fer_edfis@hotmail.com

valdete.guimaraes@gmail.com

josefirminocorreajr@gmail.com

germanojl@yahoo.com.br

sara.matthiesen@unesp.br

*Graduado em Educação Física – EEFSC – São Carlos, SP

Mestre em Ciências da Motricidade – UNESP – Rio Claro, SP

Professor de Educação Básica – Secretaria da Educação, SP

**Graduada em Educação Física - Universidade Cruzeiro do Sul, SP

Mestra em Desenvolvimento Humano e Tecnologias - UNESP - Rio Claro, SP

Professora de Educação Física - Secretaria da Educação do Estado de São Paulo

***Graduado em Educação Física – EEFSC – São Carlos, SP

Mestre em Educação – UNESP – Rio Claro, SP

Professor aposentado de Educação Básica – Secretaria da Educação, SP

+Graduado em Educação Física – Faculdade de Educação Física de Santo André, SP

Mestre em Educação Física – ISEF "Manuel Fajardo", Havana, Cuba

Professor aposentado de Educação Básica – Secretaria da Educação, SP

++Graduada em Educação Física e Técnico Desportivo

Doutora em Educação – UNESP – Rio Claro, SP

Docente aposentada do Departamento de Educação Física

UNESP – Rio Claro, SP

(Brasil)

Recepção: 20/09/2018 - Aceitação: 01/02/2022

1ª Revisão: 02/01/2022 - 2ª Revisão: 21/01/2022

Documento acessível. Lei N° 26.653. WCAG 2.0

Citação sugerida: Freitas, F.P.R. de, Guimarães, V.D., Corrêa Júnior, J.F., Germano, J.L., e Matthiesen, S.Q. (2022). Entrevistas com o professor Ricieri Dezem: relatos de dedicação à educação física e ao esporte. Lecturas: Educación Física y Deportes, 27(289), 190-204. https://doi.org/10.46642/efd.v27i289.870

 

Resumo

    Há mais de cinco décadas o profissional de educação física Ricieri Dezem contribui para a educação e para o esporte brasileiro. Ao longo de sua carreira atuou como professor escolar e universitário, secretário de esportes, organizador de eventos esportivos, árbitro de atletismo, entre outras atividades. Com base em duas entrevistas semiestruturadas, gravadas nos anos de 2013 e 2022, essa pesquisa qualitativa, utilizou o método da história oral para registrar a trajetória desse profissional. Teve como objetivo buscar em sua experiência de vida, referências que sirvam às novas gerações. Os resultados apresentam situações, desafios e saberes importantes para a atuação profissional na área da Educação Física.

    Unitermos: Ricieri Dezem. História oral. Educação Física. Profissão.

 

Abstract

    For more than five decades the physical education professional Ricieri Dezen has contributed to Brazilian education and sport. Throughout his career he has served as a school and university teacher, sports secretary, sports event organizer, athletics referee and other activities. Based on two semi-structured interviews, recorded in 2013 and 2022, this qualitative research used the oral history method to record the trajectory of this professional. Its objective was to seek, in his experience, references that serve to the new generations. The results present situations, challenges and important knowledge for working in the field of Physical Education.

    Keywords: Ricieri Dezem. Oral history. Physical Education. Profession.

 

Resumen

    Durante más de cinco décadas, el profesional de educación física Ricieri Dezem ha contribuido a la educación y el deporte brasileños. A lo largo de su carrera se ha desempeñado como docente escolar y universitario, secretario deportivo, organizador de eventos deportivos, árbitro de atletismo, entre otras actividades. A partir de dos entrevistas semiestructuradas, grabadas en 2013 y 2022, esta investigación cualitativa utilizó el método de la historia oral para registrar la trayectoria de este profesional. Su objetivo fue buscar, en su experiencia de vida, referentes que sirvan a las nuevas generaciones. Los resultados presentan situaciones, desafíos y conocimientos importantes para el desempeño profesional en el área de Educación Física.

    Palabras clave: Ricieri Dezem. Historia oral. Educación Física. Profesión.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 27, Núm. 289, Jun. (2022)

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Introdução 

 

    Há pouco mais de vinte anos, durante uma competição escolar de atletismo, o seguinte aviso foi ouvido de um dos atletas: “Professor, avise os meninos para não invadirem a pista, senão o Ricieri dá a maior bronca!”. Ainda sem conhecer o personagem retratado nessa pesquisa, esse aluno já apresentava uma de suas características marcantes: a extrema disciplina na organização e condução das competições esportivas e, as inevitáveis “chamadas” para aqueles que atrapalhassem os trabalhos. Com o tempo observou-se que, a despeito do rigor, professor Ricieri Dezem atuava com sensibilidade, ao classificar, por exemplo, um atleta ou equipe que houvesse sido injustiçado. Seguia assim uma de suas máximas: “Na dúvida, um atleta nunca deve ser prejudicado”.

 

Fonte: Acervo pessoal de Ricieri Dezem

 

    Nos anos que se seguiram a esse encontro, houve varias reuniões com o professor Ricieri por diversas ocasiões, como, em reuniões na Delegacia Regional de Esportes e Lazer de Campinas, nos alojamentos de atletas que ficavam sob sua responsabilidade, nas competições de atletismo em que era chefe de arbitragem, em eventos científicos e, nos cursos de arbitragem que ministrava. Observando suas atitudes e competência profissional, era o momento de registrar e divulgar seu trabalho, uma vez que estava prestes a se aposentar.

 

    Especialmente no campo esportivo, onde a maior parte da atenção está voltada para os atletas, não é comum que árbitros e organizadores sejam objeto de estudos. Sem esses profissionais, no entanto, um evento esportivo não acontece. Tal situação motivou essa pesquisa, que registra a longeva, diversificada e produtiva carreira do profissional de educação física Ricieri Dezem. Para tanto, seguindo os pressupostos metodológicos da história oral, foram tomadas duas entrevistas, sendo a primeira no ano de 2013 e, a segunda, em 2022. Certamente que a experiência do professor Ricieri servirá de referência e estímulo a outros profissionais.

 

Métodos 

 

    Essa pesquisa, de caráter qualitativo, se utiliza do método da história oral, que tem como características a produção de entrevistas, nas quais indivíduo ou grupos relatam, subjetivamente, suas experiências e percepções. Essas entrevistas, registradas por meio do uso de equipamentos eletrônicos, são convertidas em documentos escritos e, servem como acervo para consultas. Ainda que tratem de memórias, é importante que documentos produzidos pela história oral respondam questões do presente, em um processo histórico que não está acabado, se tornando, assim, uma “história viva” (Meihy, 2005). Para essa pesquisa, foram realizadas duas entrevistas com o profissional de educação física Ricieri Dezem. A primeira, em 2013, presencialmente, utilizou gravação de áudio. A segunda, em 2022, à distância, utilizou o recurso telefônico e, foi complementada como mensagens de e-mail, para o envio de imagens. Essas entrevistas retratam dois momentos na vida do entrevistado: pouco antes de completar 70 anos, quando se aposentou compulsoriamente do serviço público e, pouco antes de completar 79 anos, já aposentado, mas, ainda muito ativo. Em alguns trechos, as memórias dos pesquisadores se cruzam com os relatos do entrevistado, pois, envolvem passagens comuns, situação prevista nessa metodologia, que considera que uma entrevista é “[...] uma troca entre dois sujeitos: literalmente, uma visão mútua. Uma parte não pode realmente ver a outra, a menos que a outra possa vê-lo ou vê-la em troca (Portelli, 1997, p. 9). A elaboração do roteiro de perguntas, da mesma forma, contou com o conhecimento prévio do entrevistado pelos autores, que tem projetos em comum nos estudos sobre o atletismo, a história dos esportes, a educação física escolar e a formação profissional. No corpo das entrevistas, as iniciais FPRF representam o primeiro autor e, RD, o entrevistado.

 

Resultados 

 

    Primeira entrevista cedida pelo professor Ricieri Dezem, no ano de 2013, nas dependências da Delegacia Regional de Esportes de Campinas:

 

    FPRF (Fernando Paulo Rosa de Freitas) - Professor Ricieri, me lembro de tê-lo conhecido em uma competição escolar no ano de 2000. Mas, gostaria de iniciar a entrevista perguntando sobre sua família, suas origens e, se eram daqui de Campinas.

 

    RD (Ricieri Dezem) - Não, eu sou de Piracicaba. Nasci no dia 07 de março de 1943 e, morei em Piracicaba até os 15 anos. Depois, me mudei para Americana. De Americana eu vim para Campinas e, me formei primeiro na área da farmácia.

 

    FPRF - Trabalhou como Farmacêutico em Campinas?

 

    RD - Não, eu trabalhei como farmacêutico em Americana. Depois, quando abriu o curso de educação física aqui em Campinas, em 1968, eu resolvi fazer, estimulado por algumas pessoas. Comecei aqui no Mogiano onde estou hoje (atualmente, sede da DREL, Delegacia Regional de Esportes e Lazer de Campinas), em 1968, 1969... Foi aqui. Depois em 1970, em razão da reforma Universitária, a PUCC (Pontifícia Universidade Católica de Campinas) encampou o Curso de Educação Física da antiga Sociedade de Educação do Mogiana. Aí, o nosso “terceirão” foi na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da PUCC, onde me formei em 1970. De 1970 pra cá eu trabalhei como professor de educação física. Fiquei na Faculdade de Educação Física da PUCC trabalhando com o atletismo, inicialmente como instrutor, depois como assistente e, depois, como titular de disciplina, até julho de 2011, quando saí da PUCC. Trabalhei lá 41 anos, nas disciplinas de atletismo e treinamento em atletismo. Fiz minha parte como professor de Ensino Superior. Formei muitos professores, alguns excelentes, outros não tão interessados, mas, enfim, aqueles que por mim passaram, creio que aprenderam um pouco da disciplina e, também, um pouco do ser humano. Construí minha vida na PUCC. Minha família ficou na PUCC. Todos são formados lá por meio do meu trabalho. Nisso eu agradeço, porque me deram condição total de trabalho, para a formação dos meus filhos e, obviamente, para a minha subsistência. Mas, logo que me formei em educação física, eu também peregrinei. Andei muito por aí. Em 1973, 1974, fui dar aula em Itapetininga, numa faculdade de educação física que existe até hoje. Ao mesmo tempo, era técnico de voleibol em Piracicaba. Viajava de Campinas para Itapetininga e, depois, passava em Piracicaba pra dar treino. Foi uma luta. Foi assim. A gente vai devagarinho, construindo a atividade profissional. Depois eu me especializei na área do voleibol, pois, já era atleta de voleibol. Depois passei para o atletismo. Deixei de ser voleibolista. Talvez, se tivesse ficado na área do voleibol, minha carreira tivesse sido diferente. Mas, não me arrependo de ter ficado no atletismo. Em 1974, eu assumi o cargo de Secretário de Esportes em Americana, com o prefeito da época, Ralph Biasi. Fiquei em Americana até 1977. Nessa gestão, construí a praça esportiva de Americana, que subsiste até hoje.

 

    FPRF - Incluindo a pista de atletismo?

 

    RD - Incluindo a pista. Fizemos a pista de atletismo. Fizemos Jogos Regionais lá e, depois, os Jogos Abertos. Na época de sua construção choveu muito. Tivemos que refazer a pista para a competição. A minha carreira tem sido isso, fazer competição, construir pista, refazer pista, organizar arbitragem... Também fui técnico de voleibol em Americana. Fui campeão dos Jogos Abertos. Ganhei com a minha equipe de voleibol de Americana os Jogos Abertos em Prudente, no início dos anos 1980. Depois, fomos vice-campeões em Ribeirão Preto e, depois, saí do voleibol. Aí me dediquei só ao atletismo, dando aula e trabalhando em organização de competição. Também era funcionário da Educação. Fiz uma opção de sair da Secretaria de Educação e vim para a Secretaria de Esporte e Turismo na época e, estou aqui até hoje. Estou com tempo de aposentar, mais ou menos obrigatoriamente, porque faço setenta anos. E nesse período eu fiz tudo o que era possível para que as competições da Delegacia de Esportes e Lazer de Campinas, atual Secretaria, pudessem ser feitas de acordo com a maior lisura possível, na regra. Fiz aí Olimpíadas Escolares, Olimpíada Colegial, Jogos Escolares... É trabalhoso demais, porque nós somos poucos e, fazemos muito. Mas enfim, também não me arrependo disso, porque se estamos aqui é para trabalhar. O importante é que fiz o nome como professor de faculdade, como técnico desportivo, trabalhando na delegacia, como organizador de competições. Eu fiz um nome e, penso que quem trabalha comigo procura zelar. Tenho os meus altos e baixos, mas sempre que faço um evento, sai dentro do horário, das normas previstas e das regras. Trabalhei durante vinte anos como diretor de arbitragem da Federação Paulista de Atletismo. Fui também diretor de arbitragem da Confederação. Sou bastante enérgico, sou rígido e respeito a disciplina. Enfim, tenho uma carreira pública na Secretaria, uma carreira particular como professor e, uma vida saudável junto com a minha família. Sou pai de quatro filhos, avô de quatro netos. Tenho dois solteiros, um que se casa amanhã, que deixa minha casa para ir cuidar da vida. É uma batalha cuidar dos filhos. Até se iniciarem nas carreiras os pais precisam batalhar, mas, todos estão encaminhados. Então, o ano que vem eu deixo a Secretaria de Esportes, mas, não o esporte como um todo, porque, espero ser convidado para eventos. Não pretendo interromper essa atividade. Enfim, eu trabalhei na educação física, no esporte, especialmente no voleibol e no atletismo. Mais no atletismo. Se pudesse repetir, faria tudo outra vez. Acho importante que os professores novos, que estão iniciando a carreira, procurem conhecer a experiência dos mais antigos. É básico. A aprendizagem acontece através da prática, da experiência e, da convivência. Ninguém consegue subir na profissão, seja qual for, se não se qualificar com os mais experientes. Os jovens de hoje são mais afoitos, mas acabarão maduros e, terão que buscar essa informação, essa referência. Eu formei muitos professores, muitos profissionais e, a grande maioria, me respeita e sabe como trabalho. Houve nesse período muitas mudanças. Nós tínhamos uma educação física esportivista. Hoje, nós temos uma educação física construtivista, diferente, onde o professor tem que se adaptar ao aluno, ou, então, ele não dá aula. Mas se o professor for um professor com “P” maiúsculo, ele consegue ensinar. Enfim, tudo mudou. Houve uma melhora, acredito, apesar das dificuldades. Hoje o campo esportivo e da educação física está melhor do que era antes e, eu agradeço muito as chances que eu tive optando por essa carreira.

 

    FPRF – Então, o professor também teve experiência na área escolar?

 

    RD - Sim. Trabalhei como professor. Iniciei minha carreira em 1976, dando aula em São Paulo. Fiquei lá durante 10 anos, depois consegui me transferir para Campinas. Quando eu vim para Campinas, iniciei minha carreira numa escola de periferia, depois fui convidado pelo professor Pedro Stuck para a Secretaria de Esportes Lazer e Turismo. Pedro Stuck, um grande professor. Aceitei o convite dele, e vim comissionado para o Esporte e Turismo. Com o tempo, consegui minha transferência. Desisti da Educação e passei para o Esporte e Turismo.

 

    FPRF - Professor, em relação aos alunos dos cursos de educação física, há diferenças entre os antigos e os de hoje?

 

    RD - Olha, quando eu comecei, nós tínhamos alunos mais maduros, que procuravam na formação profissional uma carreira. Ao longo do tempo esses alunos foram chegando mais novos, sem experiências. Hoje eles entram numa faculdade com dezessete anos e não sabem nada, nem sabem porque estão lá. Então, essa maturidade demora. Acredito que a experiência profissional e a maturidade dos alunos foi piorando, trazendo com isso uma formação pior para uma maioria e, melhor para aqueles que realmente gostam da área. Então, nesses quarenta anos a educação física mudou muito, mas, em minha opinião, para melhor. Hoje a formação é mais completa, mas, depende da faculdade. A PUCC, por exemplo, tem uma formação excelente. Ele forma um bom profissional nas áreas da pedagogia, do treinamento e da saúde. Algumas faculdades são só entregadoras de diplomas. Mas, eu respondo pela minha universidade, onde me formei, trabalhei e construí. Então, eu acho que essa educação física de hoje é melhor do que aquela antiga, mas, o aluno não é melhor. Alunos muito novos, demoram muito para crescer e, nessa demora, perdem oportunidades.

 

    FPRF - Professor, e o aluno de escola, que o senhor recebe nas competições, notou alguma mudança com o tempo?

 

    RD - Olha professor, eu acho que para pior. Mas, depende do professor. O aluno é reflexo do seu professor. Nós temos talentos que se perdem nas escolas porque o professor não quer trabalhar aos sábados. Quando se fala em competição escolar no Estado, tem que fazer no meio de semana, porque o professor não ganha para dar aula aos sábados. Aí está uma dificuldade. Mas, aquele professor que gosta do que ele faz, seja em qualquer esporte, ele tem aluno, ele tem talento para trabalhar. Talento sempre existiu, sempre existirá, isso não irá mudar. Mas, você tem exceções. Tem professor que gosta do que faz e, tem aqueles que simplesmente participam, ou nem isso. O potencial está presente aí. Nós temos na Olimpíada Escolar excelentes alunos que podem ser excelentes atletas. Depende do professor.

 

    FPRF - Quando falou que “depende do professor”, me veio à memória o dia que o conheci. Um dos meus alunos, que já o conhecia, me advertiu para que tomasse cuidado com a disciplina, porque o professor não aceitava bagunça. Então, quem o conhece superficialmente, pode achar que se trata de uma pessoa rigorosa...

 

    RD - Eu sou rigoroso. Eu sou chato. Porque eu quero que a coisa saia organizada. Não é festa, é competição.

 

    FPRF - Outra lembrança que tenho do professor é de um curso de arbitragem, onde afirmou que o atleta, na dúvida, não pode ser prejudicado...

 

    RD- De forma alguma.

 

    FPRF - Primeiro, consultar a regra e, persistindo a dúvida, o atleta não pode ser prejudicado. Nisso, já tive oportunidade de presenciar que o professor cumpre o que orienta. Na carreira de árbitro, lembra-se de momentos marcantes, das mudanças nas regras, de acidentes?

 

    RD - As regras mudam constantemente, procurando adaptar-se à evolução do próprio esporte. Eu faço arbitragem de atletismo desde 1964 e, de lá pra cá, as coisas mudaram muito. Mas, infelizmente, o atletismo como um todo, padece de antigas dificuldades. Desorganização, desrespeito, falta de conhecimento por parte de atletas e dirigentes... Outras pessoas querem levar vantagem descumprindo regras. Enfim, ainda que muitas coisas tenham evoluído, muitos dos problemas ainda são os mesmos. Veja você... eu tenho organizado as últimas competições de atletismo dos Jogos Abertos do Interior. Os municípios sede não apresentam as condições adequadas. Fizemos em Piracicaba há alguns anos, fizemos em Praia Grande e em Mogi das Cruzes. Mogi das Cruzes não tem pista. Então, tivemos que trabalhar em São Paulo. Aí a competição precisou começar ao meio dia para terminar às oito da noite. Todo mundo sofre. E isso é questão de organização, de dirigente. Em termos de acidentes em competições, o único mais grave que eu presenciei foi no Troféu Brasil, em São Paulo, há alguns anos. Uma das árbitras, por desatenção, levou um dardo no pé, caso que foi muito noticiado na época (https://www.uol.com.br/esporte/atletismo/ultimas-noticias/2016/11/22/arbitra-de-atletismo-viu-dardo-atravessar-pe-em-2006-hoje-tem-vida-normal.htm, recuperado em 20, maio, 2022). Fora isso, muito difícil de acontecer acidentes. A árbitra, poderia ter morrido, mas, deu sorte. Não vi nada de mais grave em eventos, porque das pessoas eu consigo cuidar. Uma das situações que eu preservo quando faço competição é a disciplina do atleta e do árbitro para evitar acidentes. Isso faz parte da organização.

 

    FPRF - Professor, o senhor também já escreveu um livro sobre atletismo, não foi?

 

    RD – Foi. Com o Nelson Barros. Fizemos em 1987, se não me engano. Batalhamos. Vendi um carro para poder imprimir, mas, não vale a pena escrever no Brasil. Procuramos fazer um livro didático. Foi bem aceito. Eu quero ver se agora, me aposentando, se eu posso rever, falar com ele para nós refazermos esse livro aí. Mas, não vale a pena.

 

    FPRF - Professor, quando o conheci, tive a impressão de que devia ter sido atleta...

 

    RD - Eu fui atleta. Joguei voleibol até os trinta e seis anos. E fiz oito provas do atletismo. Fiz 110 com barreiras, fiz dardo... lancei sessenta e dois metros no dardo. Fiz salto em altura, fiz salto com vara, fiz triplo, distância e, me saí bem. Pra época foi bom. Competi um pouquinho, mas, depois, não dei sequência.

 

    FPRF - E o esporte já levou o professor a diversos lugares, não?

 

    RD - Já viajei um pouquinho... Conheci o Brasil inteiro. Conheci a Europa.

 

    FPRF - Como atleta ou como técnico?

 

    RD - Como técnico e coordenador técnico do atletismo.

 

    FPRF - Professor, o senhor disse que já formou muitos profissionais. Pode citar alguns?

 

    RD - Ah, foram tantos...

 

    FPRF - O senhor me disse que foi professor do Tite... (No ano de 2011, no alojamento dos atletas que participavam das Olimpíadas Escolares, em Botucatu, enquanto assistíamos a um jogo do S.C. Corinthians pela TV, professor Ricieri nos contou que Tite, atual técnico da seleção brasileira de futebol e, técnico daquele clube na época, havia sido seu aluno).

 

    RD - O Tite foi meu aluno, o Zenon do futebol, o Valdir que foi goleiro do São Paulo (Valdir Peres), o Tuta da Ponte Preta... Uma série de atletas e preparadores físicos que estão na ativa, mas, se eu for citar nomes, talvez seja injusto. Muitos bons alunos que estão no futebol, na área da educação física, que são personal trainers, que são professores. Bons alunos.

 

    FPRF - E sobre os amigos professor, poderia falar das boas lembranças?

 

    RD - São tantas. Eu não quero citar nomes, porque são muitos. O meu melhor amigo é meu ex-professor Nelson Barros. Outros são de convivência de atividades, alguns frequentam minha casa, mas, são tantos, que se a gente citar acaba se perdendo e alguns ficam esquecidos.

 

    FPRF - O Prof. Nelson Barros então...

 

    RD - É meu compadre. Foi quem escreveu o livro comigo e que me trouxe para a educação física. Ele foi técnico de salto com vara no Esporte Clube Pinheiros e formou alguns atletas. O Elson (Miranda) mesmo, o técnico da Fabiana (Murer) foi atleta dele. Então, um pouco do que o Elson aprendeu, aprendeu com o Nelson. Obviamente que o Nelson está com oitenta e dois anos hoje (2013) e deixou de dar aulas. Trabalhou como técnico porque foi opção de vida. Mas, foi um excelente profissional. A mulher dele, a Neila, que é minha comadre, também trabalhou na PUCC, foi uma excelente profissional de educação física. Mas, são tantos os amigos e colegas que permitiram que eu pudesse ter essa vida que eu tive.

 

    FPRF - Professor, o que falta para melhorar o esporte em nosso estado e em nosso país?

 

    RD - Falta estrutura física. Falta dinheiro. Não faltam bons profissionais. Basicamente, estrutura física e dinheiro.

 

    FPRF - Especialmente para o atletismo?

 

    RD - Para tudo. O atletismo padece porque é visto como esporte de pobre, não é? É fácil de fazer, mas, para o professor que inicia, não tem onde trabalhar e, não ganha para isso. Falta a estrutura física, que é o local específico, o material e, falta dinheiro. Você quer treinar alguém, aqui em Campinas, por exemplo, você quer uma pista de atletismo, tem a do Swiss Park, que é longe. Procura um lugar para fazer voleibol? Só clube. Futebol? Só clube. Eu tenho esse espaço físico aqui (campo da Mogiana). Estou oferecendo para o pessoal trabalhar. Ninguém vem porque não tem dinheiro. Eu deveria oferecer o espaço físico e dinheiro, mas, não tem dinheiro. As escolas, por exemplo, a escola tem uma quadrinha. O que um professor faz em uma quadra? Quase nada...

 

    FPRF - E para as escolas professor, já que falou nisso, o que falta para melhorar a educação física? Têm tantas coisas, não é?

 

    RD - Têm. Têm. Eu acho que nós temos bons professores. Mas, um professor numa quadra só e, com pouco material, faz quase nada. E nessa estrutura arcaica, que obriga você a fazer isso, aquilo, você acaba não fazendo nada. Quando a educação física voltou a ser trabalhada dentro do período de aula, prejudicou em muitos aspectos. Eu dei aulas no sistema anterior, quando tinham aulas pela manhã e a educação física era à tarde, ou, o contrário. Para minimizar despesas, para evitar que o aluno fosse duas vezes para a escola, colocaram a educação física dentro do horário de aula. O que o professor faz? O professor faz até milagre quando consegue fazer um time ou descobrir talentos. Então, isso tem que mudar. Uma escola ideal teria que ter sala de aula, quadra coberta, uma piscina, uma pista de atletismo ou uma minipista, um espaço para ginástica, espaço para dança, espaço para jogos de salão... Que escola tem isso?

 

    FPRF - Se nós tivéssemos escolas assim, qual seria o resultado?

 

    RD - Nós teríamos os melhores atletas e homens do mundo. Do mundo!

 

    FPRF - Professor, uma das coisas que fomos mudando com o tempo, desde que começamos a trabalhar com o atletismo na escola, foi da visão de que seria bacana revelar um grande atleta, para a visão de que, para a maioria, o ápice é mesmo a competição escolar.

 

    RD - Aí vale a pena ser professor. Você faz o atleta na base. E deixa o aluno, depois, seguir seu caminho.

 

    FPRF - Também já presenciei competições como os JORIS (Jogos Regionais dos Idosos), onde o espírito de competição é outro, mais brando que uma Olimpíada, onde a ambição pode levar a algo desonesto, como é o caso do doping.

 

    RD - Para o atleta, a Olimpíada é o auge. Para o professor, se ele conseguir vencer os Jogos Escolares, já é o máximo. Depois, deixe que a criança trabalhe com outros. Pode ser que, um dia, se essa criança for campeã, nem vai se lembrar de você. Mas, você se lembra! Aí, a satisfação pessoal é que vale, não importa se ela lembre ou não. Eu já fiz muitos atletas. A maior parte lembra de mim, me respeita. Mas, não é sempre assim. Enfim, eu acho que se o professor de educação física na escola tiver estrutura física, material e dinheiro, ele faz o atleta. O resto é consequência da vida.

 

    FPRF - Professor, e as desilusões nessa caminhada?

 

    RD - Eu tentei montar um clube de atletismo e, desisti. Faltou dinheiro. A gente tinha a pista e quinze atletas no meu clube. Não tinha mais dinheiro, tive que desfazer o clube. Isso foi uma desilusão. Também não nego que poderia ter evoluído mais no voleibol, mas, foi uma opção. Fiquei no atletismo. (Nesse momento, o professor pede um minuto para atender um pessoal que chegava para uma competição de masters e, que se alojaria na Delegacia de Esportes).

 

    FPRF - Professor, agora falando das alegrias, eu gostaria de mostrar uma foto, que foi tirada em um dos dias mais felizes de minha vida como professor. O senhor esteve presente, organizando o evento. Tínhamos formado uma boa equipe de atletismo na E.E. Perches Lordello, de Limeira, em 2001 e, fomos convidados para participar do Meeting de Atletismo em Piracicaba.

 

    RD - Isso foi lá na UNIMEP, não foi?

 

Fonte: Acervo pessoal de Fernando Paulo Rosa de Freitas

 

    FPRF - Foi. Fizemos até esse cartaz para diretora da escola. Aconteceram coisas interessantes nessa competição. Havia dito para uma aluna que gostaria de ganhar um troféu para a diretora, Dona Minerva, que havia adoecido e se afastado da escola. Mas, sabia que seria difícil nos Jogos Escolares. Então, resolvemos participar dessa competição. Acabou que chegamos atrasados...

 

    RD - Vocês sempre chegam atrasados (risos).

 

    FPRF - É que alugamos o ônibus mais barato que encontramos, que não passava dos quarenta quilômetros por hora. Mas, enfim, chegamos lá e vimos três troféus. No final, quando o professor anunciou que a vencedora entre as escolas públicas era de Americana e, entre as particulares, o Mackenzie de São Paulo, fomos deixando o local, pensando que uma delas tinha sido a campeã geral. Depois, o senhor anunciou a nossa escola como campeã geral. Foi uma festa! Foi quando aquela aluna veio me dizer que tínhamos alcançado o objetivo. Também foi interessante que, depois de passar o dia correndo atrás dessa competição, cheguei em casa tarde, mas, só dormi pouco. Acordei agitado pela adrenalina. Quando cheguei à escola no outro dia, contei esse fato para um dos alunos que se destacaram na competição. Ele nos disse, então, que o mesmo havia acontecido com ele. Mesmo cansado, não pode dormir pela euforia. Então, às vezes, o pessoal que critica professores esportivistas, não sabe desses momentos...

 

    RD - Tem muitos momentos da vida que são mesmo marcantes. A gente nem lembra de todos. Para mim, por exemplo, marcante foi quando eu fui campeão dos Jogos Abertos do Interior com o voleibol de Americana, com sete atletas, em Prudente.

 

    FPRF - Não tinha reservas?

 

    RD - Não tinha nada! Meu banco era um mirim de 15 anos. Ganhei! Ganhei! Jogos Abertos do Interior. Forte pra caramba! Ganhei de Santo André, Campinas... Ganhei com sete atletas. Um ainda machucou a mão e, nós fizemos uma prótese. Então, são momentos que marcam a vida como professor, atleta ou técnico. O importante é que, na educação física, tudo é bom. Mesmo que perca, você ganha porque conseguiu participar e, bem. Então, tudo o que fiz na minha vida, procurei fazer da melhor maneira possível. Muitas dessas ações serviram como exemplos. Para outros, serviram de estímulo. Acho que a maior parte como estímulo. Então, não digo que sou melhor, mas, procurei fazer o melhor que pude, para que ficasse uma boa história de vida, que é o que vale. Não que eu queira morrer já não... eu ainda tenho tempo de vida. Sou um atleta veterano que faço minha parte física todos os dias, acordo cedo, vou dormir cedo, tomo minha cervejinha e, cumpro minha obrigação profissional.

 

    Fechando a primeira entrevista, cedida em 2013...

 

    Assim como compartilhamos o início de nossa jornada no atletismo escolar com o Professor Ricieri, também tivemos a satisfação de compartilhar os momentos que precederam a sua aposentadoria do serviço público. Em 2011, durante a reunião com os classificados para a fase final da Olimpíada Escolar do Estado de São Paulo, que seria em Botucatu, Professor Ricieri já dava mostras de que se afastar de suas atividades não era algo totalmente de seu agrado, ao afirmar que “logo estarei me afastando compulsoriamente”. Cuidando do alojamento da Região de Campinas, nessa mesma competição, Professor Ricieri também deixou escapar uma frase, um tanto melancólica: “Professor, daqui há uns dez anos, ninguém mais vai lembrar da gente”.

 

    Quase dez anos depois, foi realizada uma segunda entrevista com o professor Ricieri Dezem, no ano de 2022, à distância.

 

    FPRF - Professor Ricieri, depois de se aposentar do serviço público, quais atividades tem realizado?

 

    RD - Depois de me aposentar não parei de organizar eventos de atletismo e, continuo na arbitragem até hoje. Neste dia 07 de fevereiro de 2022, fiz arbitragem da Copa Brasil de atletismo na cidade de Bragança Paulista. Enquanto puder, eu participarei.

 

    FPRF - E a vida pessoal e familiar, como está?

 

    RD - Eu sou uma pessoa ativa que acorda as cinco horas todos os dias, corro e caminho de dez a doze quilômetros. Faço musculação e jogo voleibol três vezes por semana. Faço cento e cinquenta abdominais todos os dias e, quando há competição, eu atuo como árbitro. Isso me deixa em dia com a saúde e com meus médicos. Todos os meus filhos casaram e estão exercendo suas profissões e com boa saúde. Tive mais um neto. Meu amigo, seu Nelson, ainda é vivo e, já completou noventa anos. Escrevi um segundo livro que trata da iniciação ao atletismo para crianças e jovens, mas, ainda não publiquei. Minha esposa trabalha comigo na arbitragem desde 1980. Minha filha Maria Claudia e minhas netas Julia e Carolina atuam quando podem.

 

Fonte: Acervo pessoal de Ricieri Dezem

 

    FPRF - Na entrevista de 2013, houve relatos relacionados à formação e qualificação do profissional de educação física. Na opinião do professor, quais as qualidades e atitudes necessárias para se tornar um bom profissional nessa área?

 

    RD - Um bom profissional deve, antes de tudo, respeitar os seus pares e os seus alunos. Deve aplicar aquilo que conhece em benefício da saúde física e mental das pessoas que estão sob seus cuidados, quer seja como profissional, ou, como cidadão.

 

Discussão 

 

    Dentre as características de uma pesquisa que utiliza a metodologia da história oral, figuram a contemporaneidade dos relatos, limitados a memória dos participantes (Alberti, 1989 como citado em Matos & Senna, 2011, p. 96) e, o aspecto coletivo dessas memórias, ainda que conte apenas com um participante, pois, está inserido em um contexto histórico e social (Halbwachs, 2004 como citado em Matos & Senna, 2011, p. 96). Tais características aparecem nesta pesquisa, na qual a percepção do entrevistado se confunde com as transformações ocorridas nos campos sociais e da educação física, em um período de cinco décadas. Essas transformações são percebidas e vivenciadas pelo depoente que, em parte, se adapta aos novos tempos, mas que, também, preserva crenças e uma linha de atuação tradicional, baseado, especialmente, em sua prática profissional.

 

    A recepção dessas informações por leitores que atuam na mesma área do entrevistado, por sua vez, depende da familiaridade com os assuntos relatados. Por exemplo: questões como a transição do modelo esportivista para a abordagem construtivista da educação física escolar e, a possibilidade que essa disciplina revele atletas, podem ser tomadas pelos mais jovens com certo preconceito. Uma vez que não vivenciaram esse processo, se sabem algo a respeito, foi por meio de estudos que, em muitas vezes, utilizaram referências críticas aos modelos tradicionais. É preciso, portanto, analisar tais relatos como produto de uma época e de uma sociedade diferente, cedidos por um profissional que conhece profundamente a importância do trabalho de base feito nas escolas para o atletismo nacional. Tais relatos têm importância para o presente, uma vez que antigos problemas e desafios persistem e, outros se somam com o tempo. Conhecer a história, portanto, é uma forma de reflexão útil para as decisões profissionais, que envolvam retomadas ou superação.

 

Conclusões 

 

    Professor Ricieri marcou diversas gerações de atletas, alunos, técnicos e professores. As lembranças compartilhadas entre os que o conheceram remetem à sua disciplina, bem como, à sua competência profissional, construídos em seu processo de formação e atuação. Entre exemplos dessas competências que podem ser citados pelos autores, a impressionante memória que professor Ricieri demonstrava ao elaborar os roteiros dos ônibus que saiam para as competições: descrevia, sem consultar, a rua, o número e os pontos de referência em diferentes cidades, onde os atletas embarcariam. Em relação as atitudes, sempre cobrou dos professores a responsabilidade pelo comportamento de seus alunos.

 

    Seus relatos, além das questões de formação e atuação profissional, apresentam aspectos importantes das condições de trabalho e dos desafios enfrentados pelos profissionais da educação física, em seus diferentes segmentos e, nas diferentes fases da carreira. Nas palavras do próprio entrevistado, essas experiências podem servir como exemplo e estímulo para os mais jovens.

 

Referências 

 

Matos, J.S., e Senna, A.K. (2011). História Oral como fonte: problemas e métodos. Historiae, 2(1), 95-1089. https://periodicos.furg.br/hist/article/view/2395

 

Meihy, J.C.S.B. (2005). Manual de história oral (5ª ed.). Edições Loyola.

 

Portelli, A. (1997). Forma e significado na história oral: a pesquisa como um experimento em igualdade. Projeto história, 14, 7-24. https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/11231

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 27, Núm. 289, Jun. (2022)