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Aspectos imperdíveis em uma viagem a Porto Alegre. Uma análise sobre recomendações de viagens nas três últimas décadas
Sílvia Cristina Franco Amaral (Brasil)


Ainda acerca deste tópico, pensemos quantas pessoas no Brasil tem condições de dialogar usando uma língua como espanhol ou inglês? Buscamos uma ascensão num mercado internacional, sem ao menos pensarmos em dar condições mínimas para que a população que não está ligada ao turismo de massa possa comunicar-se minimamente com o visitante estrangeiro. Este ponto faz com que os viajantes estrangeiros conheçam e levem impressões de um Brasil sempre a partir de um mesmo ponto de vista: o das pessoas que trabalham com turismo e estão preparadas para comunicar a 'mesmice'.

A carta do editor nos traz informações onde é possível notar uma passagem gradual dos aspectos genéricos sobre o Brasil ao detalhamento extremo de informações para a configuração de roteiros de viagem, no decorrer destas três décadas. As preocupações voltam-se para número de estradas asfaltadas, roteiros pré-definidos, número de hotéis luxuosos, o que fazer em caso de problemas, tábua de distâncias e previamente, principalmente os guias apresentados na década de 90 (1993 e 1998), apontam os melhores roteiros de viagem.

A passagem gradual da apresentação de um Brasil com inúmeras lugares a serem descobertos, que apresentava informações que certamente aguçavam o interesse pelo conhecimento de culturas que eram inusitadas, um país grande, com manifestações tão distintas quanto a mistura de raças que originou a população brasileira, deu lugar a criação de um gosto único, a lugares que se parecem mais e mais a cada dia, aos pacotes turísticos pré-montados, a pasteurização do gosto, a previsibilidade. Desta forma as viagens realizadas se assemelham em quase tudo, mesmo em locais são distintos a forma como estão organizados, o tempo, a sistematização das programações e os contatos parecem seguir a mesma lógica.

Em 1993, uma parte do guia destinava-se a apontar as cidades turísticas brasileiras. Em 1998, apresentou-se os 25 melhores roteiros brasileiros sendo que destes 24 ligados a temática ecológica.

Quanto ao retorno a natureza através das preocupações com o ecológico, num primeiro olhar pode denotar a possibilidade de uma volta ao risco, ao inusitado, aos contatos com espaços e culturas que se distinguem do cotidiano urbano.

Só que mesmo ai, o que pode estar ocorrendo é uma pré-programação rígida e estanque. Saltar de uma ponte amarrado por um elástico (bungi jump), escaladas guiadas, rafting, cannoing, podem devolver as sensações anteriores que estavam presentes no ato de viajar: a sensação do novo e frente a este a adrenalina. Entretanto quem trabalha com isto sabe que a sensação pode ser fictícia, pois os riscos são minimizados ao máximo.

Penso que este fenômeno deveria ser objeto de um estudo mais demorado, pois a também outra hipótese de interpretação para contrapor a pasteurização do risco, neste caso. É possível pensar que há o espaço de contradição possibilitando a criação de um novo olhar, de formas alternativas que não repetem o passado mas tendem a reconfigurá-lo. Assim o risco, o inusitado estariam presentes neste cotidiano mas com outros patamares e características. O intuito aqui não é de esgotar esta discussão mas apontá-la como um objeto de estudo interessante.

Vejamos o que dizia a carta do editor. Em 1970 falava sobre a

"possibilidade de mostrar o nosso país aos nossos patrícios e aos viajantes estrangeiros. De ser útil aos que se interessam pelas nossas coisas e procuram conhecê-las...Pensamos que este Brasil em têrmos de atrações e de estradas, seja a principal característica desta edição. O que nos dá prazer e nos convida a sair para as estradas, pois acreditamos que aqui também 'conhecer é amar'".

Neste ano o guia apresentou o Brasil com aspectos gerais, economia, Estados e Territórios, mapas, quadro de distâncias, uma seção de como utilizar tais informações e 'as cidades'. São aspectos que tentavam caracterizar minimamente o Brasil como um todo, contribuindo para a formação de uma identidade nacional e possivelmente de mostrar aspectos que levassem os viajantes a encarar as viagens com seus possíveis riscos e problemas para entrar em contato com novas culturas e comunidades que prometiam surpresas.

Em 1970 é possível saber que o Brasil apresentava uma economia em constante expansão em que as culturas de algodão, amendoim, trigo, soja, milho, batata, cana-de-açúcar, cacau, arroz, mandioca e café representavam cerca de 80% da produção agrícola. Faz uma alusão ao aumento da pecuária, da indústria automobilística, relativamente nova mas em crescente expansão, do aumento do volume das exportações e o progresso do setor energético.

Historicamente vivíamos um período de "Brasil ame-o ou deixe-o". Ideologia imposta pela ditadura militar para que a população desconhecesse e questionasse o que era feito com nossos intelectuais, artistas e líderes políticos que atravessem-se a contrapor qualquer situação política ou social existente.

Em 1980, não há uma carta do editor. São apresentados: um quadro das convenções e abreviaturas, como utilizar o guia, informações úteis, o Brasil-regiões (optou-se por mostrar o Brasil composto em diferentes regiões, com seus estados, condições climáticas, etc), um pouco do Brasil, mapas e quadros de distâncias, as cidades e um calendário. As preocupações neste período parecem centrar-se no aumento de detalhamento das informações úteis. Nota-se uma preocupação com o problema de racionamento de combustíveis. Esta passagem que consta das informações úteis reflete isto, diz: "as medidas adotadas pelo governo para contenção do consumo de gasolina – aumento de preço do combustível, fechando os postos de gasolina à noite e nos domingos e feriados, e limitação dos limites de velocidade máxima a 80 km/h nas estradas - criaram naturais dificuldades para quem deseja fazer turismo de automóvel".

Apresentam-se conselhos de como economizar, como estar em segurança, da necessidade de estar com documentos sempre em mãos ... Fica explícito a preocupação com detalhes de segurança, aluguéis de carro, qualidade das estradas, maior número de hotéis, locadoras de automóveis disponíveis em cada local, maior número de roteiros. Cresce a lógica de viagens cerceadas da possibilidade do risco e do inusitado. Fala-se de alguns problemas com a economia, principalmente na área do abastecimento de combustível, constrói-se a imagem de um País marcante no processo de interiorização, que fica evidenciado pela construção de importantes rodovias, como a Transamazônica e a Perimetral Norte.

Se em 1980, apresentam-se detalhes para que as viagens tenham a menor possibilidade de 'dar errado', em 1993 isto é claro e explícito. A carta do editor diz "viajar é uma das coisas mais saborosas e importantes da nossa vida. Aproveite intensamente todas as oportunidades e não perca tempo em busca do 'país que não existe mais'. Viaje sempre com o Guia do ano".

Foram apresentadas 'as cidades turísticas', 'as cidades dos hotéis diferenciados', 'os restaurantes estrelados', 'os parques nacionais', sendo que isto não era destaque nos guias anteriores analisados. Estas informações selecionam a priori, e não fica claro quais foram os critérios utilizados para tanto, o que temos de 'melhor' em termos de interesse turístico nacional. Há uma preocupação crescente com parques nacionais, o que vai colocar o Brasil na rota do turismo ecológico, fato este que terá posteriormente uma ênfase cada vez mais crescente no cotidiano dos viajantes.

Em 1993, fica claro a crescente preocupação de um Brasil cada vez mais interessado em investir no turismo, marcando opinião com regiões e cidades que sejam consideradas para este fim. São apresentados locais essencialmente turísticos, o que poderá dificultar sobremaneira qualquer região ou cidade que, mesmo não sendo turística, possa oferecer aspectos interessantes a serem conhecidos. Parece que o desejo é apresentar um País visitável e outro que não condiz as condições ideais para viagens de turismo: privilegia-se a ausência do risco, a criação de ícones nacionais, de ofertas de hotéis e restaurantes que tenham as condições mínimas exigidas pêlos padrões pré-estabelecidos pelo turismo internacional.

Em 1998, as explicações sobre como usar bem o guia aparecem na primeira página5 , não existe uma preocupação em tecer quaisquer comentários sobre o desenvolvimento social, econômico, cultural do Brasil. A apresentação das informações estão organizadas da seguinte forma: como usar bem este guia, apresenta explicações rápidas de como chegar a cidade desejada usando os mapas, quadros de distância, os roteiros de viagem e as informações gerais sobre as cidades; onde dormir e comer, descrevendo as categorias de hotéis e restaurantes; o que fazer, referindo-se as atrações sugeridas e locais de compras. Há um calendário de eventos, dando destaque a eventos considerados festas de relevância nacional ou internacional. São apresentados 25 roteiros específicos de viagem e por fim, 800 cidades para que os leitores possam melhor escolher seus destinos.

. Preocupação em adequar-se a um crescente retorno a natureza e aos locais pitorescos, mesmo assim tentando cercear os riscos e o inusitado, é o que nos apresenta o Guia de 1998. A preocupação toda é com informações sobre conforto e comodidade de hospedagem e em dar a conhecer previamente locais interessantes, estigmatizando os gostos.

Desde os dados apresentados é possível dizer que 1970 foi um ano marcadamente de afirmação do Brasil como uma nação em pleno crescimento econômico e de melhorias sociais, de um país genericamente interessante, onde a soma de cada cidade comporia a identidade nacional. Está presente a possibilidade de encontrar-se o risco, o inusitado, o contato entre culturas diferenciadas nas viagens.

Em 1980 o Brasil apresenta sinais de crise econômica, mas em contrapartida pode oferecer um território em expansão, com possibilidades do viajante conhecer inclusive o 'pulmão do mundo'- a Amazônia. As informações já tendem a minorizar os riscos e apresentar detalhes mais precisos sobre estradas, hotéis, restaurantes, etc.

Cidades turísticas, interesses especiais, crescente interesse pêlos locais ecológicos e em investimento com segurança, conforto e detalhamento do pré-viagem, são marcantes no ano de 1993.

O ano de 1998 é, dos guias quatro rodas analisados, o que se privilegia é o Brasil 'natureza', os roteiros em contato com a natureza e onde possam ser praticadas atividades em contato mesma . Será um retorno ao risco ou a pasteurização deste mesmo onde ele parece estar muito presente?


Viagem: o que pode ser interessante em Porto Alegre?

"Porto Alegre, das esquinas esquisitas, das nuanças de paredes, das moças bonitas, como dizia Mário Quintana, que olhava o mapa da cidade como se examinasse a anatomia de um corpo...A paixão pela Capital não é exclusividade do poeta. É um sentimento que toma conta de moradores e visitantes, despertando um suave mistério amoroso, desvendado a cada novo dia. Com charme das pequenas cidades, a graciosa Porto Alegre revela-se grandiosa: é a capital da democracia, da qualidade de vida e das árvores..." (Porto agora Alegre, número 59, março de 1999)

Tudo começou quando Jerônimo de Ornelas, madeireiro residente em São Paulo, escolheu a Lagoa de Viamão como ponto de repouso de suas tropas, em 1725. Em 1735 trouxe a família e pediu sesmaria. Em janeiro de 1752, 60 casais açorianos também desembarcaram no povoado. Mas naquele período, foi 1772 o ano que mais marcou a história da cidade: pela desapropriação da sesmaria de Jerônimo de Ornelas e a sua distribuição aos colonos e também pelo surgimento do nome de Porto de São Francisco dos Casais, em 26 de março. No ano seguinte foi alterado para Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre. Neste mesmo ano, era transferida para Porto Alegre a Capital do Continente de São Pedro, estabelecida em Viamão, desde 1763. Somente em agosto de 1808, Porto Alegre alcança a condição de Vila, com seis mil moradores. Em 14 de novembro de 1822, com 12 mil habitantes, torna-se cidade.

Olhar a anatomia da cidade, como diz o poeta, é conhecer suas origens e sua evolução histórica. Isto pode não ser possível para um viajante desavizado ou orientado pêlos guias de turismo. Esta argumentação explicita a idéia de que só é possível conhecer a cidade, apaixonar-se ou não pela mesma, quando imergimos no seu cotidiano, quando nos damos o direito de estarmos entre os cidadãos, em contato com suas diversas manifestações culturais. Se ficarmos restritos as viagens pré-programadas, por certo perderemos e talvez levemos a impressão de que as cidades se parecem muito.

Quando nos remetemos aos guias quatro rodas é possível perceber que Porto Alegre não é considerada como uma cidade de interesse turístico específico. A cidade é uma capital onde os aficionados por carne, nas suas muitas churrascarias (espetos corridos), poderão encontrar saciedade para suas vontades. Apresenta-se como uma centro urbano comercial e industrial. O que analisamos é o aumento dado a questão do conforto, explicitado pelo crescente número de hotéis cotados para o guia e da diversidade crescente dos restaurantes disponíveis. Em 1970 haviam 12 hotéis, sendo 3 considerados de luxo. Em 1980 o número duplica, são apresentados 24 hotéis sendo 6 considerados de luxo. Em 1993 o número passa para 39 , sendo 7 de luxo e em 1998 apresentam-se 34, sendo 14 de luxo. O que constata-se é um crescente investimento em melhorias da rede hoteleira.

Outro fato que fica evidente, e que neste trabalho tenho como hipótese, é o da transculturação e perda do risco nas viagens. São apresentadas inúmeras informações, que tenderam a crescer principalmente na década de 90, sobre conforto e segurança, sobre os locais a serem vistos e as excursões a serem realizadas.

Em 1970 as informações ficam restritas a apresentar os locais da rodoviária, estação ferroviária (ainda existia este meio de transporte de passageiros!), aeroporto e as lanchas que faziam os passeios no Guaíba.

Em 1980 apresentam-se agências de turismo, autolocadoras, bares, boates, casas de câmbio, centros de convenção, hospitais de pronto socorro. Neste ano, há uma preocupação em eleger locais a serem visitados com características marcadamente culturais e de contato com a natureza.

Em 1993, além de todas as outras informações que já constavam nos outros anos, surge uma preocupação em localizar monumentos, parques públicos, agências bancárias, locais de interesse de compras e os shopping centers.

Porto Alegre como porta de entrada para outras cidades de interesse turístico é o que nos apresenta o guia de 1998. Desta forma se o viajante quer conhecer a Serra Gaúcha, deseja se aventurar nos Aparados da Serra, contemplar as furnas e praias de Torres ou fazer turismo de aventura como rafting, cannoing, caminhadas, escaladas, precisa passar pela capital, então porque não visitá-la?

Ao compararmos os mapas da cidade também é possível perceber um privilégio em salientar o crescimento em melhorias urbanas: expansão de ruas asfaltadas e locais urbanizados e melhorias nos parques urbanos.

Tomando Mário Quintana como interlocutor, penso que os guias da forma como se apresentam, e penso que as agências de turismo trabalham na mesma lógica, levam o viajante que vem com tais informações a Porto Alegre a não conhecer "as esquinas esquisitas, as nuanças nas paredes, as moças bonitas...".


Algumas considerações finais
Retomando o fio inicial de minha argumentação reafirmo que a viagem é uma metáfora, se não preferencial, ao menos que deveria ser priorizada em análises do desenvolvimento social e cultural de uma dada sociedade.

A partir das informações apresentadas, podemos perceber que houveram mudanças importantes no que tange aos planejamentos de uma viagem. Me permito não tecer comentários do tipo isto é bom ou ruim, mas penso que os fenômenos tidos como hipótese estão marcadamente constatados no decorrer de todo o ensaio. Porém, o processo de transculturação e de sobrepujar de uma cultura sobre outra, não podem ser tomados como afirmações definitivas. Seria necessário mais dados, ou a realização de um estudo etnográfico ou de observação participante em grupos de viagem, por exemplo.

Quando pensamos sobre o cerceamento da perda do risco, do inusitado isto fica evidenciado no fornecimento de informações exaustivas sobre hotéis, preços, restaurantes, roteiros específicos, etc.

É apresentado aos leitores/viajantes um Brasil que desenvolveu-se, que enfrentou problemas diferentes como os econômicos e que buscou e busca a afirmação de uma identidade nacional, de expansão da malha rodoviária, da crescente preocupação com investimento em turismo e com captação de recursos via este canal.

Por fim, um apontamento que poderá estimular a realização de um outro trabalho é a constatação de que, principalmente nesta última década, cresceram os investimentos e interesses pelo turismo ecológico. Por certo temos uma influência das tendências mundiais, das preocupações surgidas pelo ECO 92 e da crescente onda do desenvolvimento sustentável.

Fica a pergunta, será que mesmo nas viagens para ambientes ecológicos, de contato com a natureza o inusitado, os riscos, o conhecimento de culturas diferentes e que ainda não sofreram processos exacerbados de transculturação é possível?


Notas

  1. Entende-se transculturação como "culturas como a brasileira que constituem-se na interseção de diferentes especialidades e temporalidades que encontram num dado território um ponto de coexistência. Resultam da justaposição e da interação entre diferentes modos culturais, que convergem para a formação de um modo híbrido e não de um patrimônio estável e sempre idêntico a si mesmo." (Coelho,1997, p.357)

  2. Utilizei o Guia Quatro Rodas dos anos de 1970, 1980, 1993 e 1998.

  3. É preciso salientar que as três últimas décadas foram as de maior evolução tecnológica, maior crescimento populacional, maior êxodo rural, maior aumento de pobreza em nosso País. Houve também um distanciamento ainda maior entre os "incluídos" e os "excluídos".

  4. O MERCOSUL ainda está muito vinculado aos aspectos econômicos mas o desejo é de que hajam cada vez mais trocas no campo da cultura, por exemplo.

  5. Estes aspectos apontam para a direção de que tempo é mercadoria.


Referências bibliográficas


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revista digital · Año 4 · Nº 16 | Buenos Aires, octubre 1999