Memórias lúdicas: um tesouro escondido

Ludic memories: a hidden treasure

Memorias lúdicas: un tesoro oculto

 

Kleber Tüxen Carneiro*

kleber2910@gmail.com

Alcides José Scaglia**

alcides.scaglia@gmail.com

Maurício Bronzatto***

maub1970@ig.com.br

Eliasaf Rodrigues de Assis****

eliasafassis@hotmail.com

Ricardo Leite de Camargo*****

ricardocamargo@usp.br

 

*Doutor em Educação Escolar

pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP

Docente na Universidade Federal de Lavras, Lavras/MG

**Doutor em Pedagogia do Movimento pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

Docente na Universidade Estadual de Campinas/Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) Limeira/SP

***Doutor em Educação Escolar

pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP

Docente no Instituto Federal de Salto/SP

****Doutor em Educação Escolar

pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP

*****Professor Livre Docente pela Universidade de São Paulo - USP

Docente na Esalq/USP

(Brasil)

 

Recepção: 16/10/2017 - Aceitação: 17/03/2018

1ª Revisão: 29/01/2018 - 2ª Revisão: 15/03/2018

Resumo

    Considerando que a memória lúdica é diretamente afetada por vários fatores e suscetível de perdas, o presente ensaio dedica-se a conhecer e registrar artefatos e conteúdos da cultura lúdica dos anos 1920 e 1930. Sua idealização, vinculada a um estudo mais amplo, sem, no entanto, destinar-se a reapresentar seus resultados, embora alguns destes, sirvam de emolduramento para reflexões que compõem o texto e em alguns momentos, se façam presentes. Propõe-se um resgate dos fragmentos e substratos lúdicos do período mencionado para que se assegure sua perenidade e, consequentemente, o intercâmbio geracional por meio da cultura lúdica.

    Unitermos: Memória. Cultura lúdica. Infância.

 

Abstract

    Considering that the ludic memory is directly affected by various factors and susceptible to losses, this textual essay is dedicated to know and record artifacts and content of the play culture of the 1920s and 1930s. His idealization, is linked to a broader study, however, is not intended to present their results, although some of these, serve as framing for reflections that make up the text and in some moments, make themselves present. However, what we intend to do, was to rescue the ludic fragments and substrates of other time to resist the inexorable power of the time and ensure the generational exchanges through the ludic culture.

    Keywords: Memory. Ludic culture. Childhood.

 

Resumen

    Considerando que la memoria lúdica se ve directamente afectada por diversos factores y susceptible a las pérdidas, este trabajo está dedicado a conocer la artefactos y contenidos de la cultura lúdica de los años 1920 y 1930. Su idealización, vinculada a un estudio más amplio, no obstante, se destina a volver a presentar sus resultados, aunque algunos de ellos, sirvan de encuadre para reflexiones que componen el texto y en algunos momentos, se hagan presentes. Su objetivo es rescatar los fragmentos y sustratos lúdicos del período ya mencionado para asegurar su continuidad y, consecuentemente, un diálogo intergeneracional a través de la cultura lúdica.

    Palabras clave: Memoria. Cultura lúdica. Infancia.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 22, Núm. 238, Mar. (2018)


 

Introdução

 

    O presente ensaio alvitra por discorrer sobre as diferentes manifestações da cultura lúdica (jogo) na infância dos anos 1920 e 1930. Sua idealização provém de um estudo mais amplo, cujo objetivo foi o de resgatar o conteúdo lúdico dentro de um período histórico peculiar (Carneiro, 2015). Cumpre-nos, no entanto, ressalvar que, embora alguns dados do referido estudo estejam contidos no presente texto, não se trata de uma mera reapresentação de seus resultados. Os dados da pesquisa supramencionada são os referentes contextuais dos conteúdos e artefatos da cultura lúdica. São úteis para a compreensão do arcabouço lúdico, o grande desafio de registro do trabalho. No presente texto, uma nova configuração se estabelece: partir dos subsídios da pesquisa anteriormente aludida para elaborar uma compreensão mais profunda da cultura lúdica, considerando as práticas e vivências dos sujeitos, tanto objetivas quanto subjetivas. Valendo-nos de uma metáfora, trata-se de trazer à luz algo que está escondido, em uma prospecção semelhante à que é feita por um arqueólogo, cujo trabalho consiste em “escavar e vasculhar" fragmentos para recuperar tesouros desaparecidos.

 

    Ao considerarmos que o cenário atual apresenta aguda diminuição de determinadas expressões lúdicas, entendemos ser necessário salvaguardar tais elementos por meio da perpetuação da memória lúdica, a alternativa que nos resta para a preservação desse patrimônio cultural e afetivo da humanidade. No entanto, reconhecendo a dinâmica do tecido que compõe as tramas lúdicas, também reconhecemos suas ressignificações, ou seja, as novas configurações e formatos.

 

    As reflexões aqui apresentadas não se baseiam em saudosismo. Antes, pretendemos demonstrar o valor de práticas e artefatos da cultura lúdica, que, embora simples, foram fundamentais devido às habilidades e emoções que estimularam (Oliveira et al., 2010).

 

    É necessário portanto, preservar a memória lúdica, recuperando fragmentos de um tesouro perdido.

 

Memória, Cultura Lúdica e Jogo

 

    A memória é uma reconstrução continuamente atualizada do passado, lastreada em contribuições produzidas ao longo do tempo. Segundo Meihy (2002, p. 54), "memórias são lembranças organizadas segundo a lógica subjetiva que seleciona e articula elementos que nem sempre correspondem aos fatos concretos, objetivos e materiais". Compreendemos também que seus referentes situam-se sobre o patrimônio cultural construído historicamente pela humanidade, ainda que em sua manifestação não haja o compromisso com a exata fidelidade temporal, ou mesmo com a fidedignidade do fato em relação ao conteúdo lembrado (Carneiro, 2015).

 

    A memória se constrói tecendo imagens, evocando significados afetivos do que não se quer esquecer. É uma liga que adesiva os cacos do passado aos novos elementos do presente, colando os fragmentos dos episódios vividos à nova dimensão de significados adquirida. Produzindo um vitral que determina nosso contexto (Cardoso, 2004).

 

    Nesse sentido, a lembrança, para habitar o presente, necessita de “ancoradouros” no tempo e espaço. Exemplo: a infância e a rua, o trabalho e a fábrica, a casa velha... Assim, o jogo, conteúdo indissociável da infância, é uma revelação singular da constituição infantil e da memória. Ele é uma experiência criadora que favorece a descoberta do eu e dos outros, através de recriar e repensar os acontecimentos naturais e sociais. Não é apenas reprodução de vivências, mas um processo de apropriação, ressignificação e reelaboração da cultura pela criança. É uma forma de ação social que produz uma cultura infantil.

 

    A memória é um dos "agentes fornecedores" da cultura da infância, portanto, um elemento implicado na composição da cultura lúdica. O conceito de "culturas da infância" tem sido cunhado e estudado pela Sociologia da Infância como um elemento distintivo da categoria geracional (Corsaro, 1997; James, Jenks e Prout, 1998) e diz respeito à capacidade de as crianças construírem modos de significação do mundo e de ação intencional, que são distintos dos modos adultos de significação e ação.

 

    Logo a cultura lúdica não emerge isolada da cultura geral. Sem pretensões de exaurir o tema, que é abrangente para a antropologia, assumiremos cultura como os significados que os seres humanos dão às suas produções, compondo uma teia de sentidos. Nessa direção, verifica-se como a cultura se diversifica segundo inúmeros fatores societários: as culturas lúdicas não são idênticas, variando segundo os meios sociais, a idade e, muito particularmente, o gênero da criança. Da mesma forma que a cultura lúdica de uma criança varia em função da sua idade, os comportamentos masculino e feminino distinguem-se nas diferentes manifestações de jogo.

 

    Além disso, ao materializar o jogo por meio do brincar (Carneiro 2015), a criança não apenas expressa suas experiências, mas as reelabora, reconhecendo-se como sujeito pertencente a um grupo e contexto sociocultural. Isso nos permite inferir diferentes possibilidades do jogo, dentre elas uma experiência de cultura, por meio da qual valores, habilidades, conhecimentos e formas de participação social são constituídos e reinventados pela ação coletiva das crianças.

 

    Ainda é possível assegurar que a cultura lúdica, por meio do jogo, afirma a própria cultura infantil. Ela assume, "na sua complexidade e valor, uma dimensão de construção processual multidimensional nos seus aspectos estruturantes" (James, Jenks e Prout, 1998, p. 99). No interior da cultura lúdica, cruzam-se, como anota (Brougère, 1998c), o papel das experiências vividas, a aprendizagem paulatina e progressiva ao longo da infância, a agregação de elementos heterogêneos provenientes de fontes diversas, a interação grupal com toda a carga simbólica de aporte de novas e cada vez mais complexas competências, a interpretação e aplicação das regras e a importância da criatividade. Enfim, toda uma panóplia de saberes e fazeres que se assumem como contributos decisivos para a competência do brincante perante o brinquedo e a sua vida cotidiana.

 

    A cultura lúdica é resultado de um movimento interno e externo de construção da criança. É em meio à atividade que a criança reelabora cada nova experiência em função das anteriores.

 

    Toda a interação supõe efetivamente uma interpretação das significações dadas aos objetos dessa interação (indivíduos, ações, objetos materiais), e a criança agirá em função dos outros elementos da interação, para reagir também e produzir assim novas significações que vão ser interpretadas pelos outros [...] A cultura lúdica não está isolada da cultura geral. Essa influência é multiforme e começa com o ambiente, as condições materiais. As proibições dos pais, dos mestres, o espaço colocado à disposição na escola, na cidade, em casa, vão pesar sobre a experiência lúdica. (Brougère, 1998c, p.27-28).

 

    Há diferentes definições de cultura lúdica. Uma delas é de (Brougère, 1998b), cujos trabalhos fornecem importantes pistas para uma compreensão da teoria do jogo. Segundo o autor:

    [...] cultura lúdica, [é um] conjunto de regras e significações próprias do jogo que o jogador adquire e domina no contexto de seu jogo. Em vez de ver no jogo o lugar de desenvolvimento da cultura, é necessário ver nele simplesmente o lugar de emergência e de enriquecimento dessa cultura lúdica, essa mesma que torna o jogo possível e permite enriquecer progressivamente a atividade lúdica. (Brougère 1998c, p. 23).

 

    Já (Sarmento, 2002), embora não aborde a especificidade da cultura lúdica, expande sua compreensão ao utilizar a expressão “culturas da infância”, aplicada quando “[...] entende-se a capacidade das crianças em construírem de forma sistematizada modos de significação e de ação intencional, que são distintos dos modos adultos de significação e ação”. Elas são produzidas socialmente e “[...] alteradas pelo processo histórico de recomposição das condições sociais” (Sarmento, 2002, p. 3-4). O autor prossegue:

    […] as culturas da infância, sendo socialmente produzidas, constituem-se historicamente e são alteradas pelo processo histórico de recomposição das condições sociais em que vivem as crianças e que regem as possibilidades das interações das crianças, entre si e com os outros membros da sociedade. As culturas da infância transportam as marcas dos tempos, exprimem a sociedade nas suas contradições, nos seus estratos e na sua complexidade. (Sarmento, 2002, p. 4).

    Ambas as definições de cultura lúdica contribuem com significados que lhe são atrelados e que sintetizamos a seguir:

    [...] toda forma, expressão e manifestação do jogo (enquanto categoria maior). Isso em razão de que o jogo é um fenômeno abstrato que se manifesta por meio de inúmeras revelações que são construídas historicamente e sob diferentes óticas étnico-culturais das quais nós, humanos, nos apropriamos por meio do universo dos símbolos para, em seguida, as ressignificarmos e transmitirmos ao longo de nossa existência. (Carneiro, 2015, p. 88).

    A cultura lúdica é um patrimônio humano, um legado que influencia o modo de ser e a identidade dos indivíduos, as crianças em especial. Podemos assumi-la como uma herança cultural de conjuntos de conhecimentos de uma sociedade. Conjuntos acumulados ao longo da história e que conferem traços de singularidade em relação às outras sociedades.

 

    Deve se reconhecer também a importância de preservar e transmitir, de geração em geração, seu conteúdo, como um tesouro. Ainda que às vezes escondido, ele se acumulou ao longo do tempo. Ele é transferido por meio das transmissões intergeracionais.

 

Interfaces da transmissão da Cultura Lúdica

 

    No entendimento de Harris (1999), quando se fala em transmissão cultural, não apenas quanto à brincadeira, mas aos aspectos atitudinais e culturais mais amplos, sua dinâmica é mais efetiva entre parceiros de idades mais próximas do que entre adultos e crianças. Curiosamente, essa afirmação também foi observada na transmissão de hábitos alimentares entre macacos e chimpanzés (Matsuzawa, 2000).

 

    Dentro dessa teia ardilosa de competências lúdicas que é demoradamente tecida para que uma criança consiga dominar o mundo do jogo, há um processo que se complexifica à medida que a idade avança. Na natural superação de patamares lúdicos, começa-se com simples brincadeiras e chega-se a jogos de obediência a regras definidas e extensas, que demandam dos participantes um envolvimento intenso com os seus elementos constitutivos.

 

    Para Delalande (2001) e Pontes e Magalhães (2003), esse processo de transmissão assenta-se em quatro pilares, que, na sua conjugação cumulativa, potenciada por um processo regular e continuado de inter-relacionamento grupal, tem-se constituído como garantia da perenidade da cultura lúdica, sustentáculo incontornável das culturas da infância: o grupo de pares, a estrutura do jogo, o comportamento do mais experiente em relação ao aprendiz e o comportamento deste em contexto.

 

    A transmissão de qualquer elemento cultural não é passível de se consumar fora de um contexto social, feito de indivíduos em movimento centrípeto, comprometidos entre si e disponíveis para dar e receber. Assim, o grupo de pares, como um conjunto de sujeitos autorregulados, com identificação e organização muito peculiares, é determinante para a transmissão das brincadeiras das crianças. A ação desse grupo oportuniza experiências e interações sociais capazes de desencadear, manter e superar processos de aprendizagem característicos do universo lúdico. Processos estes que, em mais nenhuma outra situação, são passíveis de se consubstanciar com tanta propriedade.

 

    Para Brougère (1998a), tal experiência contempla um aspecto estrutural, porque todos os elementos utilizados no processo de aprendizagem do universo lúdico fazem com que a criança viva experiências do processo cultural e da interação simbólica da cultura humana: agir de modo interativo; aprender progressivamente; conhecer e acessar elementos heterogêneos e com diversidade cultural; interpretar, significar e criar individualmente e em grupo. No entanto, delinear as etapas ou as aprendizagens de cada jogo é um ato que não deve esconder a principal característica do jogo infantil, que é a relação da criança com a realidade que a rodeia.

 

    Nesta lógica de transmissão cultural, frente aos diferentes cenários produzidos pelo jogo para o universo infantil, encontram-se diferentes polos aglutinadores de interações que corporizam eventos sociais de natureza predominantemente lúdica, os quais, para além do envolvimento ativo e atuante de atores, também congregam observadores menos experientes e, portanto, ainda pouco habilidosos. Contudo, aprendizes em potencial são predispostos a entrar no jogo, nem que seja para o desempenho de tarefas menores, como apanhar bolas, por exemplo. Sua motivação é obter acesso, encontrar uma abertura para garantir "o seu lugar ao sol", assegurando o ciclo contínuo do brincar.

 

    O esforço na preservação e difusão da cultura lúdica não é uma preocupação estritamente da cultura nacional. A pesquisa e registro dos jogos como manifestações culturais têm encontrado espaço e atenção também na União Europeia. Por meio de projetos que envolvem diferentes universidades, empenham-se esforços para mapear a ocorrência do jogo em diferentes regiões. Um exemplo disso é o programa "Cultura 2000", desenvolvido nos anos 2005-2006 (Marins & Ribas, 2013).

 

    Corrobora-se, assim, o entendimento sobre a importância da preservação do patrimônio cultural, considerando-se a evolução da memória social, que é o legado de um povo, como constituinte de sua identidade nacional (UNESCO, 2007).

 

    A memória é, desde cedo, responsável pela construção da identidade da criança e, como papel simultâneo, ocupa o posto de guardiã dos saberes, tradições culturais e diferentes revelações do jogo infantil. Estes últimos são aprendidos e ensinados pelo tempo afora entre crianças de uma forma puramente empírica. Eles encontram na memória infantil, terreno fértil e seguro como em nenhum outro lugar (Kishimoto, 1993).

 

    Entretanto, assim como a memória social sofre desmantelamentos em certas ocasiões de transitoriedade grupal, as transformações em geral (arquitetônicas, simbólicas, entre outras) podem produzir perda, desapego e o esquecimento da memória coletiva, conforme observou (Halbwachs, 1990, p.101):

    Quando a memória de uma sequência de acontecimentos não tem mais por suporte um grupo, aquele mesmo em que esteve engajada ou que dela suportou as consequências, que lhe assistiu ou dela recebeu um relato vivo dos primeiros atores e espectadores, quando ela se dispersa por entre alguns espíritos individuais, perdidos em novas sociedades para as quais esses fatos não interessam mais porque lhe são decididamente exteriores, então o único meio de salvar tais lembranças é fixá-las por escrito em uma narrativa seguida, uma vez que as palavras e os pensamentos morrem, mas os escritos permanecem.

    Do mesmo modo, a cultura lúdica é afetada pelas modificações que perpassam suas diferentes formas e configurações. Uma dinâmica afeta o tecido que compõe as tramas lúdicas, ressignificando seus formatos. Ao olharmos para a história do jogo e seus múltiplos cenários, notamos o quanto o quadro contemporâneo se difere daquele engendrado em épocas passadas, o que, de algum modo, justifica nossa relativa desconfiança frente às suas novas configurações, especialmente os jogos eletrônico-digitais. A crescente popularização dessa modalidade trouxe consigo, de forma geral, dúvidas e inquietações (Medeiros & Severiano, 2008).

 

    A nova geração se distingue por ter crescido em contato com a tecnologia da informação, lidando com a simultaneidade das mudanças que acontecem hora a hora. Além dessa particularidade, típica daqueles que nasceram sob o signo da tecnologia, é preciso considerar a existência de alguns elementos menos alvissareiros. Dentre eles, o embotamento de determinadas dimensões humanas, principalmente na esfera da subjetividade. A geração atual parece viver imersa no imediatismo e na automaticidade. A esse estilo de vida dotado do poder do instantâneo, alia-se uma demanda constante de realizar tudo ao mesmo tempo (Medeiros & Severiano, 2008). Tais fenômenos demandam uma investigação mais aprofundada. Por ora, assumimos, como (Medeiros & Severiano, 2008), uma postura de cautela em relação à imersão indiscriminada dos jovens contemporâneos em jogos eletrônicos, concordando que:

    [...] para além de indivíduos cognitivamente capazes, ativos e velozes, para além da destreza e habilidade com as novas tecnologias, interessa, seja em mundos virtuais ou reais, a formação de seres subjetivamente éticos e comprometidos com o “Progresso humanitário” (Medeiros & Severiano, 2008, p. 128).

    Como pesquisadores e professores, desejamos que se encontrem caminhos (metodológicos e epistemológicos) para que, sem interromper o diálogo com as novas expressões de jogo (no caso, os eletrônico-digitais), preserve-se o legado de outras formas tradicionais da cultura lúdica.

 

    As diferentes materializações do jogo podem ser elementos reveladores da degeneração ou da emancipação da cultura em determinado momento histórico. Isso significa que tomamos os jogos como substância da sociedade, os quais, direta ou indiretamente, influem no destino das culturas, em especial naquela que denominamos cultura lúdica (Carneiro, 2017).

 

    A reformulação do espaço social – em função também da tecnologia e seguindo, pois, os mesmos mecanismos do processo produtivo – se encarrega de apagar os vestígios que encontrariam eco em nossa memória. Portanto, o “desenraizamento” do sujeito nada mais é do que a destruição das marcas e símbolos – materiais ou rituais – que constituem, com ele, o passado.

 

    Através das brincadeiras tradicionais, as crianças aprendiam. Quando misturadas às tintas, areia, ossos, palhas, madeira etc., jazia subjacente à brincadeira a constatação de que a todo processo de construção está ligada a ideia de desconstrução, de transformação, de mudança destrutiva.

 

    Como é possível verificar no estudo realizado por (Cabral, 1992), cujo objetivo foi analisar relatos sobre a experiência lúdica de pessoas que viveram a infância entre 1930 e 1980, a pesquisadora constatou uma certa diluição, ao longo do período, das brincadeiras livres, em função especialmente do desaparecimento de espaços adequados à sua prática (tais como quintais e terrenos vazios). Percebeu também a substituição de determinados brinquedos, que antes eram criados e confeccionados pelas próprias crianças, por brinquedos industrializados que representam, não raro, uma réplica perfeita, miniaturizada, de objetos do mundo adulto.

 

    O trabalho ainda destaca que os jogos eletrônicos parecem marcar, de forma inequívoca, o fim de um tempo em que se podia detectar, em cidades grandes e médias, uma cultura regional com estilo de vida local. Notavam-se, especialmente, a troca de experiências, os gestos significativos, o contato dos corpos nos momentos épicos da infância. O diagnóstico é de que “as experiências estão deixando de ser comunicáveis” e “o valor de certas afinidades singulares entre a alma, o olho e a mão” não mais transparece nas relações. O saber contido na tradição se desvanece: não há o que ser cambiado, ensinado (Benjamin, 1989, p.83).

 

Artefatos e conteúdos da Cultura Lúdica das décadas 1920 e 1930

 

    Conforme dissemos antes, as reflexões aqui discorridas estão subsidiadas por elementos de uma pesquisa mais ampla, cujo objetivo foi resgatar o conteúdo lúdico das décadas de 20 e 30 (Carneiro 2015). Contudo, à apresentação dos resultados da pesquisa supracitada não consta como objetivo desse ensaio, todavia, alguns de seus dados se amalgamam aos conteúdos e artefatos daquilo que temos intitulado como cultura lúdica, nesse sentido, os resultados aqui apresentados servem-nos como uma espécie de emolduramento contextual para conjeturas que procuramos estabelecer.

 

    Feitas tais ponderações e já adentrando a especificidade do referido tópico, ao "passearmos" pelos conteúdos da cultura lúdica descritos por nossos entrevistados, nos apercebemos da riqueza formativa que tais experiências lhes proporcionaram. Esse dado ganha importância singular quando o examinamos à luz dos escritos de (Brougère, 1998c), que mencionam o papel das experiências vividas e da aprendizagem paulatina e progressiva ao longo da infância. Nela ocorre a agregação de elementos heterogêneos provenientes de fontes diversas, como a interação grupal com toda a carga simbólica de aporte de novas e cada vez mais complexas competências. São exemplos disso: a interpretação e aplicação das regras e a importância da criatividade, que se conjugam em saberes e fazeres decisivos para a competência do brincante, perante o brinquedo e a sua vida cotidiana.

 

    Essa conjectura nos possibilitou afirmar, com relativa segurança, que a cultura lúdica infantil é construída historicamente e se constitui como um legado cultural, um patrimônio da humanidade. E mais: empreendimentos que visem a preservá-la são importantíssimos, uma vez que as características da infância contemporânea se distanciam daquelas observadas em outros tempos. Fica patente, então, a necessidade de um diálogo entre uma e outra, como bem observa (Friedmann 1996, s.p.): "[...] as brincadeiras são uma forma de descobrir o novo no antigo".

 

    A título de ilustração da variedade e intensidade de conteúdos lúdicos que formavam a cultura lúdica do período supracitado, compilamos um gráfico que permite que se visualize melhor o que narraram os entrevistados.

 

Gráfico 1. As diferentes manifestações da cultura lúdica

Fonte: Carneiro (2015)

 

    Pode-se notar que as atividades lúdicas que mais foram mencionadas dependiam exclusivamente dos recursos disponíveis na natureza, bem como revelam uma infância rural própria do momento histórico que o país atravessava. Observa-se, ainda, pouca ou nenhuma aquisição de materiais para sua concretização, um quadro reconhecidamente diferente daquele da configuração da infância nos dias atuais, em que as brincadeiras parecem estar inclinadas ou vinculadas à dependência do consumo.

 

    A criança é aquela que reconstrói e ressignifica, de um modo compreensível, os brinquedos no ato de brincar. Brincando, a criança renova o antigo, subverte a lógica do adulto e experimenta algo novo. Nesse sentido, “[...] uma vez extraviada, quebrada e consertada, mesmo a boneca mais principesca transforma-se numa eficiente camarada na comuna lúdica das crianças” (Benjamin, 1984, p. 87).

 

    Ainda no intento de "recuperar" os fragmentos desse tesouro perdido, numa espécie de arqueologia dessa cultura lúdica, ou, por assim dizer, do arcabouço do lúdico das décadas de 20 e 30, procurou-se conhecer os brinquedos que estavam presentes na infância dos entrevistados.

 

    A maioria dos brinquedos era produto de confecção própria. Os entrevistados usavam a criatividade e as soluções da natureza disponíveis para construírem as brincadeiras ou os objetos que dessem suporte a elas. Assim, os brinquedos estavam intrinsecamente ligados às condições materiais e geográficas que permearam a infância do período, dada a sua relação de dependência com os recursos naturais. Também se vinculam à forma e representação da infância para ancorar tais confecções ou justificar alguma aquisição. É o que afirma (Brougère 1997, p. 52-53): "A cultura lúdica está imersa na cultura geral à qual a criança pertence. Ela retira elementos do repertório de imagens que representa a sociedade no seu conjunto; é preciso que se pense na importância da imitação na brincadeira."

 

    Essa dialética entre cultura lúdica e cultura geral é tão presente que algumas particularidades da cultura lúdica infantil acabam se materializando no cotidiano efêmero. A aquisição de brinquedos industrializados aparece nesse rol como uma exceção ao artesanato dessas crianças das décadas de 20 e 30. Nessa constatação reside uma significativa diferença entre os elementos da cultura lúdica daquele período e os da atualidade.

 

    Numa perspectiva elucidativa, construímos um gráfico que resume a variedade de brinquedos (componentes lúdicos) que compunham e davam suporte à cultura lúdica do período em estudo.

 

Gráfico 2. Diversidade de brinquedos

Fonte: Carneiro (2015)

 

    Em nosso entendimento, a possibilidade da construção, ou melhor, da confecção de um brinquedo, é repleta de liberdade criadora. E a criatividade cumpre uma etapa, um passo importante no ciclo do brincar para a formação e subjetivação da criança (Carneiro, 2017).

 

    Em História cultural do brinquedo e em Velhos Brinquedos: sobre a exposição de brinquedos no Markische Museum, Benjamin reconhece o declínio da simplicidade dos brinquedos, assim como se preocupa com a artificialização e fragmentação de seu uso, que associa ao processo de industrialização do lúdico e da infância. Sob tal influência, a criança fica, de certa forma, estagnada quanto ao imaginário e ao processo de criação próprios do brincar, que, preservados, poderiam mantê-la a salvo do austero mundo adulto.

 

    Em outras palavras, os brinquedos refletem a transformação e as peculiaridades culturais e históricas da infância contemporânea nas suas íntimas vinculações com o brincar. (Benjamin 1984 e 2009) se refere ao processo de mercantilização do brinquedo e da criança, que, em seu modo crítico de observar, pode ser percebido tanto nos tipos de materiais (da madeira ao plástico, por exemplo) quanto na forma de produção e formato dos brinquedos, que impõem novas configurações em termos de relação entre estes e as crianças, uma relação por vezes doutrinada e condicionada pelos adultos que produzem os brinquedos.

 

    Nesses produtos residuais, elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas. Neles, estão menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer entre os mais diferentes materiais, através daquilo que criam em suas brincadeiras, uma relação nova e incoerente. Com isso, as crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande. (Benjamin, 2009, p. 104).

 

    Cabe destacar que os brinquedos e materiais utilizados pelas crianças em suas brincadeiras influenciam, decisivamente, a maneira como interagem e como brincam entre si. (Rubin e Howe, 1985), por exemplo, constataram que alguns materiais, como argila, areia e água, propiciavam brincadeiras não sociais, do tipo solitárias e paralelas, enquanto bonecas, carrinhos e jogos de chá facilitavam o uso do faz de conta e da imaginação.

 

Nossa impressão: por uma memória do jogo

 

    Observando os artefatos e componentes da cultura lúdica das décadas de 1920 e 1930, conteúdos que subsidiaram este ensaio, intuímos a existência de um legado cultural advindo das particularidades do jogo e da cultura lúdica. Esse repertório cultural é dinâmico e mutável por ser transmitido e praticado por diversos grupos e civilizações. Ele sofre, em razão disso, inúmeras mudanças de contexto e forma, que são adaptadas às necessidades de cada grupo e sociedade, sob a influência e característica de seu tempo e contexto (Carneiro, 2017). Acepção também alvitrada por (Friedmann, 1996, p.42), ao conceber que "O jogo tradicional infantil é a produção espiritual do povo, acumulada através de um longo período de tempo. Esses jogos mudam no processo do esforço criativo coletivo e anônimo". Compartilhamos do mesmo entendimento sobre as transformações e plasticidade, mais ou menos acentuadas, existentes nas diferentes expressões da cultura lúdica.

 

    Percebemos, ainda, que muitas variáveis exercem influências sobre o ambiente do jogo (zona lúdica1), sendo elas: os espaços físico e temporal, a trajetória do indivíduo com suas experiências pessoais e familiares, seus recursos, suas motivações, as pressões e condições sociais que o cercam, as atitudes dos pais, entre outros. Todos estes fatores podem ser determinantes para algumas das suas diferentes manifestações.

 

    Deste modo, as abruptas transformações arquitetônicas do espaço físico, bem como a escassez de objetos disponíveis (isto é, dos recursos naturais ou matérias-primas), podem ser importantes indicadores que revelam a considerável diminuição de determinadas expressões do jogo, em especial o jogo/folclore (tradicional), que necessita de elementos, contextos e recursos para ancorar sua concretude, como dito anteriormente. O que estamos enfatizando é que a despeito das ressignificações que, de modo geral, sofre a cultura lúdica, determinados conteúdos e manifestações do jogo que a nutrem são determinantes para alguns tipos de artefatos e componentes do arcabouço lúdico, o que enfatiza a necessidade de salvaguardá-los para uma existência perene.

 

    Segundo Cascudo (1984, 2001a, e 2001b), podemos afirmar que grande parte das práticas lúdicas da infância brasileira (adivinhas, parlendas, cantigas de roda, histórias de príncipes, rainhas, assombrações, bruxas e brinquedos, como a pipa, o pião, o bodoque, os jogos de pedrinhas, a amarelinha, entre outros) são legados da cultura portuguesa e fazem parte da cultura europeia. Não obstante, estão gradativamente em declínio, devido às severas transformações na configuração e organização da infância contemporânea, com o que concorda (Amado, 2002). Tais mudanças repercutem substancialmente no conteúdo e na constituição das diferentes expressões lúdicas.

 

    Considerando esse cenário de diminuição de algumas expressões da cultura lúdica, reafirmamos o que já foi dito anteriormente sobre a necessidade de salvaguardar essa memória, pois é a alternativa que nos resta para a preservação desse patrimônio cultural da humanidade.

 

    Como a memória lúdica é diretamente afetada por diferentes fatores, é correto compreender que a transitoriedade grupal e as transformações gerais (arquitetônicas, simbólicas, entre outras) podem produzir perda, desapego e esquecimento da memória coletiva. Quando indivíduos deixam de conviver no seu antigo grupo e meio social para participar de outros, tais mudanças produzem desdobramentos devido à dissolução do grupo, que antes fazia o papel do guardião desse tesouro (Cardoso, 2004).

 

    A lembrança, como já dissemos anteriormente, sendo conveniente reiterar, para ser trazida ao presente, necessita de “ancoradouros” no tempo e espaço: a infância e a rua, o trabalho e a fábrica, a casa velha ou nova, os vizinhos, determinada imagem (fotografia), o sapato velho, um poema, aquela vez...

 

    Este texto é, também, um esforço intelectivo na direção de "recuperar" os fragmentos de um tesouro perdido. Semelhantemente ao exercício que realizam os arqueólogos, procuramos “escavar” as narrativas de nossos Guardiões da Memória2 em busca de sua cultura lúdica. Essa metáfora é significativa para compreender a tarefa a que nos propusemos: reconstituir, a partir dos fragmentos encontrados, os utensílios antigos de uma cultura lúdica de outros tempos, tendo o mesmo cuidado reconstitutivo de um arqueólogo no manejo dos "cacos" cerâmicos em um sítio arqueológico.

 

    No entanto, a reconstrução, apenas, não é suficiente; é preciso ir além: compreender qual o significado que o objeto tinha para o povo a que pertenceu e que função ocupava na vida daquelas pessoas. É preciso penetrar nas noções que orientavam sua existência, ouvir o que já não é mais audível. E só então será possível conhecer as dimensões e sentidos que caracterizavam tal utensílio, bem como sua utilidade, se tinha função sagrada, ou se simplesmente atendia a questões de aparência ou enfeite (Bosi, 1987).

 

    Ao buscar os resíduos da ludicidade de nossos Guardiões da Memória, pretendemos contribuir para que esse conteúdo possa resistir ao inexorável poder do tempo e, dessa forma, ganhar perenidade e possibilitar um intercâmbio geracional por meio da cultura lúdica.

 

Notas

  1. O conceito de zona lúdica decorre da obra “O brincar e a realidade”, em que (Winnicott, 1975) situa a ocorrência dessa experiência existencial "no excitante entrelaçamento da subjetividade e da observação objetiva, e numa área intermediária entre a realidade interna do indivíduo e a realidade compartilhada do mundo externo aos indivíduos” (Winnicott, 1975: 93).

  2. A expressão Guardiões da Memória é assinalada por Carneiro (2015), ao fazer referência aos octogenários e nonagenários que entrevistou, com o objetivo de conhecer a cultura lúdica da infância rememorada por eles vivenciada.

 

Referências

 

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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 22, Núm. 238, Mar. (2018)