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ESPORTE E MITO DA DEMOCRACIA RACIAL NO BRASIL:
MEMÓRIAS DE UM APARTHEID NO FUTEBOL

Gilmar Mascarenhas de Jesus


III. O Apartheid Futebolístico: a Liga da Canela Preta
É difícil precisar o momento de fundação da Liga "Nacional" de Football Portoalegrense, a liga dos negros5 . Podemos situar seu início em meados da década de dez, a partir da constatação da apropriação, desde 1911/12, do abandonado campo do SC Internacional pela população negra local que, numerosa, teria provavelmente possibilidades de organizar alguns times de futebol. Sua oficialização pode ter ocorrido no final daquela década. Consta que contava no início com os seguintes clubes: Primavera, Bento Gonçalves (famoso clube que excursionou com êxito pelo interior do estado em 1923), União, Palmeiras, Primeiro de Novembro, Rio-Grandense, 8 de Setembro, Aquidabã e Venezianos. Em 1922, a liga "branca" criou sua segunda divisão e nela abriu oportunidades para jogadores e clubes negros, fato que os atraiu progressivamente, acionando uma lenta e gradual decadência da Liga da Canela Preta6. Interessante registrar que o sr. Francisco Rodrigues (pai do famoso compositor Lupicínio Rodrigues) dirigia o Rio Grandense, clube que gerou polêmica no interior da liga por definir-se como "mulato": somente mulatos e mulatas poderiam torcer pelo clube7. Cardoso (1962:302) alerta para a emergência deste movimento "mulato", que realiza uma polêmica diferenciação interna na comunidade negra, alvo de críticas e reações violentas por parte dos militantes da "raça". Observa o autor a existência em 1915 de associações exclusivas para "mulatos", numa estratégia de ascenção social através da negação da negritude. Sendo o "outro" numa cidade cindida, o negro encontra no mimetismo em meio aos brancos uma forma de obter aceitação na sociedade. Cardoso (1962:298) visualiza uma pequena burguesia negra, originária de artesãos urbanos do século XIX, que se educou e que se expressa no periódico O Exemplo. Este jornal, em determinadas épocas, promove um discurso de pregação de "boas maneiras" aos negros, o que é uma forma de branqueamento, via aceitação de um código de conduta. Tais negros poderiam assim se tornar "protegidos", isto é, submeter-se a chefes de parentelas poderosos, capazes de abrir determinandas "portas", reproduzindo a velha ordem senhorial, agora numa sociedade capitalista. Esta "mobilidade social controlada" (Cardoso, 1962:299) podemos verificar também no futebol: no SC Internacional dos anos 20, havia uma "resistência oculta", só permitindo praticamente o acesso de mulatos e ainda assim bem credenciados8.

Infelizmente, esta liga até o presente momento raramente frequentou as páginas da literatura futebolística (acadêmica ou não). Coimbra e Pinto (1994:30), Guimaraens (1985:16), como outros, trazem vagas referências. Endler (1984:16), afirma que a liga teve "vida forte" até 1925. Baseado em depoimentos do ex-jogador Osvaldo Rola (o "Foguinho"), Guimaraens aponta a existência de três importantes ligas no futebol portoalegrense em torno de 1920: a principal, vulgarmente denominada Liga do Sabonete, composta por elementos da elite (a "nata do futebol da cidade"), que entravam em campo impecavelmente trajados; a liga intermediária, ou liga do sabão, composta por elementos da "classe média baixa": pequenos comerciários e clubes de etnias minoritárias como o Concórdia, de poloneses; por fim, a liga das canelas pretas (assim, no plural), disputada "somente por times de jogadores negros que não eram aceitos pelas outras equipes".

Considerando-se que Porto Alegre é um dos mais centros de prática do futebol no Brasil (Jesus, 1998), é de se notar a lentidão local em permitir o acesso de negros na liga principal. ë amplamente conhecido o caso do Gremio FBPA, que apenas admitiu pela primeira vez um jogador negro em 1952, e ainda assim por se tratar de Tesourinha (um dos maiores talentos já vistos no Brasil, e recusado pelo rival SC Internacional). Acreditamos que tal cenário tem ampla relação com a estrutura urbana de Porto Alegre: a presença de guetos negros e outros bairros étnicos (Pesavento, 1991:42) pode ajudar a explicar a segregação racial reinante no futebol local. A liga da canela preta e toda a rejeição por parte da liga branca são fatos que não podem ser isolados da dinâmica urbana. Em síntese, o futebol não pode ser tratado como um epifenômeno, alheio à sociedade envolvente.

Por fim, cabe uma nota para a denominação oficial da liga: parece-nos curioso a utilização do adjetivo "nacional". Este pode estar sugerindo a condição nativa, "da terra", quiçá criticando a larga presença na liga "branca" de não-brasileiros: argentinos e uruguaios, por um lado; alemães, italianos e até poloneses, e seus descendentes, por outro. Estes últimos seriam brasileiros, porém menos "brasileiros" que aqueles negros com algumas gerações nascidas em nosso território (lembrando que o Rio Grande do Sul foi uma das maiores províncias receptoras de escravos, e que os negros correspondiam em 1874 a 21% da população gaúcha)9.

Por outro lado, vale indagar sobre a denominação vulgar e sua ampla difusão. Ao estudar a Colônia Africana, Cláudia Mauch (1988) deparou-se com a seguinte situação: a imprensa promoveu larga campanha adversa, difamando tal comunidade, tornando-a conhecida no imaginário da cidade, ao mesmo tempo em que a literatura acadêmica silencia sobre a mesma10. A liga da "canela preta" também padece deste paradoxo: muito poucos a conhecem, porém muitos já ouviram falar. Outra semelhança entre ambas (além de contituirem territorialidades da segregação racial portoalegrense), é a carga altamente pejorativa. Segundo Pesavento (1998), "o léxico que designa espaços e lugares da cidade mediatiza valores, julgamentos e preconceitos, condenando práticas sociais e atores". A denominação oficial da liga ficou praticamente esquecido da memória urbana, em favor de um registro que despreza, ironiza e atribui um sentido de estranhamento e alteridade: aquelas "canelas"são diferentes, fojem ao padrão, elas são "pretas".


Conclusão
A partir do que foi exposto neste trabalho, podemos levantar ao menos duas indagações. Primeiramente, até que se prove o contrário, sabemos que todas as primeiras ligas de futebol criadas no Brasil eram de acesso restrito a indivíduos de cor branca e bem colocados na estrutura econômico-social. E que os negros e brancos pobres se organizaram na várzea e na periferia até adquirir paulatinamente lugar na liga principal. Seria importante saber se a formação de ligas de futebol de acesso exclusivo aos negros foi uma característica exclusiva do futebol gaúcho.

Conforme já foi dito aqui, carecemos profundamente de estudos sistemáticos sobre a inserção do negro na evolução do futebol no Brasil. O pouco já levantado recobre uma parcela ínfima do território nacional, não permitindo a menor generalização, enquanto procedimento científico legítimo11. Há séculos, unidades da Federação como Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Maranhão, entre outras, aportam em seu estoque demográfico respeitáveis percentuais de negros, e muito pouco sabemos sobre a participação destes na história social do futebol regional12 .

A existência de ligas como a da "canela preta" parece não encontrar suporte na dinâmica geral das relações inter-raciais no Brasil. Se a tal "democracia racial" constitui sabidamente um discurso há muito constestado severa e consistentemente por renomados estudiosos como Octavio Ianni e Florestan Fernandes, por outro lado não devemos esquecer que o Brasil desenvolveu um racismo de natureza peculiar.

O caso estudado, entretanto, aponta para um cenário que, ao menos durante poucos anos (até 1922, quando se abre um estreito canal de absorção de negros na segunda divisão da liga "oficial"), oferece evidências de uma segregação racial abertamente instituída. Surge-nos então a segunda indagação: que conjuntura sócio-espacial propiciou o surgimento de tais ligas no Rio Grande do Sul? Este questionamento parece suscitar algumas particularidades da sociedade gaúcha em relação à questão racial, que podem por fim apontar razões para a possível exclusividade de suas ligas negras no panorama racial brasileiro.

Apesar das imensas "lacunas" da literatura acadêmica (são na verdade verdadeiros abismos a inviabilizar qualquer resposta sensata à questão colocada), ousamos um encaminhamento através de Gitibá Faustino (1991:97) que afirma que o Rio Grande do Sul "sempre se caracterizou por ser um Estado (sic) onde o racismo atinge dimensões bem maiores que o resto do Brasil". Não detemos elementos empíricos ou mesmo instrumentos metodológicos para tentar aquilatar o grau de racismo entre os gaúchos, tarefa aliás pouco sensata, considerando-se o racismo um fenômeno de grande complexidade, impróprio para ser quantificado em gradientes. Entretanto, é interessante observar a forte tendência entre os negros no Rio Grande do Sul a formatar uma territorialidade e uma sociabilidade à parte da sociedade "branca".

Queremos enfatizar neste trabalho a necessidade de um amplo e prolongado esforço de pesquisa no sentido do preenchimento de imensas lacunas que persistem acerca do negro no futebol brasileiro, para que não prossigamos na conduta viciada de tecer generalizações descuidadas. Ou, o que também é indesejável, estar impedido de realizar qualquer generalização prudente. O fato de encontrarmos na trajetória de Tesourinha vários elementos em comum com o cenário descrito por Mario Filho reafirma a qualidade de sua obra, mas não justifica a ausência de novas pesquisas que permitam uma análise de maior cobertura espacial. Acreditamos que mesmo inciativas de caráter introdutório, como a que agora apresentamos, podem contribuir no sentido de uma compreensão geograficamente mais representativa do futebol brasileiro.


Notas

  1. De 1920 a 1960, existiu nos EUA uma liga nacional de beisebol exclusiva para os negros, The Negro National League. E esta provavelmente foi precedida de diversas ligas locais, também negras, posto que a liga principal, desde sua fundação em 1867, proibe expressamente a participação de jogadores ou clubes negros (BARTH, 1980:179). Na África do Sul, não obstante a grande diversidade tribal no seio da população negra, a South Africa Bantu Football Association foi criada em 1933, embora existam clubes exclusivamente negros no país desde 1898. Tal liga sobreviveu paralelamente à liga "branca" até os anos 60, quando cedeu à crescente pressão da FIFA por uma única liga nacional de caráter multirracial (THABE, 1983: 6-10).
  2. O principal manancial para o debate acerca da inserção do negro brasileiro no futebol se encontra na obra de Mario Filho (1947) O Negro no Futebol Brasileiro. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores , 1a. edição. A segunda edição é de 1964 (Ed. Civilização Brasileira), e a terceira é de 1994, pela editora Firmo.
  3. Repetindo Mazzoni (1950) a literatura majoritariamente consagra esta informação, constestada entretanto por pesquisadores locais( Marco Quevedo, Raul Pons) posto que suas pesquisas revelam a existência de outros clubes no período, ainda que menos estáveis e organizados que a dupla Grêmio-Fussbal. O que porém não invalida o ano de 1909 como marco importante na consolidação do futebol na cidade, que passa a ter condições de gerar uma liga e campeonatos regulares.
  4. Toponímia do passado, referente a locais posteriormente reurbanizados, abrigando hoje o Pronto Socorro e unidades da UFRGS, como o Hospital das Clínicas.
  5. Lamentavelmente, toda a documentação referente a esta liga foi destruída por ocasião da enchente de 1941. As informações presentes foram colhidas em entrevistas: embora problemática, a história oral é o único resgate possível desta memória. E há inclusive divergências quanto ao local de surgimento da liga negra : para Endler (1984:16), ela surge na Colônia Africana.
  6. Informações extraídas de Jornal do Inter (1 a 15/08/1975) e Zero Hora (13/05/1987: suplemento especial:"História do negro no futebol gaúcho". Não imaginamos porém que todos os negros de então desejassem jogar na liga "oficial", sobretudo na divisão inferior.
  7. Não consta na fonte (Carlos Lopes dos Santos, em Zero Hora, 13/05/87) se também os jogadores do clube deveriam ser "mulatos". Por coerência, acreditamos que sim. Na cidade de Pelotas, é possível verificar, através de fotografia publicada na imprensa em 1931, que alguns times da Liga José do Patrocínio (também de negros) exibiam atletas "mulatos", como o SC Universal, enquanto outros clubes, como GS Sul América, o GS Vencedor e o GS Luzitano eram compostos exclusivamente por indivíduos cuja tez negra revelava possivelmente a ausência total de interferência pregressa de exogamia racial.
  8. Zero Hora,13/05/1987, e Jornal do Inter, 1 a 15/08/1975. O próprio compositor Lupicínio, não obstante seu inegável talento musical, contou com uma rede de contatos para abrir "portas" e vencer o isolamento da Ilhota, chegando a alcançar fama na capital do País (façanha rara na época): aos 21 anos adquire, através acesso do pai a um desembagador, emprego de bedel na Faculdade de Direito; casa-se com uma mulher branca numa sociedade onde o índice de exogamia racial é dos mais baixos; torna-se torcedor do Grêmio (clube então racista e elitista), para o qual compõe belíssimo hino. Se Mário Goulart (1984:51) diz que "Lupicínio teve os amigos e os parceiros certos", acreditamos que não se trata de obra do acaso.
  9. Maestri Filho: 1997:234.
  10. O recente trabalho de Eduardo Kersting (1998) rompe alguns aspectos deste silencio.
  11. Registre-se ainda o escasso intercâmbio de informações referentes às realidades regionais. Até onde alcança nosso levantamento bibliográfico, a liga da canela preta aparece pela primeira vez numa publicação fora do Rio de Grande do Sul somente em junho de 1998, no belo artigo de Lopes (1998) sobre as raízes mestiças so futebol brasileiro. Felizmente, trata-se de um periódico de circulação nacional.
  12. Em Salvador (BA), o historiador Aloildo Pires, autor da coluna "memória do futebol" no jornal "A Tarde", nos informou em entrevista que a primeira liga de futebol na Bahia (fundada em 1904) era chamada de "liga branca". Em 1912, conflitos geram nova liga, a "liga democrática", que supostamente permitiria a participação de atletas negros. Segundo Mario Filho (1984:144) o jogador carioca Manteiga abandonou o América (RJ) em 1922 para se estabelecer no futebol baiano. A suposição de Aloildo, se confirmada, aliada à atitude de Manteiga, sugerem um cenário bem menos racista que o da cidade do Rio de Janeiro ("na Bahia estava em casa" enquanto no Rio tinha de andar "quase fugido", diz Mario Filho). Há indícios de ser Salvador a cidade pioneira no Brasil no acesso franco de negros à liga de futebol principal.

Bibliografia

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Año 4. Nº 14. Buenos Aires, Junio 1999