ESPORTE E MITO DA DEMOCRACIA RACIAL NO BRASIL:
MEMÓRIAS DE UM APARTHEID NO FUTEBOL
Gilmar Mascarenhas de Jesus (Brasil)
Departamento de Geografia da UERJ
Resumo
A história social do futebol no Rio Grande do Sul revela momentos de forte segregação racial, com destaque para a existência de ligas exclusivamente formada por atletas negros, nos moldes tradicionalmente encontrados na África do Sul (durante a vigência do Apartheid) e nos EUA até 1960. Verificamos a presença de tais ligas em cidades gaúchas como Porto Alegre (capital do estado), Pelotas e Rio Grande. A Liga da Canela Preta, que existiu na cidade de Porto Alegre, aproximadamente entre 1915 e 1930, é aqui enfocada como expressão da segregação do negro nesta cidade naquele momento. O conhecimento acerca da problemática inserção do negro no futebol brasileiro merece levantamentos de situações concretas, a fim de superar o estágio atual dos debates, caracterizado por forte atrelamento ao mito da democracia racial brasileira e a fontes historiográficas de alcance limitado.
Unitermos: Mito da democracia racial. Segregação. Futebol. Negro brasileiro.Abstract
The social history of football in the state of Rio Grande do Sul reveals moments of intense racial segregation with prominence for the existence of leagues exclusively formed by black athletes, in the same form of those traditionally found in South Africa (during the Apartheid regime) and in the USA until 1960. We have found negro leagues in cities of Rio Grande do Sul such as Porto Alegre (the state capital), Pelotas and Rio Grande. The Black Shin League existed in Porto Alegre nearly between 1915 and 1930, and it is focalized here as an expression of the explicit racial segregation in this city at that time. Knowledge about the debut of black men in Brazilian football requires more surveys about concrete situations, in order to surpass the current stage of the debate, based on limited research of historical sources, and which has been characterized by widespread acceptance of the myth of Brazilian racial democracy.
Key-words: Racial democracy mith. Segregation. Football. Brazilian negro.
A história social do futebol brasileiro traz em si processos dramáticos e representativos de problemáticas centrais da sociedade. Inicialmente reduto exclusivo das elites, tal esporte rapidamente rompeu os círculos aristocráticos para ganhar as ruas e tornar-se entretenimento popular de largo alcance. Neste processo de democratização de uma prática esportiva, um dos aspectos mais tensos é a inserção do negro nos grandes clubes e/ou principais campeonatos de futebol.
O futebol se introduz na vida social brasileira justamente no momento em que esta vive uma conjuntura de acirramento das tensões raciais. O processo de desescravização, nas últimas décadas do século XIX, faz aportar nas principais cidades brasileiras densos contingentes de negros oriundos da zona rural. A substituição do trabalho escravo por imigrantes europeus acarretou não somente um quadro de falta de oportunidades de trabalho para o negro, mas todo um recrudescimento do racismo, no âmbito da ideologia do "enbranquecimento" da nova nação republicana.
No Rio Grande do Sul, onde o afluxo de imigrantes europeus foi particularmente maciço, a situação do negro adquiriu contornos dramáticos. Na cidade de Porto Alegre, início do século XX, pólo industrial e centro convergente da próspera zona colonial ítalo-germânica, a ideologia anti-negro encontra terreno fértil. Segundo Cardoso (1962:278-81), tão logo a máquina senhorial perdeu as condições legais e morais de coação, iniciou-se um processo de redefinição do conjunto de representações sobre a negritude: a positividade do escravo manso, fiel e laborioso vai cedendo lugar ao estigma da preguiça e da indolência. "Foi-se constituindo, pouco a pouco, o problema negro" (Cardoso, 1962:281).
Aproximadamente entre 1915 e 1930, quando o futebol se populariza em Porto Alegre, esta ideologia anti-negro está em pleno vigor, de forma que não resta ao negro outra alternativa para a prática do futebol senão a formação de uma liga exclusivamente composta por elementos descendentes dos escravos africanos há pouco libertos do cativeiro. Em Porto Alegre, temos a Liga Nacional de Futebol Porto Alegrense, pejorativamente conhecida (e divulgada na imprensa "branca") como Liga da Canela Preta. Em Pelotas, forma-se a Liga José do Patrocínio, e em Rio Grande, a Liga Rio Branco, todas exclusivas para atletas negros, em modelo semelhante ao encontrado nos EUA até 1960 e África do Sul na vigência do apartheid, quando a discriminação racial assumia forma aberta institucional1.
O objetivo deste trabalho é trazer à superfície esta realidade desconhecida para a grande maioria dos estudiosos da questão negra e da história do futebol no Brasil. Acreditamos que podemos assim arejar o debate sobre a inserção do negro no futebol brasileiro, ainda muito condicionada pela clássica obra de Mario Filho2, que alimenta o mito da democracia racial brasileira. Sobre esta obra pretendemos tecer alguns breves comentários, antes de mergulhar no universo do futebol de negros em Porto Alegre.
I. O Negro no Futebol Brasileiro: mitos contestados e lacunas abissais
Raquel Rolnik (1989) lamenta com propriedade a ausência de estudos sobre a inserção territorial do negro nas cidades brasileiras. Podemos estender tal constatação à presença do negro no futebol. No tocante às ligas negras, por exemplo, a literatura não ultrapassa vagas e imprecisas alusões. Mergulhar neste campo permite a possível revisão de teses consagradas na literatura acadêmica acerca do negro no futebol brasileiro. Em primeiro lugar. por que esta literatura carece largamente de investigações de realidades regionais para além do tradicional eixo Rio-São Paulo. Em segundo por apresenta outros problemas, relacionados à carga mitológica que esta atribui à contribuição do negro no estilo brasileiro de jogar futebol. Nos deteremos brevemente neste aspecto, para situar nosso trabalho neste privilegiado e polêmico tema dos estudiosos do futebol.Antonio Jorge Soares dedica sua tese de doutoramento ao exame crítico deste clássico livro de Mário Filho, para concluir que trata-se de uma obra magnífica enquanto romance épico de um incontestável gênio promocional do esporte, porém carente de fundamentação científica. Segundo o autor, Mario Filho valeu-se de um aporte teórico-metodológico pobre (o "freyrismo popular") e submeteu os dados recolhidos à uma narrativa épica e romanesca, centrada na mitificação e endeusamento de atletas (sobretudo os negros) e de suas heróicas façanhas no campo de futebol, a despeito de suas reiteradas dificuldades na sociedade (Soares, 1998:170-2). O desejo de enaltecer e dramatizar o esporte fez com que a imaginação do romancista se impusesse ao fato histórico, conferindo à obra pouco rigor científico e discutida veracidade. Neste sentido, a ficção muitas vezes se mistura aos fatos num estilo literário que o próprio Mario Filho inventou e difundiu com merecido sucesso (Soares, 1998:144-9).
O que Soares entende por "freyerismo popular" é, grosso modo, uma apropriação empobrecedora da extensa, fecunda e polêmica obra do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre. Freyre, como outros grandes intelectuais de seu tempo, desenvolveu, a partir dos anos 1930, toda uma nova interpretação da sociedade brasileira. Nela se via, pela primeira vez com argumentação consistente, a positividade da intensa mestiçagem na população. Positividade esta baseada na riqueza das diferentes contribuições culturais a formar uma nova e rica civilização nos trópicos, caracterizada ainda por baixo grau de tensão inter-racial.
A obra de Gilberto Freyre constitui referencial básico para discutir a sociedade brasileira, mas muitos de seus pressupostos e conclusões foram posteriormente rechaçados por uma nova geração de intelectuais que, a partir dos anos 1960, imprimiram às ciências sociais no Brasil a crítica aguçada do materialismo histórico e dialético. Esta crítica acusa Freyre de sustentar o mito de uma democracia racial, calcada da convivência pacífica das diferentes raças formadoras da nacionalidade brasileira. Não podemos nos estender por este vasto caminho, mas simplesmente, a guisa de exemplificação, apresentar a seguir um momento do livro de Mario Filho em que este expõe sua filiação intelectual a Gilberto Freyre (que aliás prefaciou a primeira edição de O Negro no Futebol Brasileiro).
Gilberto Freyre atribui ao comportamento sexual do colonizador português uma das causas básicas da mestiçagem e da convivência pacífica entre as raças, ao criar o "mulato"(o símbolo da mistura branco-negro) como amortecedor de conflitos. No Rio de Janeiro, em 1923, o Clube de Regatas Vasco da Gama, pertencente à numerosa comunidade portuguesa naquela cidade, protagonizou um dos momentos mais importantes no processo de democratização no futebol brasileiro, ao conquistar o campeonato carioca com um time formado majoritariamente por indivíduos negros ou brancos pobres, superando equipes elitistas como Flamengo, Fluminense, América e Botafogo, que dominavam o futebol local até então. Tal feito, que Mario Filho define como a gloriosa "Revolução Vascaína", deve-se, segundo o autor, ao fato deste clube ter seguido "a boa tradição portuguesa da mistura". Tratava-se, nesta ótica, de um comportamento cultural, próprio do segmento lusitano e de grande positividade. Os interesses econômicos e políticos envolvidos são completamente ignorados.
A tese de Soares (1998) sinaliza não apenas as limitações da obra enquanto fonte documental, mas sobretudo denuncia sua intensa utilização como fonte "incontestável" para as pesquisas acadêmicas. Soares (1998:154) critica a postura daqueles que "entronizam" Mario Filho como etnógrafo e historiador, reproduzindo seus mitos às custas da permanante falta de iniciativa de se efetuar os necessários levantamentos de fontes primárias. Queremos aqui apontar uma outra limitação ao largo uso desta obra como referência básica para as pesquisas. Trata-se do fato desta restringir o universo de análise à cidade do Rio de Janeiro, apesar de supostamente sinalizar a realidade nacional, conforme evoca explicitamente o título da obra. Entendemos que para mapear e aprofundar a questão do negro no futebol brasileiro, é necessária a realização de pesquisas localizadas. Partindo da ampla diversidade regional brasileira, bem como a dispersão espacial do elemento negro na demografia nacional, podemos imaginar um quadro heterogêneo de experiências do negro e sua inserção no futebol brasileiro. Uma destas experiências está aqui brevemente relatada, e enfocada no contexto da urbanização.
II. Os Negros e o Futebol em Porto Alegre: segregação é a palavra de ordem
Para melhor compreender e dimensionar a liga de atletas negros é preciso contextualizar historicamente suas ações no cenário esportivo portoalegrense. Em consonância com o projeto de modernidade, a cidade de Porto Alegre no início do século vibrava intensamente com os espetáculos esportivos, com destaque para o ciclismo e o turfe, este último dispondo de nada menos que quatro hipódromos (MONTEIRO, 1995:32). O remo já realiza campeonatos estaduais desde 1898 (HOLFMEISTER, 1978:19) e o ciclismo também encontra-se bem difundido. Examinando a economia urbana e regional no início do século, Paul Singer (1974:161-4) define Porto Alegre como a "cidade dos alemães", tendo em vista a forte predominância de "dinastias econômicas germano-riograndenses" na organização e condução dos grandes negócios e empreendimentos. Se observasse a vida esportiva, chegaria à mesma conclusão: a maioria das asssociações esportivas é de origem germânica. Ademais, os esportes modernos eram ainda privilégio ao qual a "massa" urbana local não tinha acesso.O futebol apresentou lenta evolução inicial: de 1903 a 1909 (ano de fundação do SC Internacional), os "únicos" dois clubes existentes3 (o Grêmio F.B.P.A e o Fussball) limitaram-se a disputar anualmente entre si a taça wanderpreiss (geralmente em apenas dois confrontos pomposamente organizados, verdadeiros cerimoniais da elite convidada), e a realizar eventuais amistosos com clubes visitantes de Rio Grande e Pelotas (PIRES, 1967). A Liga Porto Alegrense de Football é criada somente em 1910.Neste ano, contando com sete agremiações, é disputado o primeiro campeonato municipal, e o futebol local inicia finalmente um processo de difusão social mais abrangente e efetivo. No ano seguinte, o Grêmio ergue em seu ground o majestoso pavilhão "social", com capacidade para 500 pessoas, e pequena arquibancada. Cobram-se ingressos, mas o morro ao fundo lotava de gente interessada, atestando a popularidade do futebol na cidade (GFBPA, 1983:6).
Segundo Sandra Pesavento, ao longo do século XIX se observa nas zonas pobres da cidade de Porto Alegre a formação de pequenos núcleos habitacionais de predominância negra, bem como se nota a existência de regiões ( as "emboscadas") caracterizadas por abrigar temporariamente escravos fugitivos. Mas é com a desescravização que a territorialidade negra ganha corpo, através da geração de "um cinturão de cor em torno da cidade branca que se aburguesava lentamente" (Pesavento, 1995:84). A origem destes novos territórios étnicos tem relação direta com a exclusão do negro liberto de diversos setores da economia urbana que se industrializa e que prioriza a força de trabalho do imigrante europeu. Neste contexto se observa a formação de um novo bairro na cidade, reconhecido oficialmente desde 1896 como "arrabalde da colônia africana". Composta por tanques públicos para as lavadeiras e casario rústico de madeira, a aglomeração compacta da população negra na franja da mancha urbana de então constituiu uma espécie de gueto, centro de práticas religiosas afro-brasileiras e alvo de intensa discriminação na imprensa local já em 1895 (Franco, 1988:118-9). Deste arrabalde periférico, verdadeiro enclave étnico situado numa colina, descerão os negros em direção à várzea do "Caminho do Meio", do "Campo do Bom Fim" ou da "Volta do Cordeiro" para praticar o futebol4. Mais próximo à area central da cidade, havia outro "território" de segregação racial conhecido por Areal da Baronesa, assim chamado por ocupar terrenos da antiga chácara da Baronesa de Gravataí e pela abundância de areia de origem fluvial (do outrora sinuoso riacho popularmente conhecido por arroio Dilúvio). No século XIX, era uma "emboscada", aqui já definida como local não urbanizado, propício ao esconderijo provisório de escravos foragidos. Outra importante concentração de negros era a "Ilhota", sítio alagadiço vizinho ao Areal da Baronesa, e assim denominado em função das curvas do supracitado riacho formarem um alvéolo, quase "ilhando" um trecho do terreno.
O futebol se difunde com forma de entretenimento popular numa cidade que se apresenta como um tecido fragmentado, separando nitidamente grupos étnicos e sócio-econômicos; esta fragmentação vai incidir claramente sobre a organização do futebol.