo jornalista escrevia:
Não houve, no Campeonato do Mundo, nenhum adversário que fosse mais do que vocês em nada. E um Campeonato do Mundo é um desfile do que têm de melhor as nações. E se, a princípio, se duvidava do Brasil, é que se julgava o Brasil ainda pelo 16 de julho. Duvidava-se do futebol brasileiro, duvidava-se do Brasil. E vocês varreram essa dúvida, exaltaram o Brasil perante o mundo. Não somos apenas brilhantes, não somos apenas malabaristas, não somos apenas artistas de circo: somos campeões do mundo. E não seríamos campeões do mundo se não tivéssemos as virtudes dos alemães em 54, dos uruguaios em 50. Mas tivemos ainda mais, porque tivemos o melhor futebol do mundo. Muito obrigado jogadores brasileiros: vocês mostraram ao mundo um Brasil perfeito.
A imagem da nação brasileira se alterou em apenas noventa minutos, se na final da Copa do Mundo de 1958 o Brasil houvesse perdido o jogo para a Suécia, a afirmação que o brasileiro é um derrotado, que a "raça superiora" de outros povos nunca poderia ser superada, afloraria com maior força do que antes do início da copa. Assim, uma única disputa esportiva, que tinha como finalidade nos seus primórdios apenas proporcionar uma atividade prazerosa para o tempo livre dos homens, transformou o, até então, "incivilizado" Brasil num país perfeito. Afirmar que um fenômeno deste porte é apenas uma prática alienante negligencia um dos aspectos de maior valor interpretativo da sociedade moderna.
II Nota-se nas colocações sobre o esporte de Hobsbawn, que mesmo como historiador marxista que baseia seus escritos no materialismo histórico, ele não negligência fatores simbólicos, carregados de subjetivismo o que dificulta uma análise baseada nos rigorosos critérios do marxismo ortodoxo. A flexibilidade da interpretação marxista de Hobsbawn propicia que o esporte seja visto como um elemento essencial na História Contemporânea. Este autor foi um inovador, notou a importância dos esportes e, mesmo com as dificuldades metodológicas, pesquisou o assunto com afinco.
Fortalecida pela forte tendência simbólica surgida no século XIX, a prática esportiva foi tomando corpo e ganhando importância perante as diversas sociedades ditas civilizadas (principalmente a sociedade européia), gradativamente esta importância foi aumentando, começam a surgir os destaques, dentre eles o principal é o futebol. Assim,
O Esporte que o mundo tornou seu foi o futebol de clubes, filho da presença global britânica, que introduziu times com nomes de empresas britânicas ou compostos de expatriados britânicos (como o São Paulo Atlético Club) do gelo polar ao Equador. Esse jogo simples e elegante, não perturbado por regras e/ou equipamentos complexos, e que podia ser praticado em qualquer espaço aberto mais ou menos plano do tamanho exigido, abriu caminho no mundo inteiramente por seus próprios méritos, e, com o estabelecimento da Copa do Mundo em 1930 (conquistada pelo Uruguai), tornou-se genuinamente mundial.
Contudo, Hobsbawn esclarece: "A adoção dos esportes, principalmente o futebol, como culto proletário de massa é igualmente confusa, porém sem dúvida igualmente rápida." Essa rápida propagação do futebol teve como elemento essencial, o contraste entre a classe operária e a burguesia: enquanto nos países civilizados (leia-se europeus) o futebol foi adotado como principal momento de ócio pelos operários. O próprio Hobsbawn discorre que "Sua estrutura socioeconômica, porém, é mais compreensível. A princípio desenvolvido como um esporte amador e modelador do caráter pelas classes médias da escola secundária particular, foi rapidamente (1885) proletarizado e, portanto profissionalizado [...]." Nos países em busca de civilidade (como o Brasil) o futebol foi implantado pelas elites, na maioria jovens que iam estudar nos países europeus e traziam o material para a prática do futebol quando retornavam. Como afirma Caldas...
Há de se destacar, porém, que boa parte da trajetória inicial do futebol no Brasil possui um caráter elitista e, dificilmente poderia ser de outra forma. Os ingleses, precursores desse esporte em nosso país, faziam parte da elite da sociedade paulista e carioca; além deles, somente os brasileiros ricos tinham acesso à prática do futebol. É preciso ainda levar em conta que quase todo o material necessário para o jogo era importado e muito caro. Esse aspecto, é claro, só tornaria o futebol ainda mais eletizado. Mandar buscar o material na Inglaterra não era uma coisa acessível a qualquer pessoa aficionada do futebol. Com efeito, a trajetória desse esporte mudaria até com certa rapidez. E, rigorosamente, é só a partir do início dos anos trinta, que vamos presenciar o declínio desse elitismo.
Não podemos afirmar categoricamente que as elites brasileiras eram necessariamente pertencentes à classe burguesa. Não temos subsídios suficientes para discutir neste trabalho, qual a relação entre as elites e a burguesia no final do século XIX e início XX.
III A maior dificuldade para uma interpretação marxista sobre o futebol surge da seguinte questão: pode-se pensar a existência de um conflito de classes no âmbito futebol? Hobsbawn analisando a História do futebol inglês constata que
[...] o momento decisivo simbólico - reconhecido como um conflito de classes - foi a derrota dos Old Etonians pelo Bolton Olympic na final do campeonato de 1883. Com a profissionalização, a maior parte das figuras filantrópicas e moralizadoras da elite nacional afastou-se, deixando a administração dos clubes nas mãos de negociantes e outros dignitários locais, que sustentaram uma curiosa caricatura das relações entre classes do capitalismo industrial, como empregadores de uma força de trabalho predominantemente operária, atraída para a indústria pelos altos salários, pela oportunidade de ganhos extras antes da aposentadoria (partidas beneficentes), mas, acima de tudo, pela oportunidade de adquirir prestígio.
Contudo, não podemos cair no reducionismo aplicando o modelo de estudo que o renomado historiador utilizou nos seus estudos sobre o futebol inglês, transpondo-o para o caso do futebol brasileiro. Pois, como já foi argumentado no Brasil o futebol foi introduzido pelas elites e, o processo de profissionalização, fundamental no conflito entre a burguesia inglesa e os operários, foi no Brasil mais uma conseqüência dos acontecimentos que ocorriam fora do Brasil do que um conflito gerado pela insatisfação dos jogadores. Além disso, como analisa um pesquisador dos esportes brasileiros, enquanto o profissionalismo na Inglaterra já era oficializado desde 1885, no Brasil a elite (leia-se no exemplo inglês burguesia) relutou em ceder o esporte às classes proletárias.
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