ISSN 1514-3465
Racismo no esporte moderno: um estudo sobre memórias por meio do cinema
Racism in Modern Sport: A Study on Memories through Cinema
Racismo en el deporte moderno: un estudio sobre la memoria a través del cine
Nathália Helena Rogoski Iank
*nathalia-rogoski@hotmail.com
Diana Galone Somer
**dianassomer@gmail.com
Alfredo Cesar Antunes
+alfredo.cesar@hotmail.com
Constantino Ribeiro de Oliveira Junior
++constantino@uepg.br
*Acadêmica de Educação Física bacharelado
Licenciada em Educação Física
pela Universidade Estadual de Ponta Grossa
**Doutoranda em Ciências Sociais Aplicadas
pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e bolsista CAPES
Técnico em Artes Cênicas, graduação em Processos Gerenciais
e Serviço Social (CRESS nº 11748)
Mestrada em Ciências Sociais Aplicadas, todos pela UEPG
+Doutor em Ciências do Esporte/Educação Física pela UNICAMP
Pós-doutorado em Psicologia Social pela UERJ (Bolsa Fundação Araucária/PR)
Professor associado do Departamento de Educação Física
e docente permanente do Programa de Mestrado
e Doutorado Interdisciplinar em Ciências Sociais Aplicadas da UEPG
Mestre em Ciências da Motricidade pela UNESP (Bolsista CNPq)
Graduado em Educação Física pela UNESP
++Doutor em Educação Física (Estudos do Lazer) pela UNICAMP
Mestre em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba
Professor Adjunto do curso de Educação Física e do Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da UEPG,
atuando nas áreas de Políticas Públicas e Cidadania.
Líder do grupo de pesquisa "Lazer, Esporte e Sociedade"
Docente do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Esporte, Lazer e Sociedade,
com foco em Representação Social, Memória Social, Indivíduo e Sociedade
(Brasil)
Recepción: 06/12/2023 - Aceptación: 06/10/2024
1ª Revisión: 01/07/2024 - 2ª Revisión: 02/10/2024
Documento acessível. Lei N° 26.653. WCAG 2.0
Este trabalho está sob uma licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0) https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/deed.pt |
Cita sugerida
: Iank, N.H.R., Somer, D.G., Antunes, A.C., e Oliveira Junior, C.R. de (2024). Racismo no esporte moderno: um estudo sobre memórias por meio do cinema. Lecturas: Educación Física y Deportes, 29(319), 2-20. https://doi.org/10.46642/efd.v29i319.7383
Resumo
Esta pesquisa tem como objetivo mapear e analisar as memórias de racismo no esporte por meio do cinema. Foram selecionados quatro filmes e um documentário: "Race" (2016); "História de uma lenda" (2013); "Duelo de Titãs" (2000), "Invictus" (2009), e "Outraged" (2021), para compreender quais são as memórias em comum das obras selecionadas. A metodologia de análise de conjuntura revelou memórias racistas com linguagem preconceituosa e ações estigmatizantes, como “macaco”, vaias, ameaças e racismo estrutural. Os resultados destacam a relevância social, mostrando que o racismo ainda é um problema no esporte e na sociedade moderna.
Unitermos:
Cinema. Esporte. Racismo.
Abstract
Situations of discrimination are recurrent in society, including sports racism. The objective of the research is to map and analyze the memories of racism within sport through cinema through films and documentaries in order to understand what are the common memories of the selected works. With this, a survey of four (4) films and one (1) documentary was carried out. For the analysis, the conjuncture analysis methodology was used. The results showed common racist memories, mainly through language, with prejudiced words and stigmatizing actions such as: "monkey", boos, threats and structural racism was the most present.
Keywords
: Cinema. Sport. Racism.
Resumen
Esta investigación tiene como objetivo mapear y analizar las memorias del racismo en el deporte a través del cine. Se seleccionaron cuatro películas y un documental: "El triunfo del espíritu" (2016), "42: La historia de una leyenda" (2013), "Duelo de titanes" (2000), "Invictus" (2009), y "Outraged" (2021), para comprender las memorias comunes de las obras seleccionadas. La metodología de análisis de situación reveló memorias racistas con lenguaje prejuicioso y acciones estigmatizantes, como “mono”, abucheos, amenazas y racismo estructural. Los resultados resaltan la relevancia social, mostrando que el racismo sigue siendo un problema en el deporte y en la sociedad moderna.
Palabras clave
: Cine. Deporte. Racismo.
Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 29, Núm. 319, Dic. (2024)
Introdução
O racismo é um problema que ainda persiste na sociedade, inclusive no âmbito esportivo. Lucas (2024), doutor em Educação Física e Esporte pela USP, discute a relação entre racismo e esporte, destacando o racismo como uma prática cotidiana e institucionalizada. Em sua análise, Lucas argumenta que o esporte, ao longo da história, tem sido empregado como um instrumento tanto de contenção quanto de afirmação racial, evidenciando as desigualdades sociais que perpassam a sociedade de maneira ampla. Essa perspectiva revela como as dinâmicas esportivas refletem e reforçam hierarquias raciais, indicando a necessidade de uma compreensão crítica sobre o papel do esporte na construção e perpetuação dessas desigualdades. Como defende Jacquard (1988), o racismo se baseia na ideia de que uma raça é superior a outra, criando uma segregação racial com base nas características físicas e associando-as a aspectos morais. Na história, a realização da Olimpíada de Berlim em 1936, em um país sob regime nazista, ficou marcada pela questão racial e gerou questionamentos sobre o apoio norte-americano ao evento. Desde então, muitos avanços foram conquistados com a criação de leis de direitos humanos e tribunais de justiça desportiva.
Um dos casos de racismo no esporte que teve grande repercussão na mídia ocorreu em setembro de 2022, de acordo com as reportagens do TNT Sports e o Correio Braziliense Esportes, quando o jogador Vinicius Junior do Real Madrid sofreu discriminações por comemorar seu gol dançando. A dança do atleta foi chamada de "macaquice" pela torcida do Atlético de Madrid. No Brasil, por exemplo, um desses casos foi registrado no jogo de volta da Copa do Brasil entre Atlético Mineiro e Atlético Paranaense, em que torcedores imitaram macacos para ofender jogadores. Em 2023, as reportagens em Do Live Futebol BR destacam que, ocorreu várias passagens racistas, em julho com o jogador do Corinthians Matheus Bidu.
A pesquisa apresentada tem como objetivo mapear e analisar as memórias de racismo dentro do esporte moderno através do cinema, utilizando como fonte quatro filmes e um documentário selecionados. O estudo busca compreender quais são as memórias em comum dessas obras selecionadas, considerando a grande importância da participação de diferentes raças, etnias e culturas nos esportes.
A pesquisa justifica-se pela relevância social das agressões e insultos racistas no esporte, especialmente no futebol, e pela importância acadêmica dos autores que, junto ao grupo de pesquisa Esporte, Lazer e Sociedade, investigam as interseções entre esporte, documentário, cinema e racismo. Estudos, como os de Melo (2023), destacam que o racismo no futebol é um fenômeno histórico e recorrente, evidenciando a ineficácia das tentativas de combate à discriminação. Nascimento, e Veras (2022) acrescentam que a estratificação nos estádios reflete essa desigualdade, perpetuando a herança elitista e racista da modalidade. Assim, o futebol simboliza a continuidade das dinâmicas de exploração racial, reforçando a importância de se estudar essa temática.
Esta pesquisa busca explorar como o cinema pode ser utilizado como uma ferramenta para investigar e preservar memórias de experiências raciais no esporte. Procura revelar como o cinema reflete a percepção pública e histórica do racismo no esporte. Essa abordagem oferece uma nova perspectiva ao examinar como as representações cinematográficas contribuem para a compreensão e o combate ao racismo nas práticas esportivas, ampliando o diálogo entre o esporte, a memória cultural e as artes visuais.
A pesquisa seguirá a abordagem do cinema e memória social para compreender os Racismo e suas Diversas Faces: Explorando Classificações e Reflexões. O tópico Métodos detalhará os filmes e o documentário selecionados, enquanto os resultados e as discussões buscarão identificar as memórias sociais racistas relatadas no cinema. Portanto, a pesquisa analisa como as memórias de racismo são representadas no cinema entendendo a relevância da participação de diferentes grupos étnicos e culturais no esporte.
O cinema e a memória social
Neste estudo, vai-se além das categorias metodológicas, é analisado como narrativas e representações cinematográficas impactam a forma como a sociedade lembra, interpreta e constrói seu passado e cultura. Autores proeminentes, como Morin (2014), e Lucena (2012), oferecem contribuições essenciais e complementares para a análise cinematográfica. Morin explora o cinema como uma arte complexa e multifacetada, transcendendo o mero entretenimento e analisando-o por uma perspectiva antropológica e sociológica. Suas teorias da complexidade permitem refletir sobre as diferentes formas de consumir cinema e estabelecem uma relação intrínseca entre o cinema, o imaginário e a realidade. Lucena, por sua vez, enriquece essa abordagem ao focar nas interações sociais e culturais nas produções cinematográficas, tratando o cinema como um fenômeno social. Juntos, Morin, e Lucena fornecem uma base teórica robusta para investigar a memória social através do cinema, integrando aspectos estéticos, sociais, culturais e antropológicos, e oferecendo uma análise cinematográfica multidimensional e profunda.
Quanto a memória Halbwachs (1990) diferencia a memória coletiva da memória individual, apontando que a primeira é vivida e compartilhada por um grupo, enquanto a segunda é um ponto de vista sobre essa memória coletiva. Ele sugere que a memória individual depende da memória histórica, que oferece contexto para as lembranças pessoais, destacando a construção social das memórias. Essa teoria é particularmente relevante na relação entre cinema e memória social. O cinema, como arte e meio de comunicação, serve como um veículo para a memória coletiva, ao representar e reconstituir experiências compartilhadas. Filmes não apenas evocam lembranças coletivas, mas também moldam a percepção do passado e influenciam como os grupos sociais lembram eventos históricos e experiências culturais, sugerindo que o cinema não só reflete a memória social, mas também a constrói e transforma.
O cinema é uma arte que retrata o movimento para contar uma história, podendo ser em curta, média ou longa-metragem. As produções fílmicas podem ter diferentes gêneros ou até mesmo misturar algumas formas de gêneros, podendo ser: animações, ficção, documentários, musicais, dramas, romances, suspenses, comédias, fatos, etc.
Com base nisso, sobre os filmes, Morin (2014, p. 240) defende que “Ele remixa o real, o irreal, o presente, a vivência, a lembrança e o sonho no mesmo nível mental comum. Como a mente humana, ele é tão mentiroso quanto verídico; tão mitômano quanto lúdico”. Para Morin (2014, p. 239) “o cinema oferece o reflexo não somente do mundo, mas do espírito humano”.
Lucena (2012) afirma que filme de ficção, por sua vez, tem sua construção condicionada a um roteiro predeterminado, cuja base é composta de personagens ficcionais ou reais, os quais são interpretados por atores. Esses papéis são especificados nos scripts, que normalmente recorrem a fórmulas consagradas, tendo como principal objetivo o entretenimento do espectador.
Destarte, os filmes são baseados em acontecimentos reais, em histórias verdadeiras sobre determinados fatos, podendo ser históricos, dramas ou biografias. Nestes filmes também ocorre uma irrealidade porque as cenas são inseridas de formas intencionais, por meio de roteiro e atores fictícios. Intencionalidades são técnicas cinematográficas que vão além da própria história, a fim de convencer e provocar emoções no telespectador. Essas técnicas envolvem expressões, cortes bruscos de cena, cenários, planos etc.
Enquanto os documentários não são ficcionais, são de caráter informativo de explorar algo ou alguém da forma mais real e imparcial possível. Não há roteiro, nem personagens fictícios. Lucena (2012) afirma que documentário é realizado com sujeitos do mundo real, procura informar o espectador, sem se preocupar com o entretenimento. Ao contrário dos filmes de ficção, temos a sensação de que os documentários falam conosco diretamente.
O entendimento da memória é descrito como um processo de reconhecimento e reconstrução, envolvendo a identificação de experiências passadas e a relembrança de vivências que podem ser adaptadas à atualidade, com possíveis alterações de lugar, tempo ou contexto social. A memória não é apenas uma função cognitiva individual, mas também é construída colaborativamente em grupos. Os processos de lembrar e esquecer são influenciados por emoções e relações sociais dentro do grupo, sendo moldados pela relação do indivíduo com o mundo social. A memória é seletiva e passa por um processo de negociação que envolve tanto a memória coletiva quanto a individual. O cinema é apontado como uma ferramenta que retrata esse processo, contando histórias que abrangem diversos aspectos da vida e sociedade, ativando e influenciando a memória coletiva através de diversos gêneros cinematográficos.
Logo, o objetivo da pesquisa é mapear e analisar as memórias compartilhadas entre as obras escolhidas a partir da análise da história do racismo no esporte moderno por meio de filmes e documentários. O racismo é apresentado como um fenômeno que se consolida na organização da sociedade, dando privilégios a uma determinada raça. No Brasil, o racismo é associado a práticas que remontam à escravização e à tardia abolição dos povos africanos. Essas práticas são evidentes na linguagem e na cultura brasileira. Como afirma Gonzalez (2020, p. 184), “Na verdade, o grande contingente de brasileiros mestiços resultou de estupro, de violentação, de manipulação sexual da escrava. Por isso existem os preconceitos e os mitos relativos à mulher negra: de que ela é ‘mulher fácil’, de que é ‘boa de cama’ (mito da mulata) etc. e tal”. Portanto, é crucial entender a memória como um fenômeno social que se estende para além do indivíduo. Assim, a memória é um processo social influenciado por relações interpessoais e instituições sociais. A memória é ativada em contextos sociais e por meio de interações com outras pessoas, não apenas para uso prático.
Quando as memórias são divididas entre as pessoas com base na memória coletiva, isso pode resultar em um vínculo. A nossa impressão pode ser sustentada “[...] não somente sobre nossa lembrança, mas também sobre a de outros, nossa confiança na exatidão de nossa evocação será maior, como se uma mesma experiência fosse começada, não somente pela mesma pessoa, mas por várias”. (Halbwachs, 1990, p. 25)
O autor destaca que a memória coletiva é uma parte essencial de nossa existência, argumentando que mesmo durante os momentos de aprendizado individual, a experiência é produzida em grupo, seja na escola, em casa, no trabalho ou com amigos. Ele enfatiza que a memória é construída com base nas experiências do grupo, e a lembrança individual é apenas uma perspectiva de uma memória coletiva contínua. Mesmo em situações em que um indivíduo se lembra de um incidente em que esteve sozinho, outros também têm suas lembranças. O autor ressalta que as memórias são formadas em grupos, e ao se distanciar desses grupos, é mais desafiador recordar o que aconteceu, sendo necessário entrar novamente em contato com membros do grupo para evocar as recordações. A importância de manter um equilíbrio entre as lembranças individuais e as do grupo é destacada, pois ambas contribuem para a mesma vivência grupal.
Os filmes despertam e retratam memórias. Nesse contexto, torna-se viável investigar a perspectiva do cinema sobre a discriminação no âmbito esportivo.
Racismo e suas diversas faces: explorando classificações e reflexões
Apresenta-se o conceito de racismo e suas diversas classificações, incluindo o racismo estrutural, institucional, individual, cultural e ecológico. Além disso, será discutido sobre injúria racial e racismo reverso. Ferreira Junior, e Rubio (2019) afirmam que a "raça" é uma construção colonial que moldou a sociedade e suas instituições, servindo como base para o racismo que persiste, mesmo com mudanças legais e políticas. Scott (1992) complementa que o gênero é moldado por contextos sociais e culturais, interligado com raça, classe e etnia. Gonzalez (2020) complementa essa análise, destacando que no Brasil o racismo é mantido por uma ideologia de branqueamento, que perpetua a subordinação de negros e indígenas, disfarçada sob a aparência de uma democracia racial. Essas formas sofisticadas de dominação racial fragmentam a identidade racial e reforçam a desigualdade na sociedade. Gonzalez ainda observa que, em busca de aceitação, muitos negros alienam-se de sua própria raça, tentando provar que são "mais brancos" e negando a existência do racismo, mesmo diante das evidências sutis do "racismo à brasileira". (Gonzalez, 2020, p. 194)
Entre as classificações de racismo encontrou-se o estrutural, que é um conjunto de falas e ações que se faz presente em determinada sociedade. É quando o preconceito e a discriminação racial estão consolidados na organização da sociedade, dando privilégios a determinada raça. Por exemplo, no Brasil, pode-se associar algumas práticas racistas devido a escravização e a tardia abolição dos povos africanos. Os relatos traduzem o racismo materializado na linguagem e constitutivo da cultura brasileira.
Lima, e Vala (2004) afirmam que o racismo se manifesta por meio da desumanização e desvalorização de pessoas negras, vistas como inferiores. No esporte, apesar da presença significativa de atletas negros, suas oportunidades são limitadas, especialmente no mercado europeu, onde o racismo é recorrente. Embora o esporte seja visto como uma via de ascensão social, ele revela profundas desigualdades, com a predominância de brancos em várias modalidades, enquanto negros enfrentam barreiras. Gonzalez (2020) destaca que o racismo latino-americano mantém negros e indígenas subordinados, perpetuando a exclusão e a desigualdade, inclusive no esporte, onde atletas negros têm menos oportunidades em comparação com a elite branca, (Assumpção et al., 2010)
Outra classificação é o racismo institucional que é promovido por instituições privadas ou públicas do Estado que de maneira indireta podem promover preconceito racial ou exclusão. Dentro do esporte nacional e internacional a maioria dos cargos de importância é ocupado por pessoas brancas.
Almeida (2019) afirma que o racismo no Brasil é estrutural, favorecendo a população branca e oprimindo negros e indígenas. Ele explica que o racismo vai além de atitudes individuais, sendo um processo histórico que molda as instituições e a sociedade. Lima, e Vala (2004) complementam, diferenciando racismo de preconceito, destacando que o racismo está diretamente ligado ao ódio contra pessoas negras, enquanto o preconceito abrange discriminações por características como raça, religião e gênero. No esporte, é comum observar insultos racistas contra atletas negros, com termos que remetem à escravidão, o que configura injúria racial, mas o racismo é um fenômeno coletivo, manifestado em práticas sociais e institucionais. Foucault (1992) descreve o racismo como uma tecnologia de poder que legitima a exclusão e fragmenta a sociedade, perpetuando a opressão de grupos racializados.
Sobre o racismo reverso, Lélia Gonzalez (2020), e Munanga (2004) afirmam que ele não pode ser considerado verdadeiro racismo, pois este envolve um sistema de poder que historicamente subordina grupos étnicos, o que não ocorre com a população branca (Schwarcz, 1993, Carone 2002, Hofbauer, 2006). Fontoura (2022) critica o conceito de racismo reverso, argumentando que ele enfraquece o debate antirracista ao ignorar o contexto histórico brasileiro. No esporte moderno, Martins, e Altmann (2007) observam que ele busca igualdade, suspendendo temporariamente as diferenças sociais durante a prática esportiva. Contudo, o esporte, apesar de sua regulamentação, ainda reflete as desigualdades sociais e raciais.
O cinema tem sido uma poderosa ferramenta para refletir e confrontar o racismo, servindo tanto como um espelho das realidades sociais quanto como um espaço de crítica e resistência. As representações do racismo no cinema oferecem não apenas entretenimento, mas também é um meio de discussões sobre desigualdade, identidade e justiça. Essas obras, mostram o potencial do cinema para exibir para o público as faces do racismo. Ao assistir a esses filmes, os espectadores são convidados a refletir sobre suas próprias atitudes e crenças, além de serem expostos a experiências e perspectivas que muitas vezes são ignoradas. O cinema pode desempenhar um papel significativo na transformação social, inspirando empatia, compreensão e, eventualmente, ação contra o racismo. Isso ocorre devido alguns fatores.
Narrativas acessíveis: formato visual e narrativo do cinema facilita a comunicação de experiências complexas de maneira que o público possa se relacionar e entender. Histórias contadas através de personagens e enredos conseguem envolver emocionalmente os espectadores, tornando os problemas sociais mais palpáveis.
Poder da representação: O cinema tem a capacidade de moldar percepções e influenciar a cultura. Ao apresentar personagens diversos e complexos, os filmes podem desafiar estereótipos e promover uma imagem mais positiva de grupos marginalizados, ajudando a mudar a maneira como as pessoas veem o racismo.
Educação e conscientização: Muitos filmes abordam temas sociais e históricos de maneira informativa, ajudando o público a entender as raízes do racismo e suas consequências. Isso não apenas educa, mas também pode motivar discussões importantes sobre justiça social e igualdade.
Reflexão e debate: O cinema provoca reflexões e debates sobre questões sociais, oferecendo uma plataforma para questionar e analisar comportamentos e crenças. Isso pode inspirar ações individuais e coletivas em prol da mudança social.
Impacto cultural e social: O cinema tem um papel significativo na formação da cultura popular. Quando um filme que aborda o racismo é bem-sucedido, ele pode atrair a atenção da mídia e do público, impulsionando um diálogo mais amplo sobre a questão, influenciando políticas e iniciativas sociais. Portanto, o cinema não é apenas um reflexo da sociedade, mas também um agente ativo que pode inspirar mudanças, promover compreensão e incentivar ações contra o racismo. Esta análise foi desenvolvida com base em conceitos de estudos culturais e cinematográficos, conforme abordado por Stuart Hall, que examina o cinema como meio de representação social e transformação cultural
Sobre filmes e documentários, ambos os formatos têm o potencial de abordar questões sociais e raciais, mas suas concepções e métodos são diferentes. Embora muitos filmes sejam inspirados em histórias reais, a forma como essas histórias são contadas e a intenção por trás de cada formato diferem substancialmente. Os documentários são uma forma distinta de narrativa visual que se concentra em retratar a realidade, e eles têm características específicas que os diferenciam dos filmes de ficção, mesmo quando ambos podem abordar temas semelhantes, como o racismo.
Métodos
Neste item apresenta-se os filmes e o documentário selecionado, bem como os critérios de inclusão da seleção, além do método de análise e a revisão de literatura feita em relação as categorias centrais que permeiam a análise dos filmes. Sobre a seleção escolheu-se: Race (2016), A história de uma lenda (2013), Duelo de Titãs (2001); Invictus (2009); e o documentário Outraged (2021). Para uma análise mais detalhada, é importante diferenciar cinema de documentário. Conforme Escrevendo o Futuro, definir documentário é desafiador e frequentemente envolve compará-lo ao cinema de ficção. Enquanto o documentário busca capturar a realidade com objetividade, a ficção explora a criação de narrativas e a subjetividade. No entanto, cineastas perceberam que o documentário apenas representa a realidade, sem espelhá-la fielmente. Muitos realizadores, assim, combinam elementos de ficção e documentário, criando uma narrativa que convida o espectador a questionar o que vê e compreendendo o documentário como uma construção discursiva, não como uma visão direta do real. A seguir o detalhamento das seleções feitas.
Os critérios para escolhas dos filmes e documentário para a realização da pesquisa foram:
Data. Referente à data, foram escolhidos filmes de décadas diferentes, para que seja possível analisar e refletir sobre as ações que foram repetitivas ou se houve mudanças com o passar dos anos.
Modalidade esportiva. Referente às modalidades esportivas, optou-se por filmes que retratassem diferentes modalidades para que também seja possível comparar pontos em comuns em diferentes esportes.
Para analisar os textos audiovisuais foram lidas três abordagens metodológicas, sendo uma escolhida para análise final. A primeira abordagem encontra-se no capítulo 14, do livro de Bauer, e Gaskel (2015) “Pesquisa qualitativa com texto imagem e som: um manual prático”, intitulado “Análise de imagem em movimento”, de Diane Rose. A segunda abordagem metodológica foi o livro de Bohnsack (2020) "Pesquisa social reconstrutiva: introdução aos métodos qualitativos" (capítulo 10) Editora Vozes. A terceira abordagem metodológica foi a análise de conjuntura, retirada da obra de Souza (2001), "Como se faz análise de conjuntura". Esta última apresenta que "é necessário identificar os ingredientes, os atores, os interesses em jogo. Fazer isso é fazer análise de conjuntura" (Souza, 2001, p. 7). Além disso, seguindo a ideia de Souza (2001, p. 9) selecionou-se as categorias "acontecimento, cenários, atores, relação de forças, articulação (relação) entre estrutura e conjuntura". Após exploradas as metodologias, a análise de conjuntura foi escolhida após a leitura do texto “Proposta de análise de filme se a biscuit (alma de herói) com base na análise de conjuntura” sobre cinema e esporte, pois permitia uma análise mais ampla e pareceu-nos a mais bem adequada para atingir os objetivos da pesquisa. Para melhor entendimento do leitor, far-se-á uma exposição das categorias da análise de conjuntura.
Categoria acontecimento: os acontecimentos têm relação com a história, com o passado, com relações sociais, econômicas ou políticas. Seus efeitos têm significados nos grupos sociais ou na sociedade. A importância do acontecimento depende do olhar de quem analisa a conjuntura.
Categoria cenário: nesta categoria verificam-se os espaços que ocorrem as ações e acontecimentos do filme, se há mudanças nos cenários ou em que espaço geográfico é retratado. Cada cenário apresenta particularidades que influenciam o desenvolvimento do acontecimento.
Categorias atores: nesta categoria verificam-se quais atores retratados no filme, características e acontecimentos em relação à classe social. O ator é a pessoa escolhida para representar um papel dentro do enredo. Uma classe social, uma categoria, um grupo podem ser atores sociais (representam algo para a sociedade). Instituições também podem ser atores sociais: sindicatos, partidos políticos, jornais, rádios emissoras televisão, igrejas.
Categoria relações de força: nesta categoria verificam-se relações entre atores. Estas relações podem ser de igualdade, subordinação, domínio, força, confronto, coexistência, cooperação. A relação de força pode aparecer por manifestações como eleições, força de movimentos sociais, partidos políticos etc.
Categoria articulação entre estrutura e conjuntura: nesta categoria verificam-se acontecimentos históricos com relações sociais, econômicas e políticas. Devem-se analisar “quais as relações sociais estabelecidas”.
Após conhecer os conceitos em discussão da presente pesquisa, e o material e métodos apresenta-se os resultados e as discussões.
Resultados e discussões
Apresenta-se a análise dos quatro (4) filmes e um (1) documentário selecionado. Todos os quadros trarão em seguida: o nome da obra; acontecimentos; cenário; atores; relações de força e Articulação entre estrutura e conjuntura, para melhor compreensão dos filmes e do documentário. No Quadro 1, apresenta-se o filme Race.
Quadro 1. Filme Race, descreve a vida de Jesse Owens
Nome da obra |
Race |
Acontecimento |
Jesse
Owens, um jovem negro fez história ao ganhar quatro medalhas de ouro
nos Jogos Olímpicos de Berlim 1936 diante um cenário nazista. |
Cenário |
Alabama (nascimento de Owens), Universidade de Ohio
Estados Unidos (onde Owens estudava), Michigan (competição de
atletismo), entre outros. |
Atores |
Adrian Zwicker (Hitler), Comitê Olímpico dos
Estados Unidos, Jason Sudeikis (Larry
Snyder - treinador), Delegação Americana, Stephan James (Jesse Owens),
David Kross (Luz Long, competidor alemão que ajudou Jesse), mídia. |
Relações de força |
Larry Snyder cooperando, ajudando, encorajando Jesse
Owens; Berlim no cenário nazista segregando negros e judeus; Comitê Olímpico
Americano confrontando o Chanceler; Luz Long ajudando Jesse no salto em
distância; A torcida vaiando Jesse; alunos de Ohio discriminando Jesse;
Mídia difamando Jesse. |
Articulação
entre estrutura e conjuntura |
Havia um movimento de segregação racial, onde a
miscigenação não era bem-vista. O nazismo estava no seu auge. |
Notas: Dados trabalhados pelos autores
No filme Race, percebemos que o jovem Jesse Owens foi inspiração e referência no atletismo, superando todo preconceito até mesmo o cenário nazista.
O nazismo foi um movimento criado e liderado por Adolf Hitler entre 1933 e 1945. O objetivo do movimento era enaltecer e fortalecer os Alemães. O movimento era autoritário, centrado pela figura do líder. Uma das características do nazismo era o racismo, pois acreditavam que os povos do norte da Europa eram superiores. Hitler, abominava judeus e negros, pois considerava que a Alemanha tinha problemas por causa deles, o que ocasionou na morte de milhares de pessoas.
Neste contexto retratado na época, percebemos que Owens só foi para aos Jogos Olímpicos na esperança de dar melhor condição de vida para sua família, situação que ocorre até hoje em dia no esporte. Percebeu-se que o racismo se manifestou na Universidade de Ohio pelos alunos brancos, na torcida onde recebia vaias, na arbitragem onde era boicotado, na mídia onde era exposto de forma negativa, durante os JJ.OO. onde mesmo ganhando não recebeu menções honrosas. Em seu próprio país (EUA) do presidente Franklin D. Roosevelt.
No Quadro 2, destaca-se o filme História de uma lenda.
Quadro 2. Filme História de uma lenda, aborda a questão que em 1947 houve um fato revolucionário
Nome da obra |
A
história de uma lenda |
Acontecimento |
Jackie
Robinson, primeiro negro a participar da Major League Baseball na era
moderna, levando seu time a vitória da liga. |
Cenário |
Georgia (cidade de Robson), Brooklyn New York (sede
do Dodgers), Universidade da Califórnia (Robson estudou), entre outros. Califórnia (nascimento do filho de Robinson), Cidade
do Panamá (local em que ocorreu abaixo assinado para Robinson não
jogar), Pittsburg (local de jogo em que os Dodgers foram campeões da
liga de 1947). |
Atores |
Chadwick
Aaron Boseman (Jackie Robinson), Harrison Ford (Branch Rickey executivo
de esportes), Brooklyn Dodgers (time de baseball), Nicole Beharie
(Rachel, esposa de Jackie), policia, liga de baseball, mídia. |
Relações de força |
Mídia ofendia Robinson; Torcida branca vaiava o
jogador; Negros tratam Robinson como herói; Moradores da cidade ameaçavam
o jogador; jogadores oponentes brancos ofendia me violentavam Robinson;
Alguns membros da própria equipe insultavam e tinham preconceito com o
jogador; Alguns membros de sua equipe defendiam Robinson; Gerente do
hotel destratou a equipe dos Dodgers por preconceito; Rickey encorajava,
dava oportunidade, acreditava em Robinson; polícia destratou o jogador;
Aéromoça destratou o jogador e sua esposa; Mídia espalhava palavras
racistas sobre Robinson; time da Philadelfia não queria jogar contra o
jogador negro. |
Articulação
entre estrutura e conjuntura |
A sociedade vivia em segregação racial. Em 1946 os
400 jogadores de baseball eram brancos, em 1947 este número caiu para
399, onde um jogador negro se destacou. |
Notas: Dados trabalhados pelos autores
Em 1946, os 400 jogadores de baseball eram brancos, em 1947 este número caiu para 399, onde o jogador negro Jackie Robinson se destacou.
O filme denúncia a segregação racial no esporte que era alta naquela época e conta a história do jogador. A história de uma lenda, mostra que existiam banheiros separados para brancos e negros e a entrada para acesso ao estádio também era diferente para as raças. Dentro do estádio as torcidas não se misturavam, os brancos vaiavam e insultavam o jogador como "macaco". Para os negros o jogador era estrela, herói. O preconceito vinha de dentro da sua própria equipe onde houve até abaixo assinado para não jogarem juntos. Vindo de jogadores oponentes, Robinson sofreu até violência antidesportiva. Além disso, alguns moradores da cidade o ameaçaram indo até sua casa e através de cartas. Esses episódios de discriminação estavam enraizados em uma visão poligenista da humanidade, popularizada a partir do final do século XIX, que sugeria múltiplas origens para diferentes "raças" e promovia a ideia de hierarquização racial. Como argumenta Schwarcz (1993, p. 48), essa concepção favorecia a interpretação biológica para justificar a desigualdade, sustentando a ideia de que algumas "raças" eram superiores e outras, inferiores.
No quadro 3, apresenta-se, o filme Duelo de Titãs.
Quadro 3. Filme Duelo de Titãs, mostra a história de um técnico negro
Nome da obra |
Duelo
de Titãs |
Acontecimento |
Herman
Boone, técnico negro que conseguiu unir um time de futebol americano
composto por negros e brancos, fazendo com que ganhassem o campeonato
estadual. |
Cenário |
Alexandria, Virginia (cidade em que ocorre os fatos
do filme), Colégio TC Williams (colégio em que ocorreu
obrigatoriamente a miscigenação racial, colégio do time Titãs),
Gettysburg (distrito em que ficava o cemitério). |
Atores |
Denzel Washington (treinador Herman), Will Patton (técnico
Bill Yoast), Colégio TC Williams, time Titãs, |
Relações de força |
Brancos chamavam os negros de "macacos, crioulos
e ladrões"; técnico negro sofre preconceito; para os negros o
treinador era herói; técnico Herman exigia respeito entre jogadores;
capitão do time branco defendeu jogador negro. |
Articulação
entre estrutura e conjuntura |
A cidade de Alexandria, Virginia passava por
conflitos entre negros e brancos. Até 1971 não havia miscigenação
racial, até que a junta de educação forçou a integração, juntando
um colégio de brancos e negros em um só. |
Notas: Dados trabalhados pelos autores
Duelo de Titãs conseguiu transmitir que o esporte pode unir raças, pode mudar a realidade vivida e pensamentos que estavam enraizados.
O racismo se apresentou em palavras como "macacos, crioulo e ladrão". Para os negros Herman era herói e para os brancos aberração, sofrendo atentados em sua casa. A entrada ao estádio não era separada, mas as torcidas optavam por não se misturarem.
Duelo de Titãs levantou a denúncia de um racismo institucional onde abordou que se pensava que os principais técnicos eram brancos e não negros.
No Quadro 4 destaca-se o filme Invictus.
Quadro 4. Filme Invictus, mostra a realidade social que a África do Sul
Nome da obra |
Invictus |
Acontecimento |
Nelson Mandela, presidente da África do Sul, levou o
time desacreditado a ganhar a Copa do Mundo de Rugby de 1995. Promoveu a
reconciliação racial causada pelo Apartheid
através do esporte. |
Cenário |
África do Sul (local em que ocorre o enredo do
filme), estádio (local em que o time da África do Sul perdeu para
Inglaterra), Ellis Park, em Johannesburgo (local da final da copa do
mundo de Rugby), mídia, prisão. |
Atores |
Morgan Porterfield Freeman (Nelson Mandela); seguranças
Britânicos e Africanos; Rugby; Matt Damon (François Pienaar capitão do time). |
Relações de força |
A torcida jogava objetos em Nelson Mandela; mídia
criticava o time Africano; os negros não apoiavam o time que na visão
deles submetia o Apartheid. |
Articulação
entre estrutura e conjuntura |
A África do Sul tinha acabado de passar pelo fim do Apartheid.
O país ainda vivia as consequências do movimento, onde os negros ainda
não confiavam nos brancos. |
Notas: Dados trabalhados pelos autores
No ano de 1994, Nelson Mandela assumiu a presidência da África do Sul e em 1995 ganhou a Copa Mundial de Rugby com o time Springboks. Mandela enxergou no esporte um meio de unir o país que vivia as marcas da segregação racial.
Na África do Sul, durante 1948 e 1994 o regime político era o Apartheid, que significa “separação”. O objetivo era privilegiar a minoria branca reprimindo os negros, que não podiam circular livremente pelo país, não tinham acesso a serviços básicos, não tinham direitos e sofriam extrema violência. Esse regime se estabeleceu em 1948, quando o partido de extrema-direita chamado Partido Nacional conquistou o maior número de assentos parlamentares.
Formaram-se alguns movimentos de resistência contra o regime, entre eles o Congresso Nacional Africano cujo qual Nelson Mandela fazia parte. Ele foi um dos poucos negros privilegiados da época a ter acesso aos estudos em boas escolas e ainda conseguiu se graduar em uma universidade, tornando-se advogado. Mandela era resistente por meio da desobediência civil, o que ocasionou sua primeira prisão em 1962, pois incentivou greves e viajou ao exterior sem autorização.
Em 1964 participou de movimentos armados e foi condenado a prisão perpetua passando 27 anos preso. Sua liberdade veio somente após o fim do Apartheid em 1990, quando o presidente Frederik de Klerk decretou fim a segregação racial. Em relação ao racismo, nesta obra conseguimos observar que os negros e brancos se misturam nas torcidas, o que ainda não tínhamos visto nos filmes analisados anteriormente.
Esse cenário de racismo institucional na África do Sul tem raízes nas teorias racialistas do século XIX. Após a publicação de A Origem das Espécies, de Charles Darwin, tanto a teoria monogenista quanto a poligenista passaram a incorporar uma perspectiva evolucionista, perpetuando a ideia de hierarquização das "raças" em níveis de desenvolvimento mental e moral, conforme Schwarcz (1993). Essa hierarquização justificava a dominação racial e a segregação, presente tanto na colonização das Américas quanto na África, e em teorias como a eugenia, formulada por Francis Galton, que defendia a "pureza racial" branca e impunha restrições a grupos considerados “indesejáveis”. (Schwarcz, 1993)
A ideologia racialista também influenciou o Brasil. O governo promovia a "ideologia do branqueamento", que visava "purificar" a população por meio da miscigenação com imigrantes europeus, sob a justificativa de que características brancas prevaleceriam. Como analisa Carone (2002), essa ideia derivava de um “darwinismo social” que apostava na vitória do elemento branco sobre o negro e associava o sucesso social ao padrão europeu. A elite dominante brasileira incentivou a imigração europeia e proibiu a de africanos e asiáticos, esperando que a "raça branca" predominasse na sociedade pós-escravidão (Munanga, 2004, Hofbauer, 2006, Gonzalez, 2020).
No Quadro 5 destaca -se, o documentário Outraged (2022).
Quadro 5. Documentário Outraged, trata de casos de discriminação e racismo na Europa
Nome da obra |
Outraged |
Acontecimento |
Exposição de racismo, preconceito de gênero,
homofobia e xenofobia na Europa. |
Cenário |
Europa (continente), Inglaterra, País de Gales, Itália,
Reino Unido (Países onde ocorreram os fatos mostrados no documentário). |
Atores |
Afro Napoli United (Equipe de futebol), Aleksander
Ceferin (Presidente da UEFA), Antonio Gargiulo (Jogador de futebol e
presidente do Afro Napoli United), Didier Deschamps (Técnico e ex
futebolista francês), Dejan Lovren (Jogador de futebol Croata), Frank
Lampard (Treinador e ex-futebolista inglês), Guram Kashia (Jogador de
futebol Georgiano), Helena Costa ( Treinadora de futebol portuguesa),
Hope Powell (Ex-futebolista inglesa e gerente da primeira equipe
feminina de Brighton e Hove Albion), entre outros. |
Relações de força |
Torcedores xingando os jogadores de macacos;
torcedores jogando bananas no campo; torcedores xingando jogadores com
palavras agressivas devido orientação sexual; jogadores com medo de
assumirem sua orientação sexual devido a medo; jogadores refugiados
sofrendo preconceitos de torcedores devido a xenofobia. |
Articulação
entre estrutura e conjuntura |
O documentário retrata o ano de 2021 em que o cenário
atual do mundo era uma pandemia. A economia da Europa vinha se
recuperando e no cenário do esporte os jogos tinham começado a receber
torcedores devido a vacinação, contribuindo com lucros dos clubes. |
Notas: Dados trabalhados pelos autores
De acordo com a pesquisa do Observatório da Discriminação Racial no Futebol (2019), a palavra que aparece de forma unânime como forma de discriminar os jogadores negros, é “macaco”; além desta, as palavras que apresentaram o maior número de ocorrências são “macacada” e “tição”, seguidas da expressão “nêgo burro”.
O Observatório da Discriminação Racial no Futebol brasileiro mostrou que em 2019 tivemos 56 casos de suspeita de atitudes racistas, em 2018 ocorreram 44 casos, em 2017 foram 43 e em 2016, 25 denúncias foram reportadas na mídia. Percebe-se que de 2016 a 2019 houve um crescimento absurdo de denúncias. Segundo o diretor do Observatório Racial do Futebol, Marcelo Carvalho, a quantidade de ocorrências cresce anualmente em função da “maior consciência dos torcedores, que agora estão denunciando mais”.
O documentário Outraged mostrou que no esporte Europeu também houve um aumento de casos racistas ou preconceituosos. A jogadora norte americana Megan Rapinoe, vencedora da Bota e da Bola de ouro na premiação da FIFA de 2019, afirma que antes de Donald Trump era mais inaceitável dizer ou ouvir coisas racistas. Dessa maneira, instiga o telespectador a refletir se os representantes mundiais, ou pessoas influentes tem influência na conduta da sociedade. Infelizmente, o racismo no esporte não tem ficado somente em palavras, mas também tem resultado em ações mais assustadoras como as de torcedores jogarem cascas de banana no campo. (Silva, 2020)
Uma das questões denunciadas foi que há pouca representatividade negra em cargos de alto poder, novamente podendo ser um racismo institucional. Por fim, outra questão abordada que faz o telespectador refletir é que as punições muitas das vezes não são aplicadas ou se são aplicadas, são muitas das vezes consideradas fracas e é por este motivo que os atos racistas não conseguem ser combatidos dentro do esporte.
Conclusão
Ao analisar os filmes e o documentário, foi observado que, mesmo em diferentes épocas e modalidades esportivas, as obras compartilham memórias em comum. É relevante destacar que a escolha dos filmes Race, História de uma lenda, Duelo de Titãs buscou uma análise comparativa do racismo no esporte moderno em sociedades estrangeiras. No entanto, é essencial reconhecer possíveis fragilidades ao abordar contextos europeus e americanos, influenciados por narrativas culturais específicas. A delimitação espacial em situações brasileiras busca identificar lições para combater o racismo no esporte nacional, adaptando experiências dos filmes à realidade brasileira, visando promover um ambiente esportivo mais inclusivo e igualitário.
Nesse sentido os quadros sociais desempenham um papel fundamental na compreensão do presente, passado e futuro, influenciando a percepção por meio das preocupações individuais inseridas nas relações sociais e nos grupos sociais. Essa abordagem sociológica da memória social permite entender não apenas a identidade e as opiniões individuais, mas também os grupos de referência e a sociedade em que vivemos. A memória é reconstruída e enquadrada simultaneamente, e qualquer atividade humana pode ser utilizada para analisar a sociedade no campo de estudos da memória social. No contexto dos filmes analisados e até mesmo no documentário, a memória social revelou a persistência de insultos racistas contra pessoas negras, como o uso do termo "macacos".
Além disso, houve retratos de segregação nas torcidas, com brancos e negros separados nos filmes Race, A história de uma lenda e Duelo de Titãs. Ainda, de atitudes distintas em relação aos heróis negros. Os filmes também compartilham a memória de ameaças enfrentadas por personagens negros e a necessidade de aceitar a miscigenação racial nos times. Em alguns casos, o esporte foi capaz de unir sociedades divididas pela segregação racial, como retratado em Duelo de Titãs e Invictus. No entanto, é importante ressaltar que a memória social pode tanto contribuir para superar traumas históricos relacionados ao racismo quanto perpetuar estereótipos e preconceitos. Infelizmente, o racismo ainda persiste no esporte e na sociedade em geral, e casos têm sido registrados com aumento, possivelmente devido à cultura da denúncia. Diferentes formas de racismo foram identificadas, principalmente a presença do racismo estrutural, mas o racismo individual e institucional também se faz presentes.
Referências
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