ISSN 1514-3465
A Teoria Histórico-Cultural como referência em
artigos da área de Educação Física: avanços e desafios
The Historical-Cultural Theory as Reference in Articles of Physical Education Area: Advances and Challenges
La Teoría Histórico-Cultural como referente en artículos del área de Educación Física: avances y desafíos
Otoniel Rodrigues dos Santos Filho
tonirsf@yahoo.com.br
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal de São Carlos (PPGE/UFSCar)
Mestre em Educação Escolar
pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP)
Licenciado
em Educação Física pela UFSCar
Integrante do grupo de pesquisa "Docência, Estágio Supervisionado
e
Formação de Professores em Educação Física" (DEFEF/UFSCar)
Supervisor de Ensino e Professor de Educação Física em São Carlos/SP
(Brasil)
Recepción: 23/10/2023 - Aceptación: 14/04/2024
1ª Revisión: 17/03/2024 - 2ª Revisión: 08/04/2024
Documento acessível. Lei N° 26.653. WCAG 2.0
Este trabalho está sob uma licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0) https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/deed.pt |
Cita sugerida:
Santos Filho, O.R. dos (2024). A Teoria Histórico-Cultural como referência em artigos da área de Educação Física: avanços e desafios. Lecturas: Educación Física y Deportes, 29(312), 2-13. https://doi.org/10.46642/efd.v29i312.7287
Resumo
Introdução: Publicado no ano de 2011 na revista Movimento, o trabalho intitulado “Apropriação dos conceitos de Lev Semenovitch Vygotski no âmbito das pesquisas em Educação Física” teve como objetivo analisar a apropriação dos conceitos de Vygotski em trabalhos da área de Educação Física publicados em revistas científicas de 1990 a 2007. Objetivo: o presente trabalho teve como objetivo dar continuidade às análises da apropriação dos conceitos de Vygotski em trabalhos da área de Educação Física publicados em revistas científicas da área após 2007. Metodologia: Foi realizado um estudo comparativo entre os resultados e análises feitas pelas autoras e os novos dados descobertos, a fim de mostrar em que ponto a apropriação dos conceitos de Vygotski em artigos da área de Educação Física se manteve como estava, em que ponto avançou e onde ainda precisa avançar. Além disso, também foram acrescentados os conceitos de “função psíquica” e “zona de desenvolvimento” como categorias de análise. Conclusões: Após esta análise, pode-se perceber avanços no que diz respeito aos tópicos analisados e comparados com o artigo publicado em 2011, o que significa um ponto positivo para a área no sentido de uma Educação Física crítica e empenhada com o verdadeiro desenvolvimento humano.
Unitermos:
Teoria Histórico-Cultural. Vygotski. Educação Física.
Abstract
Introduction: Published in 2011 at the journal Movimento, the paper entitled "Appropriation of the Lev Semenovitch Vygotski's concepts in the Physical Education area" aimed to analyze the appropriation of Vygotski’s concepts in papers of the Physical Education area published in scientific journals from 1990 to 2007. Goals: Thus, this article goal is to provide continuity to the analysis of the appropriation of Vygotski’s concepts in papers of Physical Education area published in scientific journals after 2007. Methodology: Comparing our results and analyzes with the ones made by the authors, in order to show in which point the appropriation of Vygotski’s concepts in articles of the Physical Education area remained as it was, at what point it advanced and where it still needs to move forward. To this end, we also added the concepts of "psychic function" and "development zone" as categories for analysis. Conclusion: After this analysis, we were able to verify some advances when compared to the results found in the 2011 article, which means a progress in direction to the establishment of a critical and committed to true human development Physical Education area.
Keywords
: Historical-Cultural Theory. Vygotski. Physical Education.
Resumen
Introducción: Publicado en 2011 en la revista Movimento, el trabajo titulado “Apropiación de los conceptos de Lev Semenovitch Vygotski en el ámbito de la investigación en Educación Física” tuvo como objetivo analizar la apropiación de los conceptos de Vygotski en trabajos del área de Educación Física publicados en revistas científicas desde 1990 a 2007. Objetivo: el presente trabajo tuvo como objetivo continuar el análisis de la apropiación de los conceptos de Vygotski en trabajos del área de Educación Física publicados en revistas científicas del área después de 2007. Metodología: Se realizó un estudio comparativo entre los resultados y análisis realizados por los autores y los nuevos datos descubiertos, con el fin de mostrar en qué punto la apropiación de los conceptos de Vygotski en artículos del área de Educación Física se mantuvo como estaba, en qué punto avanzó y hacia dónde todavía falta avanzar. Además, también se agregaron como categorías de análisis los conceptos de “función psíquica” y “zona de desarrollo”. Conclusiones: Luego de este análisis, se pueden apreciar avances respecto a los temas analizados y comparados con el artículo publicado en 2011, lo que significa un punto positivo para el área en el sentido de una Educación Física crítica y comprometida con el verdadero desarrollo humano.
Palabras clave
: Teoría Histórico-Cultural. Vygotski. Educación Física.
Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 29, Núm. 312, May. (2024)
Introdução
Em meados da década de 1980 pode-se perceber, a partir de grandes mudanças em diversos âmbitos da sociedade, inclusive na área educacional, o aumento da circulação de ideias de vários referenciais teóricos com vistas à melhoria da prática pedagógica e, dentre elas, as ideias de Vygotski que, aos poucos, foi se difundindo pelo ideário educacional brasileiro (Silva, 2003). “Na década de 1990 as ideias de Vygotski foram amplamente divulgadas em pesquisas na área da Psicologia e da Educação e, aos poucos, suas obras foram sendo traduzidas para o português” (Silva, 2003, p. 4). Nesse processo, o interesse pelos estudos de Vygotski aumentou e diversos autores se dedicaram ao estudo da obra vygotskiana, influenciando as mais diversas áreas do conhecimento, especificamente da educação, dentre elas também a Educação Física (escolar).
Publicado no ano de 2011 na revista Movimento, o trabalho de Seron, Barbosa-Rinaldi, e Tuleski (2011) intitulado “Apropriação dos conceitos de Lev Semenovitch Vygotski no âmbito das pesquisas em Educação Física” teve como objetivo analisar a apropriação dos conceitos de Vygotski em trabalhos da área de Educação Física publicados em revistas científicas da área de 1990 a 2007. As categorias analisadas pelas autoras foram: as obras de Vygotski que foram utilizadas como referência nos artigos analisados; a porcentagem de citações dessas obras nesses artigos; autores da psicologia histórico-cultural utilizados como referências; apropriação do conceito “zona de desenvolvimento proximal”; a questão “social” em Vygotski; entendimento da obra de Vygotski enquanto fundadora de uma psicologia marxista; e a aproximação das ideias de Vygotski com ideias que se contrapõem à sua teoria.
No presente trabalho, objetivou-se dar continuidade às análises da apropriação dos conceitos de Vygotski em trabalhos da área de Educação Física publicados em revistas científicas da área nos anos subsequentes à finalização e publicação do artigo citado. Para tal, foi feito um levantamento de artigos referentes à temática publicados nas principais revistas de divulgação científica da área (Motriz, Movimento, Pensar a prática, Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Revista da Educação Física da UEM, Motrivivência) com a palavra-chave “histórico-cultural”. Foram encontrados e selecionados quatro artigos destas revistas1. Um quinto artigo foi selecionado da ABRAPEE (Revista semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional) após uma breve busca na base de dados Scielo. Assim, constituem o corpus de análise desta pesquisa Viotto Filho (2009), Nascimento, e Dantas (2009), Martineli et al. (2009), Piccolo (2010) e Miranda, e Baptista (2011), conforme Quadro 1.
Quadro 1. Artigos analisados neste trabalho
Título |
Autoria
/ Ano |
Objetivo |
Metodologia |
Sínteses
conclusivas |
Teoria histórico-cultural e suas implicações na
atuação do professor de educação física escolar |
Viotto Filho 2009 |
Introduzir as principais categorias da teoria histórico-cultural
e discutir suas implicações para o trabalho do professor de educação
física escolar |
Revisão de literatura |
A escola vygotskiana de desenvolvimento humano é
tomada como uma importante referência para se entender os estudantes no
seu processo de desenvolvimento vital e pode ajudar os professores de
educação física |
O desenvolvimento histórico-cultural da criança nas
aulas de educação física: possibilidades de trabalho a partir da
atividade principal e dos temas |
Nascimento et al. 2009 |
Análise do jogo como a atividade principal da criança
em idade pré-escolar e o tema como uma forma social de organização do
ensino. |
Pesquisa bibliográfica e análise de conceitos |
A educação física pode contribuir para o
desenvolvimento histórico-cultural das crianças, na medida em que
organiza e direciona a apropriação dos significados presentes nas
atividades da cultura corporal |
A valorização do brinquedo na teoria histórico
cultural: aproximações com a Educação Física |
Martineli et al. 2009 |
Analisar o brinquedo e o desenvolvimento infantil a
partir da Teoria Histórico-Cultural |
Pesquisa exploratória |
O brinquedo é a atividade dominante das crianças,
por isso consideramos necessário valorizá-lo no trabalho pedagógico
na educação física, como contribuição para o desenvolvimento
infantil e para o processo de humanização |
O jogo por uma perspectiva histórico-cultural |
Piccolo 2010 |
Explicar a estrutura epistemológica erigida pela
teoria histórico-cultural que permite definir o jogo protagonizado como
a atividade principal das crianças pré-escolares |
Revisão de literatura |
Ressalta a importância do jogo protagonizado, desde
que corretamente mediado, na configuração de relações sociais mais
democráticas e na apropriação de diversos conhecimentos |
A teoria histórico-cultural da atividade e a formação
das habilidades motoras no contexto do ensino vivenciado de voleibol |
Miranda
et al. 2011 |
Analisar se as aulas ministradas no Ensino Vivenciado
do Voleibol têm contribuído para a aprendizagem teórica e a formação
de habilidades motoras na perspectiva da teoria histórico-cultural da
atividade |
Análise de documentos e observação participante |
Cabe uma reflexão pormenorizada para entrelaçar
melhor os objetivos das atividades acadêmicas com o desenvolvimento
consciente das habilidades motoras por parte das crianças participantes
no processo |
Fonte: Elaborado pelo autor
Segundo Martins (2011), o principal esforço dos estudos de Vygotski foi sobre a tese do desenvolvimento social do psiquismo humano, das funções psíquicas ou processos funcionais (atenção, imaginação, percepção etc.) e que, muitas vezes, é deixada de lado por seus estudiosos da área de educação. Por isso, além das categorias de análise utilizadas pelas autoras, as quais também foram analisadas nos cinco artigos levantados, foi acrescentada mais uma: em que medida o conceito de função psíquica aparece nos artigos levantados, na verdade se ele aparece e como, a fim de avançar na discussão sobre a teoria histórico-cultural como referência para a Educação Física.
Metodologicamente foi realizado um estudo comparativo entre os resultados e análises feitas pelas autoras e os novos dados descobertos, a fim de mostrar em que ponto a apropriação dos conceitos de Vygotski em artigos da área de Educação Física se manteve como estava, em que ponto avançou e onde ainda precisa avançar.
Vygotski nos estudos da Educação Física
Sobre as referências de Vygotski utilizadas no Brasil, mais especificamente nos trabalhos da área de Educação Física, Seron, Barbosa-Rinaldi, e Tuleski (2011) destacam que os livros A Formação Social da Mente (Vygotski, 1991) e Pensamento e Linguagem (Vygotski, 2008) correspondem a 44,34% e 16,3%, respectivamente, das citações dos trabalhos analisados. No presente estudo, constatou-se que o livro A Formação Social da Mente (Vygotski, 1991) aparece como referência em dois dos cinco artigos e esta obra corresponde a 14,89% das citações desses artigos. Já o livro Pensamento e Linguagem (Vygotski, 2008) aparece como referência em apenas um artigo e em termos de citações corresponde a um total de 3,84% destas no artigo em questão. A crítica que se faz ao uso destes livros como referência é que eles foram, primeiramente, traduzidos para o inglês e depois para o português. Nesta tradução do inglês para o português algumas ideias originais foram retiraras e algumas modificações foram feitas, principalmente no que diz respeito à sua fundamentação em Marx. Além disso, esta é uma versão resumida que cortou mais de 60% do texto original, como explicou Duarte (2001), mais especificamente sobre Pensamento e Linguagem (Vygotski, 2008), tornando o pensamento de Vygotski menos “radical” e mais adaptável a ideias pragmáticas. Ainda sobre essas mudanças, Duarte (2001, p. 170) ressalta que tais mudanças podem ter “(...) facilitado a aceitação do livro de Vygotski, posto que tornaram o texto mais facilmente interpretável à luz de concepções não-marxistas do ser humano, da história e das relações entre indivíduo e sociedade”.
Percebe-se uma considerável diminuição das citações dessas obras, que não são fidedignas ao pensamento vygotskiano, nos trabalhos da área de Educação Física, neste período após 2007. Considera-se como um certo avanço para a área, avanço este vinculado à divulgação, cada vez maior, de estudos críticos da obra e pensamento de Vygotski por estudiosos que se dedicam a explicitar com uma maior fidedignidade e objetividade as ideias de Vygotski no Brasil, como é o caso dos professores Newton Duarte e Lígia Márcia Martins, que também aparecem como referências em dois dos cinco artigos analisados.
Concomitantemente a este processo de divulgação da crítica e ampliação dos estudos fidedignos de Vygotski no Brasil, tem-se também uma maior publicação e divulgação de obras que são consideradas mais coerentes com o pensamento vygotskiano, como é o caso das Obras Escogidas (Vygotski, 1995). Segundo Tuleski (2008) as obras que mais se mantiveram fiéis ao original russo foram as traduções espanholas. É possível perceber que as Obras Escogidas (Vygotski, 1995) aparecem como referência principal em quatro dos cinco artigos analisados. Além disso, a nova edição de Pensamento e Linguagem, A Construção do Pensamento e da Linguagem (Vygotski, 2001), cuja tradução foi realizada diretamente do original em russo, aparece como referência em dois dos artigos pesquisados. Ou seja, se no estudo realizado por Seron, Barbosa-Rinaldi, e Tuleski (2011) no qual as referências majoritárias de Vygotski são Pensamento e Linguagem (Vygotski, 2008) e A Formação Social da Mente (Vygotski, 1991), sendo que as Obras Escogidas (Vygotski, 1995) e A Construção do Pensamento e da Linguagem (Vygotski, 2001) quase não são utilizadas, o que a faz questionar por este motivo e, com total propriedade, os conceitos de Vygotski e seu entendimento nos trabalhos por elas analisados. No presente trabalho, nesse sentido, constatou-se um certo desenvolvimento positivo, pois, pode-se perceber um recuo das obras consideradas “adulterações” do pensamento de Vygotski como referências e um crescimento das referências a obras consideradas mais “fiéis” as ideias de Vygotski, como elucidado acima.
Dando continuidade às análises, constatou-se também a complementação das referências nesses artigos com referências às obras/trabalhos de autores que também foram fundadores e/ou seguidores da Teoria Histórico-Cultural, tais quais Lúria, Leontiev, Elkonin, Plekhanov, Davídov e Zaporozhets, dentre outros, aparecem nas referências e citações de quase todos os artigos, exceto um. Fato que pode contribuir e apontar para uma maior compreensão, ou um caminho para tal, dos conceitos originalmente formulados por Vygotski e seus colaboradores.
O conceito “Zona de desenvolvimento proximal” (próximo, potencial) de Vygotski parece ser, como aponta Martins (2011, p. 223), “uma das ideias mais difundidas desse autor no ideário pedagógico brasileiro”. E Duarte (1999) mostra que houve, e ainda há, um grande mal-entendido sobre as ideias que envolvem este conceito tão importante. Para exemplificar, Seron, Barbosa-Rinaldi, e Tuleski (2011) destacam a presença deste conceito em quase todos os trabalhos por elas analisados, sendo que em muitos deles foram encontrados equívocos de interpretação. As referidas autoras mostram que o equívoco de interpretação diz respeito aos autores apresentarem três zonas de desenvolvimento, quando abordam sobre a zona de desenvolvimento proximal (Seron, Barbosa-Rinaldi, e Tuleski, 2011). Duarte (1999), ao analisar interpretações equivocadas de autores brasileiros que entendiam a existência de três conceitos relacionados à zona de desenvolvimento proximal faz a seguinte crítica: “O fato é que em Vygotski existem apenas dois conceitos: um refere-se àquilo que a criança faz sozinha e o outro refere-se àquilo que ela faz com a colaboração de outras pessoas, especialmente imitando os adultos. Não há lugar para um terceiro conceito”. (Duarte, 1999, p. 100)
O autor supracitado ainda explica, em outro texto, que zona de desenvolvimento proximal e potencial trata-se do mesmo conceito, o que ocorre é que as traduções “editadas” das obras de Vygotski, que chegaram ao Brasil na década de 1990, contribuíram para a má interpretação do autor. (Duarte, 2001)
Ainda sobre o conceito das “zonas de desenvolvimento” em Vygotski e a título de esclarecimento e atualização, considera-se interessante citar o trabalho de Zoia Ribeiro Prestes (2010), que teve como objetivo analisar as traduções e interpretações dos conceitos vygotskianos para o português e os equívocos a que se chegaram com as más traduções, interpretações e/ou deturpações desses conceitos. A autora apresenta uma nova nomenclatura, mais fidedigna tanto à tradução quanto à coerência com o conceito, são eles: nível de desenvolvimento atual e zona de desenvolvimento iminente (Prestes, 2010), termos estes já utilizados por estudiosos de Vygotski em trabalhos mais recentes, como é o caso da tese de livre docência da professora Lígia Martins (2011).
Neste trabalho, fazendo uma contraposição a Seron, Barbosa-Rinaldi, e Tuleski (2011), notou-se que o conceito “zona de desenvolvimento potencial” aparece em todos os trabalhos analisados, com variações do adjetivo “potencial” para “próximo” ou “proximal”, porém, com o mesmo entendimento sobre o conceito. Já o conceito “nível de desenvolvimento real” aparece em dois dos trabalhos analisados. Importante destacar que nas análises feitas aparecem apenas esses dois conceitos, e não três, como constatado em diversos trabalhos pelas referidas autoras acima. Fato este que também pode ser apontado e entendido como um progresso no que diz respeito à utilização da obra de Vygotski como referência em trabalhos da área de Educação Física.
Sobre a questão “social” em Vygotski, no trabalho de Seron, Barbosa-Rinaldi, e Tuleski (2011) foi percebido “que a referência ao meio social foi mal interpretada e por vezes simplificada, relegando-a simplesmente às relações cotidianas com os pais, a família ou os professores” (Seron, Barbosa-Rinaldi, e Tuleski, 2011, p. 9). No presente estudo não foram constatadas tais características relacionadas a esta ideia, haja vista que se percebeu o entendimento do “social” relacionado a uma segunda natureza humana, à superação por incorporação da natureza biológica, destarte, corroborando com a asserção Lukácsiana, explicada por Lessa (1997), a qual o Ser Social é uma totalidade, um complexo de complexos “criado” a partir do trabalho e, acrescenta Leontiev (1978), da linguagem. Ademais, constatou-se que em quatro dos cinco artigos a teoria histórico-cultural é entendida como uma psicologia de bases marxistas, ou seja, de bases materialistas históricas e dialéticas, e há uma contextualização explícita nesses trabalhos sobre este entendimento da teoria vygotskiana.
Ainda que essa visão marxista da psicologia histórico-cultural não isente, por si só, incoerências ou equívocos relacionados a diversos conceitos, visto que é uma teoria que ainda está em processo de busca e objetivação de suas verdades históricas, isso já é um grande passo no sentido da superação de tais incoerências ou equívocos, o que corrobora com uma das hipóteses de Duarte (1999) sobre uma leitura pedagógica dos trabalhos da escola de Vygotski, qual seja: “para se compreender o pensamento de Vygotski e sua escola, é indispensável o estudo dos fundamentos filosóficos marxistas dessa escola psicológica”. (Duarte, 1999, p. 78)
Não foram encontrados neste trabalho a aproximação das ideias de Vygotski com outros autores que não fossem os da própria psicologia histórico-cultural, fato que se contrapõe ao estudo de Seron, Barbosa-Rinaldi, e Tuleski (2011), no qual as ideias de Vygotski foram aproximadas a autores como Piaget, Wallon, Kant, Freire, Negrine, entre outros, como também fica claro no trabalho de Almeida, e Martineli (2018).
Segundo Martins (2011),
“A dedicação de Vygotski e de demais psicólogos a ele vinculados, a exemplo de Leontiev e Luria, aos estudos dos aspectos que realmente diferenciam os psiquismos humano e dos demais animais colocou no cerne da questão o desenvolvimento de propriedades cuja formação subjuga-se a apropriação da cultura. Considera-se também que, não por acaso, Vygotski, juntamente com Leontiev e Luria, defenderam que o estudo do desenvolvimento social do psiquismo humano fosse o verdadeiro objeto da psicologia científica”. (Martins, 2011, p. 8)
Percebe-se com esta citação que a tese mais importante para Vygotski, e que foi defendida por ele juntamente com Leontiev e Luria, era a do desenvolvimento social do psiquismo humano. Psiquismo humano entendido, como explica Martins (2011), como unidade matéria-ideia, sendo ele o responsável pela formação da imagem subjetiva da realidade objetiva. Complementando que a formação dos processos psíquicos enquanto funções do psiquismo humano, quais sejam: sensação, percepção, atenção, memória, linguagem, pensamento e imaginação2, corroboram para o desenvolvimento, formação e expressão da consciência, do autodomínio da conduta e de comportamentos complexos culturalmente formados. Portanto, é possível falar em qualidades e níveis de consciência, sendo que esta é produto de complexificação psíquica dos processos funcionais citados acima. A autora em sua tese ainda defende a relação entre a educação escolar e o desenvolvimento dos processos funcionais, ao incumbir à educação escolar a possibilidade real de responsabilizar-se em potencializar o desenvolvimento de tais funções ao trabalhar incidindo sobre a zona de desenvolvimento iminente (Martins, 2011), conceito de Vygotski amplamente difundido e brevemente discutido neste texto.
Tendo em vista o parágrafo acima que reforça a importância do desenvolvimento dos processos funcionais em contato com a cultura, acredita-se ainda existir uma lacuna na área da Educação Física que, ao tratar de Vygotski e da teoria histórico-cultural, pouco se fala nos processos funcionais. Marques Junior (2012) e Silva (2016) trazem os conceitos dos processos funcionais e os relaciona à Educação Física escolar, trazendo contribuições para a área, porém, ainda são poucos os trabalhos como estes, o que caracteriza uma carência da área. Não foi objetivo deste trabalho analisar trabalhos da área de educação física que tratem especificamente dos processos funcionais, mas, nos trabalhos analisados neste estudo, em quatro dos cinco artigos analisados aparecem referências aos processos funcionais, variando a nomenclatura (funções psicológicas superiores, faculdades superiores, funções superiores, funções psíquicas superiores, qualidades psíquicas), porém, nesses quatro artigos não há nenhum aprofundamento da relação direta entre a Educação Física escolar e o desenvolvimento dos processos funcionais, relação esta que acredita-se ser de fundamental importância e relevância para se pensar uma educação física que supere a compreensão biológica de desenvolvimento e contribua para o desenvolvimento histórico-cultural dos indivíduos. Aponta-se, desta forma, que há possibilidades e desafios concretos para que futuros trabalhos sejam desenvolvidos nesse escopo.
Conclusões
Após estas análises, foram levantados pontos que ainda precisam ser investigados para que a obra de Vygotski, enquanto uma teoria que explica o desenvolvimento (do psiquismo) humano em bases materialistas históricas e dialéticas, possa contribuir ainda mais para a área da Educação Física e, mais especificamente, para com a Educação Física escolar, seja para com as abordagens pedagógicas da Educação Física, seja para com as metodologias de ensino, seja para com a própria produção do conhecimento em Educação Física.
Ao concluir este trabalho pode-se fazer um balanço, ainda que provisório, mesmo que possua um potencial generalizador, sobre alguns pontos analisados. Todas as análises feitas, exceto a última que trata das funções psíquicas, foram análises comparativas com o trabalho de Seron, Barbosa-Rinaldi, e Tuleski (2011), a fim de verificar em que medida os trabalhos da área de Educação Física que utilizam o referencial da teoria histórico-cultural avançaram na apropriação de seus conceitos.
Conforme já apontado, pode-se perceber alguns avanços no que diz respeito aos pontos analisados. Em primeiro, sobre as obras de Vygotski utilizadas como referências nos artigos, pois constatou-se uma diminuição das obras consideradas mal interpretadas/traduzidas tanto como referência como em porcentagem de citações, ao passo que obras consideradas mais fidedignas às ideias de Vygotski, como as Obras Escogidas (Vygotski, 1995), estão sendo mais utilizadas. Em segundo, sobre outros autores da psicologia histórico-cultural também aparecem como referências e citações em quatro dos cinco artigos analisados, bem como não são feitas aproximações das ideias de Vygotski com autores e referenciais de matrizes epistemológicas diferentes. Em terceiro, sobre o conceito de “zona de desenvolvimento proximal”, o qual não se percebeu equívocos de interpretação bem como constatou-se a presença e entendimento de apenas dois conceitos. Em quarto, sobre a questão “social” em Vygotski, a qual não apresentou incoerência com os fundamentos marxistas que sustentam esse termo. E, em quinto, sobre o entendimento e contextualização explícita em quatro dos cinco trabalhos analisados sobre a fundamentação marxista, ou seja, materialista histórica e dialética da teoria vygotskiana.
Neste estudo também foram incluídos dois elementos de análise que podem servir como contribuição e/ou indicação para que maiores estudos sejam feitos. O primeiro deles diz respeito ao destaque que foi dado à atualização da nomenclatura dos conceitos de nível de desenvolvimento atual e zona de desenvolvimento iminente, conforme apresentados por Prestes (2010) e Martins (2011). O segundo diz respeito à análise sobre a presença dos conceitos relacionados às funções psíquicas, ou como apropriado por Martins (2011), processos funcionais. Percebe-se que são conceitos que foram pouco abordados, o que constitui uma carência, necessitando assim de estudos que aprofundem esse conceito e o relacionem à Educação Física, dada a importância que Vygotski, Luria e Leontiev dispensaram ao estudo do desenvolvimento desses processos.
Destarte, ainda que se reconheça as limitações deste trabalho, espera-se ter contribuído para que futuros trabalhos da área de Educação Física avancem ainda mais no sentido de apropriações mais fidedignas da teoria histórico-cultural, bem como tragam outros conceitos de Vygotski e seus seguidores para dar suporte à sua prática, para assim avançar rumo a uma Educação Física que seja embasada em fundamentos materialistas, históricos e dialéticos.
Notas
Não significa que foi encontrado um artigo em cada revista. Em uma revista, por exemplo, foram encontrados dois artigos, sendo que em algumas não foi encontrado nenhum.
Para aprofundamento, sugere-se a leitura de Martins, L. M. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. 2011. 249p. Tese (Livre-Docência) - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Bauru.
Referências
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Duarte, N. (2001). Vygotski e o "aprender a aprender": crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vygotskiana (2ª ed.). Autores Associados.
Leontiev, A.N. (1978). Desenvolvimento do psiquismo. Livros Horizonte.
Lessa, S. (1997). A ontologia de Lukács (2ª ed.). EDUFAL.
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Martins, L.M. (2011). O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico cultural e da pedagogia histórico-crítica [Tese de Livre-Docência. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”]. https://doi.org/10.1590/S1414-32832012000100025
Miranda, M.J., e Baptista, T.J.R. (2011). A teoria histórico-cultural da atividade e a formação das habilidades motoras no contexto do ensino vivenciado de voleibol. Motrivivência. 37, 200-219. https://doi.org/10.5007/2175-8042.2011v23n37p200
Nascimento, C.P., e Dantas, L.D.P.B.T. (2009). O desenvolvimento histórico-cultural da criança nas aulas de educação física: possibilidades de trabalho a partir da atividade principal e dos temas. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 31(1), 147-161. http://revista.cbce.org.br/index.php/RBCE/article/view/640
Piccolo, G.M. (2010). O jogo por uma perspectiva histórico-cultural. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 31(2), 187-202. http://revista.cbce.org.br/index.php/RBCE/article/view/297
Prestes, Z.R. (2010). Quando não é quase a mesma coisa. Análise de traduções de Lev Semionovitch Vygotski no Brasil: Repercussões no campo educacional [Tese de Doutorado. Universidade de Brasília]. http://repositorio2.unb.br/jspui/handle/10482/9123
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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 29, Núm. 312, May. (2024)