Educação Física no 1º ciclo do ensino básico. Das necessidades de formação à profissionalidade docente |
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Centro Integrado de Formação de Professores (CIFOP) Universidade de Aveiro (Portugal) |
Rui Neves rui.neves@netvisao.pt |
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Celorico da Beira. Junho/1999. DRE-Centro e CAE - Guarda. Portugal
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 7 - N° 34 - Abril de 2001 |
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“Não há percursos de vida que não sejam percursos de formação”
Introdução
Inicio esta comunicação felicitando os responsáveis pela sua realização, porque julgo que se constituiu já como um grande espaço de análise, reflexão, partilha de saberes profissionais, numa área da docência no 1º Ciclo do Ensino Básico (CEB), carente de fundamentação e sistematização das suas práticas educativas.
O meu contributo apenas pretende suscitar a análise e o debate sobre, aquilo que neste momento são as minhas preocupações da formação de professores do 1º CEB sobre a área de Educação Física (EF), numa perspectiva muito pessoal, reflexiva e estimuladora da (re)construção permanente da profissionalidade docente neste nível de ensino ao longo da vida e da carreira profissional. Assim o entendo, porque a formação de qualquer professor é hoje um processo em construção que não se esgota na formação (dita) inicial ou no processo de socialização profissional. Qualquer professor realiza ao longo da sua vida singulares percursos de formação, em diferentes contextos e com múltiplos significados para a sua identidade profissional. O conhecimento, a aprendizagem tal como a formação não têm hoje fronteiras ou “gavetas” de exclusividades, pelo que importa valorizar contextualizadamente a forma como cada professor constrói o seu conhecimento profissional.
Como refere Goodson (1992:75) : “os estudos referentes às vidas dos professores podem ajudar-nos a ver o indivíduo em relação com a história do seu tempo, permitindo-nos encarar a intersecção da história de vida com a história da sociedade, esclarecendo assim, as escolhas, contingências e opções que se deparam ao indivíduo. “Histórias de vidas” das escolas, das disciplinas e da profissão docente proporcionariam um contexto fundamental. A incidência inicial sobre as vidas dos professores reconceptualizariam, por assim dizer, os nossos estudos sobre escolaridade e currículo”.
Os actuais desafios da formação de professores do 1º CEB caracterizam-se pois, por um quadro de mudanças (currículos de formação inicial, complementos de formação, formação contínua) que se confrontam com as necessidades de formação pessoal e contextualizada que a prática faz emergir e evidenciar.
A sua formação seja em que área for, não se deverá circunscrever ao domínio de umas quantas técnicas de ensino ou enquadramentos didácticos que suportem uma futura intervenção. A necessidade de assegurar o domínio e a qualidade de intervenção profissional, suscitam o problema de nos preocuparmos com o desenvolvimento de competências profissionais, capazes de suportarem qualquer acção independentemente das suas características, mudanças ou contextos. Não podemos continuar a formar para a “escola modelo”, para o “aluno médio” para a “aprendizagem mínima”, ou sobre as “práticas de ensino”. Em qualquer situação de formação “o professor é uma pessoa”.
A diversidade e mudanças dos contextos educativos (alunos, recursos, características dos territórios educativos, tipo de relações com o meio, etc) têm que se constituir não como adversidades, mas antes como desafios ao domínio de competências profissionais. É oportuno relembrar, que as competências profissionais exigem muito mais do que saberes (PERRENOUD, 1996)
1. Currículos de formação
Estão em reestruturação a maioria dos planos de estudos das escolas de formação de professores do 1º CEB. A partir das suas competências de autonomia pedagógica as diferentes instituições do ensino superior, definiram e colocaram em prática os seus planos de estudos. Em simultâneo estão também no seu início os cursos de complementos de formação nas diversas instituições de formação. De uma forma mais dispersa desenvolvem-se um pouco por todo o país, iniciativas de formação contínua no âmbito do programa FOCO.
Mas como podemos identificar nos diferentes currículos, como oportunidades de aprendizagem pessoal, as dimensões necessárias à construção de um conhecimento profissional da área de EF, junto de futuros e actuais professores deste nível de ensino? Como podemos evidenciar na construção dos currículos, uma matriz conceptual da EF no 1º CEB, que se centre na aprendizagem e desenvolvimento dos seus alunos? Como analisar as diferentes propostas curriculares, como fonte da construção pessoal de “saber” e “saber ser” específico da área de EF no 1º CEB? Como relacionar as diferentes propostas de formação claramente específica, numa lógica conceptual de estruturação de “ferramentas” pessoais de intervenção pedagógica?
A construção do conhecimento profissional da área de EF, não pode desligar as questões de natureza conceptual da EF, das suas dimensões didácticas, das decisões curriculares e suas implicações a partir do seu programa e sua contextualização. Como fundamenta o Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua (1998) a reconstrução da profissionalidade docente tem como campo de formação e reflexão as acções desenvolvidas no território profissional, ou seja, a comunidade educativa, cujo centro é a escola.
2. Matrizes conceptuais da Educação Física no 1º CEB
Qualquer intervenção na área da Educação carece de uma matriz identificadora da sua intencionalidade. De forma explícita ou implícita, é imperioso ter claro as finalidades educativas da acção, mais ainda numa área onde por vezes o que parece importante “é fazer” sem questionar a intenção. E aqui reside uma das grandes confusões de natureza conceptual e onde as responsabilidades da formação de professores são muitas. É nosso entendimento que é fundamental, possuir uma clara e objectiva percepção das concepções de EF que dão corpo às finalidades da EF no quadro da escola do 1º CEB. Diversos estudos têm identificado um largo e disperso espectro de finalidades da EF referenciadas pelos seus profissionais (NEVES, 1995).
Toda a intervenção que tenha como instituição de enquadramento a escola, não se pode descomprometer da clara demarcação das suas finalidades educativas. Essa é uma das essenciais questões que a formação, deve clarificar, para que a área de EF no 1º CEB, não seja pensada como de “alfabetização desportiva”, de “ocupação de tempo livre”, de “libertação de energias acumuladas” ou qualquer outra. As Actividades Físicas e Desportivas (AFD’s) como actividades sociais a que circunstancialmente se reconhecem benefícios capazes de preservar como património cultural e estimular a aprendizagem e desenvolvimento dos alunos, são a matriz identificadora. No entanto as finalidades educativas da EF na escola do 1º CEB, devem ser percebidas numa clara visão de aprendizagem e desenvolvimento global dos alunos. Mantendo um quadro de aprendizagens específicos, há uma componente importante de globalização das finalidades educativas da área de EF.
Entendemos que há necessidade de um amplo debate sobre o papel e função da EF no contexto do Sistema Educativo. Um debate que “envolvendo acima de tudo, os professores, as instituições de formação, formadores, sociedades, associações representativas de professores, estruturas oficiais da tutela, permita clarificar o sentido social das finalidades da EF no Sistema Educativo. Essa tarefa não pode ter a veleidade de procurar unanimidades ou currículos de formação universitária uniformes, mas antes alcançar a “coesão conceptual” (CRUM, 1993) em torno da noção de que a EF tem de ser uma disciplina de ensino-aprendizagem, centrada na introdução de crianças e jovens à cultura motora” (NEVES, 1995:117)
Na consideração da função social da escola, da visão de homem a formar, da análise social, da concepção de escola e do papel cultural do movimento, têm-se desenvolvido matrizes conceptuais que atribuem à EFs finalidades educativas baseadas mais nos conceitos e ideias fundamentais e menos na sua vinculação histórica. É a partir deste contexto que CRUM (1991) estrutura um quadro geral de concepções subjacentes às finalidades da EF e que abrange as várias perspectivas.
A primeira, a concepção biologista ("biologically oriented concept of physical education"), está associado à visão do exercício físico como processo de estimulação de adaptações do organismo, vinculando-se à afirmação do desenvolvimento do corpo. Com raízes na Suécia, a partir dos estudos de Per Henrik Ling, esta "educação do físico", acompanha as tendências evolutivas das ciências médicas. Esta concepção não deixou de assumir o corpo como instrumento para o atingir de objectivos de desenvolvimento muscular, melhoria da eficiência cárdio-respiratória e aumento da flexibilidade, numa perspectiva de constante função biológica de adaptação. As preocupações dos professores centram-se na selecção criteriosa dos exercícios, de acordo com grupos musculares e/ou funções biológicas (exercícios para as pernas, para o tronco, para a postura, para a flexibilidade, treino aeróbico) e respectivas cargas em função do tempo de exercitação e número de repetições. Há uma exaltação do exercício físico, associado à interligação entre movimento, desporto, treino e saúde. Numa apropriação de hábitos de exercício físico, pretende-se que os alunos ganhem autonomia e sejam capazes de desenvolver, ao longo da sua vida, uma actividade física capaz de manter e melhorar a sua aptidão física.
A segunda matriz, concepção pedagogista ("bildungstheoretical concept of physical education"), assim conhecido nos países de influência alemã e "the education-through-the physical philosophy" na América do Norte, está associada ao papel humanista e educativo da EF. Aos professores caberá o papel de estruturar uma EF através das actividades físicas e desportivas, proporcionando a exploração, a comunicação, a auto-realização e desenvolvimento educativo dos alunos. Nesta perspectiva proporcionam-se aos mais jovens, através do movimento, o desenvolvimento de capacidades de percepção do que os rodeia e seu conhecimento. As actividades físicas e desportivas, têm assim, um papel de referência pessoal e social na criação de imagem própria e prática de regras sociais. As grandes linhas de pensamento centram-se no confronto que a EF permite a cada aluno, na comparação consigo próprio e com os outros e ainda na motivação e inerente competição proporcionadas pelas diferentes actividades físicas e desportivas. Considera-se de relevante importância para o desenvolvimento social dos jovens, sendo que o que está em causa não é "learning to move" mas antes "moving to learn". Para os professores, os objectivos formulados são-no a um nível abstracto e com maior incidência, na força de vontade, determinação, concentração, confiança em si mesmo, consciência de comunidade e desenvolvimento cognitivo.
As preocupações dos professores devem estar na criação de condições de prática de actividades físicas e desportivas que ocupem os alunos nas actividades, já que a convicção de que a EF possui um potencial educativo a justifica na educação do indivíduo.
A terceira matriz, concepção personalista ("personalist concept of movement education"), diferencia-se da anterior por reconhecer no próprio movimento qualidades e não valores exteriores a ele. Acredita-se no valor intrínseco do movimento para o desenvolvimento e a vida do indivíduo. Os professores encaram o aluno como centro do processo ensino-aprendizagem, sendo sua preocupação a definição de objectivos, em termos de competências motoras pessoais.
A quarta matriz, concepção conformista de socialização para o desporto ("conformist concept of sport socialisation"), encara o papel da educação e da escola numa óptica de reprodução social, fomentando o poder da organização desportiva como factor social. Segundo Crum, é uma linha de pensamento que realiza um alinhamento com o desporto, havendo mesmo, em alguns países, a confluência de funções de ensino e treino (Alemanha e Estados Unidos da América). Há um alinhamento com o "status quo" desportivo, nas suas dimensões competitivas, de comparações de performances e organização desportiva diferenciada para cada actividade. Esta concepção coloca a ênfase não só na "socialisation through the sport" mas também "socialisation into sport", tornando a educação desportiva um processo segundo o qual os alunos se familiarizam com as técnicas, as tácticas e regras dos desportos.
A quinta matriz, concepção crítico-construtiva da socialização do movimento ("critical constructive concept of movement socialisation"), considera que o papel da escola, ao cumprir funções de socialização, não o deve fazer na mera reprodução do "status quo", mas sim no sentido de uma abordagem crítica do processo de socialização. Aos professores competirá fazer dos alunos, não meros "role takers" mas antes "role makers", com as implicações de desenvolvimento de capacidades individuais, de interacção da adaptação e sentido crítico. Transpondo esta noção para o contexto das finalidades da EF, infere-se da necessidade de desenvolver uma "cultura do movimento" que extravase os limites da escola.
O conceito defendido de que o currículo de EF deve corresponder a compromissos de desenvolvimento de qualidades/capacidades individuais e aprendizagens de conteúdo com significado no âmbito da " cultura motora" - por rejeição da "cultura física" e intrínseca dualidade corpo-espírito - e contextos da sua realização, traduz uma visão integrada e abrangente do currículo capaz de lhe dar vitalidade (perante alunos, professores, sistema educativo, sociedade).
Tal concepção das finalidades da EF, pressupõe uma grande abertura de métodos e processos (CRUM, 1991) de forma a contemplar a multidimensionalidade de objectivos, rejeitando uma acrítica apropriação do património desportivo de cada sociedade e consequente transformação das finalidades da EF num mero processo de alfabetização desportiva. Crum considera que, o que deve estar em causa é a interligação entre o desenvolvimento de qualidades individuais, a aprendizagem de regras, técnicas e tácticas, o conhecimento das diversas formas de participação nas actividades físicas e desportivas, comprendendo os contextos, as motivações, e formas de organização.
Julgamos lícito considerar que as "balizas" conceptuais sobre as finalidades da EF de cada professor implícitas ou explícitas, não se traduzem numa mera questão filosófica ou pretensamente abstracta.
De uma forma implícita, ligada às suas conexões conceptuais das finalidades da EF, estão opções lógicas e naturais à luz desse quadro de pensamento, resultando em tomadas de decisão importantes, desde as questões mais rotineiras da intervenção pedagógica (ex: o modelo de organização dos recursos materiais), até outras mais complexas (ex: a estruturação de um plano de aula, a elaboração de um instrumento de avaliação).
Assim, entendemos que a clarificação e debate dos valores que estruturam o pensamento dos professores acerca dos modelos de currículo e finalidades da EF constituem-se como influenciadores de todas as suas decisões profissionais.
Hoje, como ao longo do tempo, as referências sócio-culturais da EF como área curricular encontram-se nos hábitos, valores, representações, práticas de trabalho e de lazer, nas tradições e nas aspirações próprias dos indivíduos e dos grupos (CARREIRO DA COSTA, 1988). Tal implica que a EF surja no currículo escolar, reflectindo a cultura da sociedade em que está inserida e veiculando as actividades materiais, os valores de ordem ética e estética que lhe são inerentes (CARREIRO DA COSTA, 1988) com a finalidade de ser assimilada e adaptada pelas gerações, em trânsito para a maturidade social (CARREIRO DA COSTA, 1988).
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