Lecturas: Educación Física y Deportes
Revista Digital
http://www.efdeportes.com/

DA CIDADE COLONIAL AO ESPAÇO DA MODERNIDADE:
A INTRODUÇÃO DOS DEPORTES NA VIDA URBANA NO RIO DE JANEIRO

Gilmar Mascarenhas de Jesus


Conclusão
Pretendemos agora meramente elencar alguns dos fatores que, julgamos, contribuíram para a conformação desta epidemia de febre esportiva. Em primeiro lugar, destacaremos os fatores extra-locais, examinando qual parcela do mundo se projeta sobre o lugar Rio de Janeiro, tomando de Milton Santos (1996) os conceitos de lugar e mundo. A seguir, levantaremos algumas condições locais que provavelmente colaboraram na importação de novos comportamentos, bem como imprimiram uma singularidade inerente ao lugar.

São alguns fatores extra-locais:

  1. A progressiva retomada, desde o Renascimento, de valores greco-romanos, dentre eles a valorização da estética muscular, dentro de um modelo ideal de fisiculturismo acoplado ao desenvolvimento do espírito.
  2. A introdução sistemática da educação física nas escolas européias do início de século XIX, e sua crescente vinculação aos interesses do estados nascentes (discurso nacionalista).
  3. A adaptação, no mesmo período, no interior das escolas inglesas, de jogos populares remanescentes do período medieval, tornando-os menos violentos, e dotando-os de regras que posteriormente se mundializaram.
  4. A brutal expansão de capitais europeus, sobretudo de origem britânica, no final do século XIX, exportando também novos valores e hábitos culturais, dentre os quais a prática esportiva.

A cidade do Rio de Janeiro, que desde 1808 abriu seu movimento portuário às influências (não apenas materiais) do mundo dito civilizado, passou a receber contínuas informações sobre as novidades européias, e aderiu a muitas delas. Entretanto, no tocante ao desenvolvimento dos sports, que começam a se insinuar mais efetivamente pela cidade por volta de 1850 (através de ingleses que trabalham em firmas britânicas aqui atuantes), a receptividade carioca foi mais lenta. Este período de relativa rejeição ao modismo europeu de apologia ao fisiculturismo (e a decorrente refuncionalização dos espaços públicos) parece se estender na cidade até aproximadamente 1890. Sugerimos os seguintes fatores como explicadores desta relativa inércia local:
  1. A força da tradição: em todo o período colonial o Brasil não desenvolveu uma vida social urbana tão intensa quanto à verificada na fase seguinte (a da modernização urbana), seja pelo porte e natureza de nossas vilas e cidades, seja pelo aparato de vigilância montado pela metrópole lusitana e pela Igreja.
  2. A persistência, até 1888, do regime escravista, fator de desvalorização do esforço muscular. Ainda que a abolição já encontrasse uma situação praticamente definida quanto ao término deste regime, havia toda esta poderosa ideologia em vigor, montada em três séculos de escravidão. E no Rio de Janeiro, o contingente negro era muito significativo.
  3. A presença vigorosa do imaginário cristão, a atribuir ao corpo uma atitude de autocontrole severo dos instintos, e desvalorizá-lo em relação ao papel preponderante da "alma".

Quanto aos fatores locais que permitiram, no final do século passado, uma adesão maciça aos esportes no Rio de Janeiro, temos:
  1. Uma atmosfera particularmente favorável à adoção de modismos europeus, como forma de ruptura republicana com o passado, onde o índio, o negro, o mestiço e mesmo o lusitano são vistos como elementos retrógrados, que emperram o progresso.
  2. A própria necessidade de novas formas de lazer por parte do segmento populacional proveniente da zona rural, geralmente emigrantes das decadentes zonas cafeicultoras fluminenses, incluindo negros libertos. A vida no campo oferece oportunidades de entretenimento baratas ou mesmo gratuitas (pesca, caça, banho em rios e cachoeiras, etc.) que o ambiente urbano nega ou dificulta, suscitando ali um vazio a ser preenchido.
  3. A dessacralização dos espaços públicos e da vida social urbana em geral, impulsionada pelo ambiente hedonista da Belle Époque e pelos ventos positivistas republicanos, de ruptura com o domínio paroquial da Igreja.
  4. A Reforma Passos que, mesmo sem destinar aos esportes qualquer papel substantivo (diferentemente do Plano Agache, em 1930), dotou a orla marítima de maior acessibilidade e, mais que isto, tornou-a lugar central no novo estilo de vida que se impõe, estimulando o uso recreativo das praias e os esportes náuticos. Certamente, a Reforma Passos já foi estudada sob os mais diversos ângulos, mas sua contribuição ao desenvolvimento da atividade esportiva da cidade é ainda uma razoável lacuna.

Não podemos deixar de frisar o caráter elitista que todo este movimento assumiu inicialmente: a imposição de uma nova atitude corporal, através da assimilação de esportes importados, se insere plenamente no projeto civilizador da classe dominante: a intolerância de nossa Belle Époque para com a cultura popular, e não apenas para com o passado colonial. A europeização do carnaval carioca, o cerceamento a festas populares (da Penha, da Glória), e "mesmo a forma de jogo popular mais difundida, o jogo do bicho, é proibida e perseguida, muito embora a sociabilidade das elites elegantes se fizesse em torno dos cassinos e do Jockey Club" (SEVCENKO, 1983:33). Indios, ciganos, imigrantes nordestinos e negros são elementos que o projeto de "cidade moderna" é, a princípio, incapaz de absorver.

A febre esportiva vivenciada pela cidade, que aqui apenas delineamos em certos aspectos relacionados ao advento de uma atmosfera e uma espacialidade modernas, merece ser estudada mais detidamente. Os esportes, aliás, somente nos últimos anos vem encontrando lugar na agenda brasileira de estudos históricos, sociológicos, geográficos ou antropológicos. Considerado como uma faceta "menor" da totalidade social, o esporte foi sistematicamente relegado a segundo plano durante décadas de investigação acadêmica, seja pela corrente da "história oficial" de matriz positivista, seja pela via de um marxismo pretensamente ortodoxo, fundado no economicismo. Um dos caminhos de valorização da atividade esportiva enquanto temário de pesquisa foi aberto pela história social inglesa (sobretudo a partir de Eric Hobsbawm) em sua busca de facetas menosprezadas das estruturas do cotidiano (em particular o cotidiano das classes trabalhadoras). Tal enfoque favoreceu uma perspectiva mais rica das condições de vida de amplos segmentos urbanos, e ao ser aplicado ao estudo da história do esporte, propiciou a contextualização de um leque de atividades até então praticamente isolado, pela historiografia, do conjunto da sociedade. Acreditamos que, ao iluminar determinados momentos e lugares do processo de esportivização da sociedade carioca no início do século, estamos contribuindo para uma compreensão mais ampla do que significou, no plano das estruturas da vida cotidiana, a nossa inserção na Belle Époque.


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Año 4. Nº 14. Buenos Aires, Junio 1999