Futebol e ciência. Ciência e futebol | |||
Doutorado em Ciências do Desporto Professor da Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física Universidade do Porto (Portugal) |
Júlio Garganta jgargant@fcdef.up.pt |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 7 - N° 40 - Setiembre de 2001 |
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Introdução
O Futebol, nas suas diferentes facetas, continua a estar na ordem do dia de programas televisivos e radiofónicos, nos canais do ciberespaço, nos escritos de articulistas, ou até em simples conversas de café e de rua.
Com o advento das novas tecnologias e a transfiguração galopante dos métodos de avaliação e treino, não raramente paira no ar uma questão intrigante: mas, afinal, o Futebol é, ou não, científico? O Futebol é, ou não é, ciência?
Deve ser, argumentam uns; na Universidade já se realizam teses de licenciatura, de mestrado e de doutoramento, que versam o Futebol enquanto tema de estudo.
Não é, contra-argumentam outros; trata-se apenas de um jogo, simples de jogar e agradável à vista, que alguns teimam em complicar, contrariando assim os "grandes mestres", que sempre apregoaram que no Futebol já tudo está inventado.
Estará tudo inventado? Parece-nos óbvio que não. Só o passado está inventado. Se pretendermos afirmar o presente e conjugar o Futebol no futuro, quase tudo está por inventar.
Está por inventar cada jogo que se joga, com a sua história única e resultado imprevisível. Está por inventar o jogo que se jogue mais dentro do campo do que nos bastidores.
Está por inventar o jogo em que os espectadores saibam aplaudir o sentido estético de uma bela jogada, ainda que realizada pelo adversário. Está por inventar o jogo no qual a rivalidade seja um catalisador do espectáculo e não um instrumento para o ferir de morte.
Do Futebol à ciência. Da ciência ao FutebolSobretudo a partir dos anos oitenta, foram desenvolvidas iniciativas importantes com o intuito de sistematizar o conhecimento em Futebol,que se traduziram na realização de congressos, às escalas europeia e mundial, e no aumento da produção bibliográfica.
Não obstante, este jogo desportivo é frequentemente abordado, quer sob as vestes dum teoricismo pouco profícuo, quer dum modo superficial e simplista, no qual a experiência funciona como argumento de autoridade.
No primeiro caso, deparamos com um cientificismo que penaliza a subjectividade e desencoraja a abordagem qualitativa, em nome duma objectividade e de um pseudo-rigor que, do nosso ponto de vista, frequentemente se enredam numa teia de erros de paralaxe. No segundo caso, confrontamo-nos com um praticismo militante que, não raramente, cai num efeito de "marmota de rabo-na-boca", pois tenta explicar e justificar os seus sucessos e desaires à luz de um discurso fechado, que se auto-consome e se auto-descredibiliza e cujos slogans preferenciais são: "sou um homem do Futebol", "já nasci a jogar à bola", "o mais importante é sentir o cheiro do balneário", ou "o Futebol é isto mesmo".
Mas a pergunta atrás formulada, teima em sondar a nossa esfera pensante: então o Futebol é, ou não, científico?
O Futebol não é, de facto, científico, responderíamos. Não há nada na vida que, em si mesmo, o seja. O que confere cientificidade a um objecto de estudo é a forma como é realizada a sua abordagem. Se, num qualquer estudo recorrermos a meios e métodos que obedeçam a preceitos de natureza científica, poderemos produzir conhecimentos que contribuam para a evolução, seja no Futebol, na produção de cortiça ou na fabricação de um shampô capilar.
A ciência lida com problemas e, ao procurar respostas para eles, não raramente faz emergir novas, ou renovadas, questões sobre esse problema ou mesmo novos problemas. Por isso, os resultados científicos são aproximações provisórias para serem saboreadas por um tempo e abandonadas logo que surjam melhores explicações (Damásio, 1994).
Por tal razão, a ciência é incomodativa para os que gostam de respostas definitivas ou para os que lidam mal com a evolução das ideias. A marcha evolutiva faz com que o argumento da experiência seja uma roupa que não serve aos que repetem, durante anos a fio, aquilo que fizeram no primeiro ano de exercício da sua função. Todavia, encaixa que nem uma luva nos que estão atentos e abertos a novos contributos, usufruindo deles para reformularem a sua prática quotidiana, enriquecendo-a.
Se atentarmos na história da humanidade, o conhecimento surge com a finalidade genérica de assegurar o sucesso das interacções do indivíduo com o meio que o rodeia (Caraça, 1997), o que faz com que as ideias e as explicações acerca das coisas e do mundo não sejam um feudo da ciência nem uma propriedade privada dos cientistas. Sempre as houve desde que o Homem existe enquanto tal, e sempre as haverá, não só para guiarem a acção, mas também para alimentarem essa faceta mágica a que damos o nome de capacidade criativa ou inventiva.
A ciência, sendo uma das formas possíveis de aceder ao conhecimento, apresenta-se como um dispositivo cognitivo de produção de estratégias de sobrevivência (Caraça, 1997) e de afirmação do Homem na sua relação com o envolvimento.
Do saber ao fazer vai um longo caminho, talvez tão longo como do fazer ao saber (Caraça, 1997). Assim, parece claro que todo o progresso da acção beneficia o conhecimento, tal como todo o progresso do conhecimento beneficia a acção (Morin, 1990).
Actualmente, o Futebol reclama a especialização de diferentes funções e tarefas - do jogador ao treinador, do médico ao fisioterapeuta, do chefe de departamento ao presidente do clube - pelo que exige, cada vez mais, dos seus intervenientes, competências e conhecimentos em quantidade e qualidade adequadas.
Da aparência simples do jogo à lógica complexaO jogo de Futebol decorre da natureza do confronto entre dois sistemas complexos, as equipas, e caracteriza-se pela sucessiva alternância de estados de ordem e desordem, estabilidade e instabilidade, uniformidade e variedade.
Neste contexto, dado que se trata de situações de mudança de final aberto, torna-se inglória a busca de laços directos causa/efeito quando pretendemos inteligir a lógica da actividade. O raciocínio eficaz está sobretudo relacionado com a descoberta de novos significados e o desenvolvimento de novas perspectivas (Stacey, 1995).
Todavia, o ser humano não está mentalmente apetrechado para lidar com situações de confusão total ou uma situação de acontecimentos aleatórios a todos os níveis.
Quando nos confrontamos com situações novas, impossíveis de prever, procuramos detectar alguma semelhança com acontecimentos que já ocorreram. Procuramos reconhecer padrões qualitativamente semelhantes, que usamos para desenvolver novos modelos mentais, no sentido de lidarmos com novas situações. A similitude específica do desenrolar de acontecimentos inesperados cria modelos gerais de percepção reconhecíveis, que constituem a experiência (Stacey, 1995).
Neste caso, torna-se decisivo reunir material com potencial informativo, o que se consegue através da classificação de símbolos e das suas ligações numa relação que exprime a organização dum sistema.
A informação não está apenas ligada à quantidade, mas também à qualidade, não sendo, portanto plausível procurar obtê-la à custa da tortura dos dados, que consiste em dobrá-los até que nos forneçam os resultados pretendidos.
Habitualmente a atenção do analista é dirigida para as regularidades dos comportamentos dos jogadores e das equipas, no mesmo, ou em vários jogos. As regularidades constituem, portanto, informação condensada que faz sentido.
Contudo, os comportamentos dos jogadores e das equipas no jogo de Futebol, embora repousando sobre uma organização subjacente, movem-se entre dois pólos do sistema (Cerutti, 1995): o vínculo, i.e., o estabelecido, as regras, e a possibilidade, i.e., a inovação, o novo.
Neste sentido, torna-se conveniente analisar outras acções que, embora não representem regularidades ou invariâncias, possam assumir, pelo seu carácter não redundante e imprevisto, uma importância particular na história do jogo, condicionando claramente o rumo dos acontecimentos.
É precisamente o carácter complexo das relações que ocorrem no seio dos sistemas, que conferem opacidade ao Futebol, quando perspectivado enquanto objecto de estudo científico.
O termo complexidade vem de plexus, que significa manter juntos (Gell-Mann, 1998). Trata-se de um princípio transaccional que faz com que não nos possamos deter apenas num nível do sistema sem ter em conta as articulações que ligam os diversos níveis. Isto quer dizer que ao tentar simplificar um sistema complexo estamos, a destruir, à priori, aquilo que intentavamos perceber, isto é, a sua inteligibilidade.
Não deve, no entanto, confundir-se complexidade com complicação. O que é complicado pode reduzir-se a um princípio simples, o mesmo não acontecendo com o que é complexo. A complicação vem da incomensurabilidade, da multidependência, da confusão de interacções inúmeras entre uma variedade muito grande de componentes (Morin, 1990).
Enquanto que nos sistemas lineares (causa/efeito) é o passado que condiciona o processo, nos não-lineares (jogo de Futebol, p. ex.) é a antecipação do futuro que o condiciona.
A complexidade das interacções pode mesmo provocar o aparecimento de efeitos perversos (Boudon, 1977), entendidos como aqueles que não são explicitamente procurados pelos agentes de um sistema e que resultam da sua situação de interdependência (Boudon, 1979).
No jogo de Futebol, não raramente, situações aparentemente lógicas e correctas geram resultados negativos; e acções aparentemente ilógicas ou incorrectas produzem resultados satisfatórios. Isto significa que, não obstante a vontade unânime de todos os jogadores envolvidos numa partida, os comportamentos dos jogadores que procuram a todo o custo ganhar, ou não perder, podem acarretar consequências incontroláveis para a equipa.
A observação: um "olhar" do pensamentoSendo considerada a forma mais primitiva para aquisição de conhecimentos (D´Antola, 1976; Anguela, 1985), pese embora a sua maior ou menor subjectividade, a observação foi, e continua a ser, um meio privilegiado a que o ser humano tem recorrido para aceder ao conhecimento, bem como um importante guia para a acção.
Os propósitos da observação, estando relacionados com a teoria, convicções e/ou experiências passadas do observador, influenciam o que é observado, como é observado, quem é observado, quando se faz observação, quantas observações se fazem, que observações se fazem, quantos dados devem ser analisados, e como devem eles ser utilizados (Evertson & Green, 1986).
Contudo, a observação não se esgota no olhar, enquanto representante por excelência de todo o conhecimento sensitivo (Marina, 1995). Através dele colhemos, percebemos, os dados da realidade. Mas o nosso olhar não é um olhar inocente ou distraído, antes está orientado, na sua mirada, pelos nossos desejos e projectos (Moles, 1995).
Calvino (1985), ao longo dos três capítulos que constituem a sua narrativa "Palomar", ilustra magistralmente que a observação, longe de se esgotar no olhar, é, sobretudo, uma experiência do conhecimento.
A tarefa ou o objecto de observação seleccionado, os planos de referência do observador, e o propósito da observação, entre outros factores, influenciarão necessariamente aquilo que for percebido, registado, analisado e descrito pelo observador (Evertson & Green, 1986), impondo-se assim que o observador explicite o seu modelo de entendimento do objecto de observação.
É o "saber ver" que suscita um problema profundo, porque não só qualquer teoria depende de uma observação, mas também porque qualquer observação depende de uma teoria (Morin, 1981). Deste modo, a mera observação, sem uma teoria, não tem validade científica.
Não deixa de ser verdadeira, mas padece de miopia crónica. Como nos diz Popper (1991), para que os nossos sentidos nos digam alguma coisa, temos que possuir conhecimento prévio: para podermos ver uma "coisa", temos de saber o que são "coisas".
Aprender a discriminar significa aprender a reconhecer partes do estímulo. O fragmento da realidade captado pela percepção completa-se com a memória, na qual guardamos uma colecção pessoal de mapas cognitivos.
Todavia, o estudo das particularidades de cada árvore não nos capacita para entender a floresta. Se queremos conhecê-la há que mudar de escala, o que implica alterar o nível de evidência!
Ora, o nível de evidência modela os critérios e é modelado por eles.
A palavra critério provém do termo grego - krino - que significa separar. Os critérios funcionam como padrões que nos permitem identificar, seleccionar e avaliar as coisas (Marina, 1997). Em ciência os critérios funcionam, a um tempo, como peneira ou separadores e como aglutinadores de sentido, o que faz com que se apresentem como algo paradoxal.
A observação: do pensamento ao actoDesde há longos anos que a ciência tem vindo a institucionalizar, implícita e explicitamente, duas noções que constituem o travejamento conceptual da atitude científica moderna: (1) existimos num mundo objectivo, susceptível de ser objectivamente conhecido e sobre o qual podemos enunciar asserções cognitivas que o fazem surgir como uma realidade independente do sujeito que o pretende conhecer; (2) acedemos ao conhecimento através dos nossos órgãos sensoriais por um processo de projecção - mapping - da realidade exterior objectiva sobre o nosso sistema nervoso (Maturana, 1974).
Acontece que várias personalidades, oriundas de diferentes quadrantes do conhecimento, têm chamado à atenção para o facto da ciência, ao impôr a neutralização e o isolamento do sujeito como critério de cientificidade, se neutralizar e isolar, por extensão, a ela própria, aprisionando-se naquela que tem constituído a sua mais incómoda e irresolúvel armadilha tautológica. Concomitantemente, têm alertado para o facto de, na procura quase obsessiva de objectivar o objecto de estudo, a ciência correr o risco de o implicar numa condição de tal distância e exterioridade que conflitue com a representação objectiva da prática.
Cada vez é maior o número de cientistas que questionam não apenas o conceito de ciência mas, sobretudo, o modo de “fazer ciência".
A contestação à forma de entender a realidade e de com ela operar, com base numa pretensa "objectividade", tem surgido com veemência no seio da própria ciência. Vários cientistas, oriundos de diferenciados quadrantes do conhecimento, vêm reconhecendo que o conceito tradicional de "objectividade", ao implicar o deslocamento do sujeito para fora do processo de conhecimento, pode revestir-se de uma esterilidade manifesta.
Neste contexto, a ciência depara com o problema da reintegração do observador nas suas descrições (Atlan, 1997), quando a tendência da epistemologia "científica" parecia ser a de uma eliminação radical deste (Ceruti, 1995).
Sabe-se, desde 1927 com Werner Heisenberg, que a observação científica, que aspira à máxima objectividade, não é uma contemplação inocente (Popper, 1991) e que o acto de observar é uma intervenção que altera o sistema observado em modos que não podem ser inferidos dos resultados da observação (Von Foerster, 1992; Moles, 1995).
Aquilo que observamos não é a própria natureza, mas antes a natureza determinada pela índole das nossas perguntas. Estas perguntas que colocamos à realidade, isto é, as nossas hipóteses, não são mais do que suposições cuja natureza desejamos comprovar e que dirigem a nossa busca na exploração do objecto.
A situação do sujeito, enquanto observador, representa um ponto de vista bifronte, porquanto viabiliza e limita, simultaneamente, as suas possibilidades de conhecimento.
Franz Kafka conta a história de um animal que constrói uma toca para se refugiar. Uma vez lá dentro, a coberto, começa a preocupar-se com a ideia de a entrada estar ou não bem dissimulada. Sai para o verificar, mas ao fazê-lo desmancha a camuflagem. Entra, recompõe-na e volta a preocupar-se, sai, entra, sai, entra. Não pode estar dentro porque quer ver de fora. Não pode estar fora porque precisa de estar dentro.
Para se estar seguro dentro da toca tem de se estar de fora vigiando. É este o dilema do cientista na sua relação com a ciência moderna.
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