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Esporte e Modernidade: Notas sobre Crítica
Escritura Histórica em Walter Benjamin
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MEN/CED/UFSC
Universität Hannover/CAPES2

Alexandre Fernandez Vaz
alexvaz@ced.ufsc.br
(Brasil)

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 5 - N° 26 - Octubre de 2000
Trabajo presentado en el IIIº Encuentro Deporte y Ciencias Sociales y
1as Jornadas Interdisciplinarias sobre Deporte. UBA - 13 al 15 de Octubre 2000

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1. Um Colecionador de Brinquedos e Idéias

    "O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer." (Walter Benjamin)

    O marxismo dos anos trinta esteve fortemente marcado por uma concepção teleológica da história, que destinava-lhe o inevitável curso que levaria a sociedade socialista. Essa concepção ganhava fôlego no contexto de alguns fenômenos sociais fundamentais para o século vinte, justo na ante-sala da II Guerra Mundial. Refiro-me aqui à experiência socialista soviética - um dos pólos da Guerra Fria -, a ascensão do fascismo - um dos momentos culminantes do capitalismo -, ao cinema - então expressão máxima da reprodutibilidade técnica da imagem e da obra de arte em geral -, e finalmente ao esporte - fenômeno global, de massas e de alto rendimento.

    Os movimentados anos trinta assistiram também parte da atribulada trajetória de Walter Benjamin, um dos mais importantes teóricos do século, arqueólogo da modernidade, filósofo da história, teórico da cultura e da arte em suas formas de produção e reprodução, flâneur, outsider, colecionador de brinquedos e idéias, renovador da tradição dialética. Nas palavras de Hannah Arendt, "[...] provavelmente o mais peculiar dos marxistas já produzidos por esse movimento, que, sabe Deus, teve todo tipo de excentricidade."3

    Benjamin nasceu em Berlin em 1892 e suicidou-se na fronteira franco-espanhola de Port Bou, ao considerar que não teria sucesso em sua fuga da eminente deportação para um campo de concentração. Deixou uma obra riquíssima para as Humanidades, aberta, que nós, seus leitores, temos a pretensão de estudar, e redescobrir por entre novos caminhos para a reflexão crítica.4

    Nas próximas páginas ocupo-me da reflexão sobre alguns pontos da filosofia da história de Walter Benjamin, com vistas a contribuir para a escritura de uma história das práticas corporais, em especial do esporte. Meu texto gravita em torno de duas das principais obras do Autor, A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica (Das Kunstwerk im Zeitalter seier techischeReproduzierarkeit), escrito entre 1935 e 1936 e Sobre o Conceito de História (Über den Begriff der Geschichte), conhecido também como Teses, escrito em 1940. Textos diferentes em muito sentidos, compunham, no entanto, um mesmo projeto intelectual, escrever uma arqueologia da modernidade.

    De A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica interessa para o presente trabalho alguns aspectos da teoria da arte, sua reprodutibilidade e história material, cuja afinidade eletiva com o esporte é, ao longo do texto, apontada. Nas Teses encontramos uma filosofia da história que questiona o progresso como categoria absoluta, polemiza com o historicismo e o marxismo "oficial".

    Trato, portanto, da compreensão de Benjamin sobre arte, técnica e esporte, levantando alguns indicativos de sua filosofia da história, tendo como referência a reprodutibilidade técnica moderna.

    Por fim procuro problematizar as questões trabalhadas, num diálogo com aspectos da escritura historiográfica dos esportes, verificando como que, ao que me parece, a filosofia benjaminiana pode com ela contribuir.


2. Esporte, Reprodutibilidade Técnica, Modernidade

    Benjamin dedicou vários estudos à história da produção e reprodução do material artístico. Um dos principais é A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica.5 Atenho-me aqui a apenas algumas das inúmeras questões que este magnífico e controverso texto suscita. As controvérsias se devem sobretudo a uma possível ortodoxia marxista, presente não só nesse mas em outros ensaios da primeira metade dos anos trinta. Esta ortodoxia, representada por um excessivo apego às potencialidades progressitas da técnica, seria tributária da influência de Brecht, ou da simpatia pela então União Soviética, oposição visível ao avanço do fascismo na Europa.

    De fato há no texto um espírito simpático à técnica e suas possibilidades de reprodução, que configurariam a arte novas formas de representação. Por outro lado permanece a crítica à fetichização da técnica, que já fora feita na década de vinte. A meu ver, muito mais notável nesse ensaio é a ênfase na exigência de politização da arte e de seus produtores, como crítica e resistência ao fascismo e suas formas de manifestação estética. Muito mais que em qualquer outro, esse é o ponto que aproxima Benjamin de Brecht, e de resto, ao marxismo "mais militante". Voltarei a esse ponto quando da discussão do caráter engajado do cinema e da arte em geral em Benjamin e Brecht.

    Se a resistência soviética acabou por tornar-se ilusória com o tratado de não agressão assinado por Hitler e Stalin em 1939, que possibilitou a invasão da Polônia e o início da II Guerra, não seria justo dizer que Benjamin tivesse, na metade dos anos trinta, uma visão ingênua do marxismo tornado ideologia de Estado. Prova disso são as anotações críticas do Diário de Moscou, e o fato de Benjamin jamais ter-se filiado ao partido comunista.

    O ensaio foi escrito para ser publicado na Revista de Pesquisa Social, a cargo de Max Horkheimer, diretor do Instituto de mesmo nome já sediado em Nova York, do qual Benjamin se tornara bolsista. Nele é curioso, mas de forma nenhuma inusitado, o aparecimento do esporte como exemplar, fenômeno que interessa à arqueologia de uma modernidade e suas expressões: à direita, com o fascismo, à esquerda, com o comunismo, ambos enredados com as novas condições técnicas de reprodução, inclusive e principalmente do material artístico.

    Essas novas técnicas de reprodução alteram sobremaneira o caráter da obra de arte. Se de alguma forma a obra de arte sempre foi reprodutível, o fato é que a cópia já não é vista como imperfeição ou falsidade, como postulara a tradição platônica. A possibilidade de reproduzir indefinidamente uma obra - processo que começara com a xilogravura e atingira seu ápice com o cinema - torna obsoleta a idéia de cópia. "A obra de arte reproduzida é, em escala crescente, a reprodução de uma obra de arte construída para ser reproduzida."6

    A mudança qualitativa pela qual passa a obra de arte pode, talvez, ser assim resumida: em suas condições materiais e técnicas modernas, a arte pede duas características que lhe foram essenciais: distanciamento e unicidade. Secularizada, e portanto emancipada de seu valor de culto, a arte aproxima-se dos espectadores, ao mesmo tempo que passa a ser reproduzida com freqüência e exatidão cada vez maiores. Aumenta-lhe, portanto, o valor de exposição. A obra de arte vê perder-se sua aura, essa [...]teia singular de espaço e tempo: uma manifestação única de algo distante, tão perto quanto possa estar."7 Altera-se com isso o movimento histórico dentro de uma tradição, que agora diz, ao contrário dos gregos, que os valores estéticos já não são eternos. Ao mesmo tempo que se seculariza, ela se politiza, de forma que o fenômeno das multidões pode, logo a após surgir na cena moderna, ver a si mesmo na tela: comícios, guerras e grandes espetáculos esportivos.

    Não é sem enormes conseqüências que se desenvolve esse processo. Por um lado a própria percepção humana (historicamente condicionada), sofre inúmeras modificações. As imagens captadas pela câmara e depois remontadas em um nexo de cortes e choques (o que significaria de fato a construção da obra cinematográfica) corresponderiam ao ritmo da cidade moderna, onde os sentidos são aguçados pelas novas configurações de espaço e tempo, tal como se lê nos ensaios sobre Baudelaire. "O cinema é a arte correspondente aos mais agudos perigos de vida que hoje vivem os contemporâneos."8 Se a forma reprodutível da obra de arte é, por excelência, o cinema, é porque nele se constrói a relação estética entre o aparato técnico e o ser humano. Para Benjamin, claramente apoiado em Bertold Brecht, trata-se de entender o desempenho do ator (e das massas) diante das câmaras como um teste - alternativo em relação ao trabalho automatizado - para aferir o rendimento frente ao maquinário.

    Fica para um outro momento uma questão: que destino terá encontrado o otimismo de Benjamin - e de Brecht! - sobre o caráter revolucionário do cinema. O debate é extenso mas adianto que, de minha parte, prefiro ser cauteloso quanto a um certo realismo socialista. Digo isso porque tanto a direita quanto a esquerda, o esporte, símbolo da idéia de progresso infinito corporificado em medidas de tempo e espaço, passa a ser tema e objeto da produção cinematográfica. Seja numa perspectiva comunista, com Brecht, seja sob o prisma do fascismo, com Leni Riefensthal, mas sempre louvando o esporte e as performances humanas, não é surpreendente essa preferência. Ora, o cinema - como imagem em movimento que exclui e inclui, potencializa o olho humano, que educa os sentidos para a experiência moderna, como afirma Benjamin - não poderia prescindir do movimento corporal como um de seus privilegiados temas. Enquanto o esporte trabalha com a idéia de precisão do tempo e do espaço, o cinema relativiza-os. À potencialização do corpo corresponde a potencialização da imagem.9


O Esporte como Teste (Leistungstest)

    Nas notas preparatórias para o ensaio sobre reprodutibilidade técnica, Benjamin tece alguns comentários sobre o esporte e os Jogos Olímpicos. 10

    As Olimpíadas de 1936, seriam, conforme indica Susan Buck-Morss,11 a contraface das Exposés: enquanto em Paris, em 1937, seria visto o mais contemporâneo da indústria, da técnica, da comunicação e da energia, em uma palavra, do progresso, na Alemanha estariam, um ano anos, expostos os corpos fortalecidos (e maquinários, segundo penso).12

    Em suas anotações, Benjamin compara o esporte e os Jogos Olímpicos com a estrutura científica do taylorismo,13 antecipando em vinte anos as considerações que, nos anos cinqüenta, a então incipiente sociologia do esporte faria a respeito da relação entre esporte e lógica industrial.14 Aos movimentos do trabalho e da produção automatizada corresponderiam, até certo ponto, os do esporte, passíveis de pormenorizada análise.15. Fundamental para o esporte, segundo Benjamin, é seu caráter prescritivo, que subjugaria o comportamento humano a uma severa medição em segundos e centímetros, colocando-o a nível de uma elementaridade física.16 As "Olimpíadas são reacionárias",17 escreve Benjamin nas notas, sem levar, no entanto, essa idéia a diante no ensaio propriamente dito.

    Em lugar de sua antiga figuração agonística que comparava seres humanos entre si, no esporte passa a ser fundamental a concorrência com a máquina que mede o tempo e o espaço. Para Benjamin o esporte também é uma forma de teste, ainda que a forma desta relação permaneça um pouco ambígua. Como se lê no ensaio o esporte seria um teste contra as forças da natureza, mas também contra a máquina, no caso de Paavo Nurmi, exceção que, "[...] como se diz sobre ele, corre contra o relógio."18 O exemplo de Nurmi também aparece como exemplar nas notas, mas como norma, e não exceção. É importante voltar a destacar a forte influência de Bertold Brecht, na casa de quem, na Dinamarca, Benjamin redigiu seu ensaio sobre a reprodutibilidade técnica. Talvez também por isso os comentários sobre o esporte percam virulência no percurso das notas para as versões publicadas. Como se sabe, Brecht era um entusiasta do esporte, como mostram alguns de seus textos e filmes.19 Talvez por isso, na versão final do ensaio o esporte não apareça, como antes nas notas, para ser duramente criticado.

    O esporte era um tema de especial interesse para Brecht, possibilidade de propaganda e expressão do movimento operário comunista, de documentação - também ficcional - de suas experiências. Mas a Brecht, o esporte, a atuação dos atletas, a relação entre eles e com o público interessam como categorias, sobretudo na configuração do gestus básico, autêntico da/na representação cênica/cinematográfica.

    Se no esporte os atletas desempenham contra o relógio, o aparelho que mede o tempo com precisão, adiante-se aqui que na Tese 15 Sobre o Conceito de História,20 o relógio aparecerá justamente como o aparato que representa o tempo homogêneo e vazio, carente de significação e conteúdo histórico. Essa temporalidade linear, como se verá mais a frente, é aquela contra a qual a filosofia da história de Benjamin se dirige.


3. História e Modernidade: o Progresso como Palco de Ruínas

"A Tradição dos oprimidos nos ensina que o 'estado de
exceção' em que vivemos é na verdade
regra geral".
(Tese VIII)

    A partir das Teses, texto curto e de enorme densidade teórica, selecionei algumas idéias centrais da filosofia da história de Benjamin, que logo passarei a apresentar.

    Antes disso vale dizer, em boa hora, que não considero que a filosofia benjaminiana, como aliás nenhuma outra, possa ser ontologizada. Não se pode também "utilizá-la" como um "instrumental aplicável", mas sim como interlocução do/no campo, um conjunto de idéias em aberto, que ajudem a continuar pensando. A própria obra de Benjamin nos ensina a repelir os fanatismos e as leituras aligeiradas, além de ser, como toda boa filosofia, não prescritiva.

    De forma sumária, pode-se dizer que a crítica de Benjamin nas Teses - escritas como "introdução" metodológica ao Trabalho das Passagens - dirige-se a uma concepção de história presente tanto no historicismo quanto no marxismo vulgar. Benjamin entende que ambos compartilham de uma concepção linear de história, que tem no progresso técnico seu critério maior, creditando-lhe o estatuto de norma histórica (Tese VIII). Além disso, essa concepção cultiva uma empatia com o passado, de modo que os fatos históricos passam a ser justapostos em etapas de um desenvolvimento supostamente necessário. À esta concepção corresponde ainda a fetichização tecnológica do trabalho, bem como uma concepção utilitária de natureza, considerada sempre disponível e grátis (Tese XI).

    Esta escritura histórica é triunfalista, dos vencedores. Ao pretender-se universal e absoluta, recalca os desejos não concretizados, fazendo esquecer as esperanças que ficaram para trás. Ela advoga - como aliás o faz também na tradição hegeliana - uma racionalidade necessária.

    A esta concepção Benjamin opõe um outro conceito de história, uma vez que.

Todos que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos do que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Estes despojos são os chamados bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem seus esforços não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um documento de cultura que não fosse também um documento de barbárie. E assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.21

    Ora, uma historiografia que possa ser crítica, deve sim, como é evidente, lançar seu olhar ao passado, mas não no sentido de constituir uma história universal (Tese XVII) ou uma imagem eternizada do que passou (Teses VI e XVI). Ao contrário, o passado só fará sentido se for repleto de agoridade (Jetzzeit), atualizado. O olhar histórico se volta para o passado para fazer ressurgir as esperanças não concretizadas, já que a história é (pelo menos também) um palco de catástrofes, de escombros.

"Minhas asas estão prontas para o vôo,
Se pudesse, eu retrocederia
Pois eu seria menos feliz
Se permanecesse imerso no tempo vivo."

Gerhard Scholem, Saudação do Anjo

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa aos nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.22

    Contar a história do ponto de vista dos vencidos significa, portanto, paralisar o tempo, explodir o continuum da história. Só o presente paralisado pode perceber seu conteúdo pretérito, e por isso nadar contra a corrente. Esta é uma história que não se dirige ao passado como elenco de acontecimentos, nem ao futuro como progresso infinito, mas busca na cesura do presente identificar aquilo que poderia ter sido. Daí a importância fundamental do trabalho da memória, da reminiscência. Tarefas do melancólico, do narrador.23

Lecturas: Educación Física y Deportes · http://www.efdeportes.com · Año 5 · Nº 26   sigue Ü