ISSN 1514-3465
Especialização esportiva precoce: considerações e reflexões sobre o tema
Early Sports Specialization: Considerations and Reflections on the Topic
Especialización deportiva temprana: consideraciones y reflexiones sobre el tema
Henrique Santa Capita Cerqueira
*Cristina Shintani
**Fabiana Carvalho
+Marcos Corrêa Júnior
++
*Mestre e Doutor em Ciências da Saúde pela FMRP - USP
(Programa de Pós-Graduação em Saúde da Criança e do Adolescente,
do Departamento de Puericultura e Pediatria).
Licenciado e Bacharel em Educação Física
pelo Centro Universitário Moura Lacerda.
Graduado em Biologia pela Universidade Cruzeiro do Sul
Graduado em Pedagogia pela Universidade Nove de Julho
Graduado em Nutrição pela Universidade Estácio de Sá
Pós-graduado em Treinamento Esportivo pela EEFERP - USP Ribeirão Preto
Pós-graduado em Nutrição Estética e Esportiva
pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais
Pós-graduado em Personal Training pela EEFERP - USP Ribeirão Preto
Pós-Graduado em Nutrição Esportiva e Obesidade (FMRP - USP Ribeirão Preto)
Pós-graduado em Aprendizagem Motora pela EEFE - USP
Pós-Graduado em Tecnologia na Educação, Ensino Híbrido
e Inovação Pedagógica (Universidade Federal do Ceará - UFC)
Pós-Graduado em Nutrição Clínica (FMRP - USP Ribeirão Preto)
**Mestrado profissional em Administração (UNINOVE)
Licenciatura Plena em Educação Física pela EEFE - USP
Pós-graduada em Aprendizagem Motora pela EEFE - USP
MBA em gestão em esporte (UNINOVE)
Pós-Graduação em gestão em esporte (UNINOVE)
+Graduada em Educação Física
Pós-graduada em Aprendizagem Motora pela EEFE - USP
++Doutor em Saúde da Criança e do Adolescente
pelo departamento de Puericultura e Pediatria
da Universidade de São Paulo (USP/FMRP)
Mestre em Saúde da Criança e do Adolescente
pelo Departamento de Puericultura e Pediatria (USP/FMRP)
Bacharel em Educação Física pela UEL
Bacharel em Farmácia, habilitação Farmácia Bioquímica
pela Universidade Paulista
(Brasil)
Recepción: 06/10/2023 - Aceptación: 26/03/2024
1ª Revisión: 16/03/2024 - 2ª Revisión: 20/03/2024
Documento acessível. Lei N° 26.653. WCAG 2.0
Este trabalho está sob uma licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0) https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/deed.pt |
Cita sugerida:
Cerqueira, H.S.C., Shintani, C., Carvalho, F., e Corrêa Junior, M. (2024). Especialização esportiva precoce: considerações e reflexões sobre o tema. Lecturas: Educación Física y Deportes, 29(312), 119-130. https://doi.org/10.46642/efd.v29i312.7261
Resumo
O presente trabalho objetivou abordar questões teóricas e apresentar reflexões sobre a especialização esportiva precoce no esporte. A estratégia de busca incluiu pesquisas nas bases eletrônicas Medline/PubMed, Scopus, Scielo e Lilacs. Após a seleção das publicações pelos títulos e resumos, uma avaliação foi feita pelos pesquisadores, que determinaram de forma consensual os estudos a serem lidos na íntegra e incluídos na revisão por todos os pesquisadores. Também foram utilizados livros para suporte no entendimento da área. Como principais achados, pode-se destacar que a prática esportiva pode trazer benefícios no processo de desenvolvimento da criança e do adolescente. É uma das etapas da formação esportiva que é formada pela iniciação, especialização e alto desempenho. Durante a especialização esportiva o jovem aprofunda seus conhecimentos e capacidades. Contudo, são adotadas formas de treinamento não condizentes com as características da fase maturacional das crianças. Várias consequências negativas são observadas, como a limitação do repertório motor da criança, o risco de lesões, alterações na maturação biológica e alterações nutricionais devido ao gasto energético exacerbado. Diante dos achados da presente revisão, entende-se que o esporte é uma importante ferramenta para a descoberta e alcance do potencial atlético do indivíduo, desde que, direcionado de forma prazerosa e desafiadora, respeitando os estágios de desenvolvimento motor, cognitivo e emocional. Quanto mais tardia a especialização em relação à puberdade, maiores as chances de sucesso e permanência no esporte escolhido. Porém, características culturais das modalidades esportivas exercem forte influência no processo de desenvolvimento em busca de resultados competitivos antecipadamente.
Unitermos:
Especialização esportiva. Crianças. Esporte.
Abstract
The present work aimed to address theoretical issues and present reflections on early sports specialization in sports. The investigate strategy included research in the electronic databases. After the selection of publications based on titles and abstracts, an evaluation was conducted by the researchers, who consensually determined the studies to be read in their entirety and included in the review by all researchers. Textbooks were also used to support the understanding of the field. As main findings, it can be highlighted that sports practice can bring benefits in the development process of children and adolescents. It is one of the stages of sports education that consists of initiation, specialization, and high performance. During sports specialization, young individuals deepen their knowledge and abilities. However, training methods are often not in line with the developmental characteristics of children. Several negative consequences are observed, such as the limitation of the child's motor repertoire, the risk of injuries, changes in biological maturation, and nutritional alterations due to excessive energy expenditure. In light of the findings of this review, we understand that sports are an important tool for discovering and achieving an individual's athletic potential, as long as they are directed in an enjoyable and challenging way, respecting the stages of motor, cognitive, and emotional development. The later the specialization in relation to puberty, the greater the chances of success and permanence in the chosen sport. However, cultural characteristics of sports disciplines strongly influence the development process in pursuit of competitive results in advance.
Keywords:
Sports specialization. Children. Sport.
Resumen
El presente trabajo tuvo como objetivo abordar cuestiones teóricas y presentar reflexiones sobre la especialización deportiva temprana en el deporte. La estrategia de indagación incluyó búsquedas en bases de datos electrónicas. Luego de seleccionar publicaciones por títulos y resúmenes, se realizó una evaluación por parte de los investigadores, quienes consensuaron los estudios a ser leídos íntegramente e incluidos en la revisión. También se utilizaron libros para ayudar a comprender el fenómeno. Como principales hallazgos se destaca que la práctica de deportes puede traer beneficios al proceso de desarrollo de niños/niñas y adolescentes. Es una de las etapas de la formación deportiva que comprende iniciación, especialización y alto rendimiento. Durante la especialización deportiva, los jóvenes profundizan en sus conocimientos y habilidades. Sin embargo, se adoptan formas de formación que no se corresponden con las características de la fase madurativa de los niños. Se observan varias consecuencias negativas, como la limitación del repertorio motor del niño, el riesgo de lesiones, cambios en la maduración biológica y cambios nutricionales debido al gasto energético exacerbado. El deporte es una herramienta importante para descubrir y alcanzar el potencial atlético del individuo, siempre que sea dirigido de manera placentera y desafiante, respetando las etapas del desarrollo motor, cognitivo y emocional. Cuanto más tardía sea la especialización en relación a la pubertad, mayores serán las posibilidades de éxito y permanencia en el deporte elegido. Sin embargo, las características culturales del deporte tienen una fuerte influencia en el proceso de desarrollo en busca de resultados competitivos.
Palabras clave
: Especialización deportiva. Niños y Niñas. Deporte.
Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 29, Núm. 312, May. (2024)
Introdução
A aquisição, o desenvolvimento e o refinamento de habilidades motoras ocorrem durante todo o processo de desenvolvimento motor do ser humano. Entretanto, é durante a infância que ocorre a aquisição e desenvolvimento das habilidades motoras fundamentais, o que possibilita um avanço significativo das formas de interação com o ambiente; isso faz da infância um período sensível para a aquisição de novas habilidades. (Gallahue et al., 2013; Magill, e Anderson, 2016)
Neste período o indivíduo desenvolve condições para a combinação dessas habilidades motoras fundamentais, que resultarão em habilidades específicas; e, com isto, tomando a forma dos padrões de movimento culturalmente conhecidos. A prática esportiva bem orientada gera diversos efeitos benéficos na autoestima, percepção de competência e autoeficácia das crianças e jovens, além de promover sentimentos de realização pessoal, prazer e diversão, bem como aumento na motivação da prática esportiva em si (Côté, e Hay, 2002). Além disso, essa maior capacidade de adquirir conhecimento sobre si mesmo e o ambiente permite à criança explorar também suas capacidades cognitivas, afetivas e de interações sociais, acompanhando seu desenvolvimento maturacional; contudo, por muitas vezes o avanço nos estágios de desenvolvimento não é conduzido de forma harmoniosa. (Gallahue et al., 2013; Haibach et al., 2017; Papalia, e Feldman, 2013)
Como ressaltam Gallahue et al. (2013), observa-se que, conforme a criança avança pelos estágios de desenvolvimento motor, se faz necessário estabelecer um ambiente propício e instruções direcionadas para o desenvolvimento dos padrões fundamentais de movimento. É preciso respeitar as condições fisiológicas, morfológicas, cognitivas e emocionais para que esse processo ocorra de forma gradual e que possibilite ao indivíduo, alcançar todo o seu potencial, proporcionando autonomia e prazer por uma vida ativa. (Erickson, e Gilbert, 2013; Gallahue et al., 2013; Sullivan, 2021)
Ademais, quanto maior a variabilidade de estímulos, maior será a construção e o desenvolvimento da base motora, gerando condições favoráveis ao desenvolvimento de habilidades motoras específicas, componentes das modalidades esportivas e padrões de movimento culturalmente conhecidos; assim sendo, o foco do desenvolvimento motor da infância deve ser o desenvolvimento da chamada “competência motora básica” através de em uma ampla gama de habilidades e situações de movimento (Gallahue et al., 2013). Infelizmente, até os dias atuais ainda ocorre o inverso: trabalho com jovens contemplando uma baixa variedade de experiências motoras e, desde cedo, focando no aprofundamento de um número reduzido de habilidades (Erickson, e Gilbert, 2013; Güllich et al., 2021; Morais et al., 2021). Este fenômeno é conhecido como especialização esportiva precoce. (Mosher et al., 2020)
Apesar da robusta literatura sobre o processo de desenvolvimento motor e suas relações com o processo de aprendizagem motora, observam-se nas práticas adotadas na formação de jovens atletas, exemplos recorrentes da chamada especialização esportiva precoce. Tal fenômeno é recorrente, ultrapassa fronteiras regionais e é observado nas mais diversas modalidades esportivas (Güllich et al., 2021; Morais et al., 2021). Além de limitar a aquisição e o desenvolvimento de um repertório motor adequado, a especialização esportiva precoce ainda pode causar diversos impactos físicos, sociais, e psicológicos, e, em muitos casos, acarretando problemas como lesões e abandono da prática esportiva, por exemplo. (Achour Junior, e Gomes, 2015; Silva, e Ulbrich, 2011; Erickson, e Gilbert, 2013; Severino et al., 2014; Walters et al., 2018)
Assim sendo, o presente trabalho trata-se de uma revisão narrativa, que tem como objetivo, abordar questões teóricas e apresentar reflexões sobre as causas e efeitos envolvidos na especialização esportiva precoce. Procurou-se, dessa forma, observar os principais conceitos e definições utilizados, e também compreender as diferentes realidades entre modalidades esportivas coletivas e individuais como a ginástica artística, o futsal e futebol. Para isso foram realizadas buscas nas seguintes bases eletrônicas de dados: Medline, Lilacs, Scielo e Scopus sem data limite para publicação. Nas buscas foram utilizados os termos: especialização esportiva precoce, iniciação esportiva, treinamento para jovens, early sports specialization, sports initiation, youth training. Após a seleção das publicações pelos títulos e resumos, uma avaliação foi feita pelos pesquisadores, que determinaram de forma consensual os estudos a serem lidos na íntegra e incluídos na revisão por todos os pesquisadores.
As referências dos estudos selecionados foram rastreadas, com intuito a inclusão de outros artigos de eventual interesse. Também foram utilizados livros textos visando dar suporte no entendimento de conceitos e suas aplicabilidades na área.
Definições e conceitos
De maneira geral, a literatura converge no sentido de reconhecer que a prática esportiva tem grande potencial em trazer benefícios no processo de desenvolvimento da criança e do adolescente (Aroni, 2017; Hyman, 2009; Severino et al., 2014; Sullivan, 2021). A prática esportiva na infância, propicia grandes experiências de vida, contribuindo para o desenvolvimento dos aspectos físico, psicológico, cognitivo e social, favorecendo o engajamento e permanência futura no esporte e em programas de treinamento físico em geral, promovendo um estilo de vida saudável na vida adulta (Aroni, 2017; Brenner et al., 2016; Gregório, e Silva, 2014). A prática esportiva na infância é uma das etapas da formação esportiva, na formação de atletas propriamente dita; a formação esportiva é um processo de longo prazo composto por três etapas, sendo elas: iniciação, especialização e alto rendimento. (Brenner et al., 2016; Marques et al., 2014; Sullivan, 2021)
A iniciação esportiva pode ser entendida como o início de um processo de ensino-aprendizagem-treinamento de forma específica, planejada e regular (Silva, e Ulbrich, 2011; Menezes et al., 2014), ou ainda como o período em que o jovem começa a ter contato com a prática regular e orientada de determinada(s) modalidade(s) (Marques et al., 2014). Dessa maneira, essa fase corresponde ao início de um processo longo e complexo, que exige a adoção de procedimentos pedagógicos direcionados à socialização, de forma prazerosa, além do desenvolvimento de capacidades e habilidades motoras que, eventualmente, levem a resultados que tenham como objeto central a competição esportiva (Achour Junior, e Gomes, 2015; Barbanti, 2005; Gaya et al., 2004). Nesse sentido, considera-se o conceito apresentado por Brenner (2016), da chamada alfabetização esportiva, que propicia o domínio de habilidades motoras fundamentais e habilidades esportivas fundamentais (Brenner et al., 2016). Gallahue et al. (2013) consideram as habilidades de locomoção, estabilização e manipulação na classificação das habilidades fundamentais, enquanto Brenner adiciona ainda a agilidade, o equilíbrio, a coordenação e a velocidade como as habilidades básicas exigidas para a alfabetização motora, a ser desenvolvida no processo de formação esportiva. (Brenner et al., 2016; Gallahue et al., 2013)
Já a especialização esportiva ocorre quando um jovem atleta aprofunda seus conhecimentos e capacidades específicas em uma determinada modalidade, com a adoção de programas e métodos de treinamento especializados (Brenner et al., 2016; Silva, e Ulbrich, 2011; Marques et al., 2014). Entretanto, por muitas vezes, durante a iniciação esportiva, são adotadas formas de treinamento não condizentes com as características da fase maturacional das crianças. (Gaya et al., 2004; Marques et al., 2014; Sullivan, 2021)
O alto rendimento compreende o “final” deste processo, em que o atleta chega ao seu nível mais alto de performance esportiva; com raras exceções (como na ginástica, por exemplo), esta etapa ocorre na idade adulta. (Bompa, 2002; Brenner et al., 2016; Sullivan, 2021)
Já Bompa (2002) inclui ainda uma etapa denominada “formação esportiva”, que seria uma espécie de transição entre as etapas de iniciação e a especialização, onde o treinamento começa a ter um caráter mais direcionado à esta última etapa (Bompa, 2002). Segundo suas definições, as etapas e as fases em que elas ocorrem seriam: iniciação (6 a 10 anos); formação esportiva (11 a 14 anos); especialização (15 a 18 anos); alto rendimento (a partir dos 19 anos).
À medida que a criança avança nos estágios de desenvolvimento, muitas vezes, por influência dos pais, professores e aspectos socioculturais, cresce o interesse do jovem aprendiz pelo esporte. (Barbanti, 2005; Côté, e Hay, 2002; Sullivan, 2021)
Especialização Esportiva Precoce
A literatura científica buscou definir de forma mais objetiva o que caracterizaria um programa de treinamento pautado na especialização esportiva precoce. A ideia geral seria quando, no período pré-púbere, a criança fosse introduzida a um programa de treinamento sistematizado, caracterizado por um mínimo de três sessões semanais, com objetivo principal visando aumento do rendimento, além da participação em competições esportivas. (Kunz, 1994)
Existem diferentes causas para essa antecipação do processo natural de formação esportiva, com destaque para as especificidades ambientais, como as características socioculturais das modalidades esportivas escolhidas, que exercem forte influência sobretudo na pressão sobre instituições, técnicos, professores, e mesmo nos pais, para que a criança pule etapas de desenvolvimento motor para o alcance de resultados mais prematuramente do que o adequado àquela idade (Fechio et al., 2011; Gregório, e Silva, 2014; Marques et al., 2014; Menezes et al., 2014; Nunomura et al., 2010; Severino et al., 2014). Brenner (2016) levanta ainda a questão de que jovens atletas procuram ser identificados cada vez mais cedo como talentos esportivos por técnicos, pela mídia, pela indústria esportiva, e pela sociedade como um todo, visando o lucro (Brenner et al., 2016). Há ainda a ânsia por resultados de forma precoce decorrente da pressão exercida pelos pais e pelas instituições e/ou patrocinadores sobre os treinadores. (Silva, e Ulbrich, 2011; Marques et al., 2014; Severino et al., 2014)
Outro fator citado nas pesquisas, e talvez o que maior influência exerce na adoção da especialização precoce, está na própria cultura e nas especificidades que envolvem as competições das modalidades (Nunomura et al., 2010). Fechio et al. acrescentam ainda, no Brasil, o Futebol de Salão e a Ginástica Artística são modalidades que costumam envolver crianças com pouca idade em seu treinamento (Fechio et al., 2011). No caso da Ginástica Artística, há algum tempo, passou-se a acreditar que jovens ginastas que quisessem atingir uma performance ‘perfeita’ deveriam começar muito cedo nessa carreira. Já no Voleibol, segundo Marques et al. (2014), não foi constatada a especialização precoce no processo de formação de atletas profissionais, observando-se o fato de que as competições oficiais só se iniciam para atletas a partir dos treze anos de idade. (Marques et al., 2014)
As faixas etárias definidas para as competições nas modalidades como a Ginástica Artística “permitem” ou “pedem” uma especialização esportiva precoce. Alguns autores apontam que, pelo tempo demandado para que um jovem esteja preparado para competir em boas condições esportivas, a situação é agravada pelas baixas idades nas competições (Aroni, 2017; Nunomura et al., 2010). Somada à crença de que “quanto mais cedo se iniciar a prática esportiva, maior será a chance de sucesso no alto rendimento” (Menezes et al., 2014) estes fatores favorecem a adoção da especialização antes do período da puberdade em modalidades esportivas com essas características.
Consequências positivas x negativas da Especialização Esportiva Precoce
Como analisado anteriormente, Silva, e Ulbrich (2011) observam na especialização esportiva, a adoção de programas e métodos de treinamento especializados, competições regulares, aprimoramento técnico dos fundamentos, assim como do conhecimento tático. Estes, conforme os trabalhos consultados, devem estar de acordo com a capacidade física, motora, cognitiva e emocional da criança, visto que as ações são direcionadas para o rendimento esportivo. Como destacado por Marques et al. (2014), não há problema na especialização esportiva realizada em circunstâncias favoráveis. O problema é quando esse processo é antecipado na busca por resultados esportivos precocemente, em detrimento do estágio de desenvolvimento da criança.
Várias consequências negativas são observadas. Destacam-se a limitação e automatização do repertório motor da criança, o risco de lesões, alterações na maturação biológica esperada para o indivíduo, alterações nutricionais devido ao gasto energético exacerbado, o que pode levar a um quadro de desmotivação e abandono precoce do esporte (Aroni, 2017; Brenner et al., 2016; Silva, e Ulbrich, 2011; Marques et al., 2014; Menezes et al., 2014; Nunomura et al., 2010; Severino et al., 2014). Ainda de acordo com Marques et al. (2014), a especialização precoce na infância não pode ser confundida com a participação lúdica de crianças em uma única modalidade esportiva. Pois segundo os pesquisadores, a ocorrência de bons resultados esportivos na infância não garante, necessariamente, o mesmo sucesso em fases posteriores.
Desenvolvimento esportivo divididos por estágios
Três trabalhos consultados sugerem a adoção de modelos de desenvolvimento esportivo divididos por estágios. Silva, e Ulbrich (2011) sugerem três estágios de formação esportiva: o 1º entre 9 e 10 anos (não antes dos nove) com o desenvolvimento das habilidades globais; o 2º entre 10 e 11 anos, com uma prática mais elaborada visando aumentar o repertório motor e habituar-se com os jogos em equipe; e o 3º entre 12 e 13 anos com foco no desenvolvimento físico, técnico e tático. Aroni (2017), de forma semelhante, sugere a adoção de quatro fases de desenvolvimento esportivo: o 1º sendo a Iniciação, com foco na diversidade de práticas motoras, avançando para as modalidades esportivas específicas, tendo como objetivos nessa fase, a expansão do vocabulário motor, o prazer e a motivação para a prática. O 2º referindo-se à Especialização, onde é escolhida uma modalidade esportiva, com foco no desenvolvimento das habilidades específicas, observando o respeito à individualidade e os aspectos sociais, culturais e regionais do esporte escolhido. O 3º como Aperfeiçoamento, com o atleta já especializado, buscar a consolidação no ambiente competitivo rumo à profissionalização. E por último o 4º, tratando-se da Manutenção, fase com objetivo de manter-se no alto nível durante a carreira esportiva.
Já Brenner (2016) apresenta o modelo de desenvolvimento esportivo dividido em cinco estágios. Onde o 1º é a denominada Descoberta, com a aprendizagem e o brincar (entre 0 e 12 anos); o 2º com o Desenvolvimento e desafios (10 a 16 anos); o 3º em Treinar e competir (13 a 19 anos); o 4º com a Superação para altas performances ou participar e vencer (maiores de 15 anos); e por último o 5º, o Destreinamento.
De forma semelhante aos estudos anteriores, Marques et al. (2014) sugerem processos pedagógicos pautados na diversificação de vivências esportivas na infância, exposição ao meio competitivo somente após a puberdade e construção de um ambiente social que permita ao jovem desenvolver-se de modo a respeitar suas fases de maturação e envolver-se com o esporte de modo prazeroso. No período de iniciação esportiva, deve-se substituir o modelo competitivo por festivais com diferentes modalidades, privilegiando a diversidade de experiências motoras, e principalmente, prezar pela intensidade, frequência e expectativas geradas por resultados.
Menezes, Marques, e Numomura (2014), no caso dos jogos coletivos de invasão, sugerem o foco nos métodos global/situacional de ensino em detrimento do método analítico/sintético (pautado na repetição dos gestos), visando estimular a compreensão da lógica do jogo, estimulando a capacidade de assimilação e raciocínio frente às diferentes situações. E que na ginástica artística, a maioria dos técnicos têm consciência dos riscos e prejuízos da especialização precoce, mas, ao mesmo tempo, sentem-se limitados pelas regras atuais da modalidade. Estes reportaram que é possível aproximar-se do ideal de formação esportiva, mas, as mudanças devem ser graduais. E chamam a atenção para a necessidade dos técnicos e demais envolvidos no esporte a não pouparem esforços para proteger os jovens atletas, para prolongar sua participação e, principalmente, proporcionar-lhes experiências positivas no esporte. Mesmo que o jovem atleta não seja um destaque, se bem orientado, poderá incentivar gerações futuras.
Ainda segundo as pesquisas de Aroni (2017) e Brenner (2016), um bom programa de iniciação esportiva deve:
Ser multidisciplinar, alicerçado em bases científicas sólidas;
Ter uma aplicação longitudinal, ou pelo menos em um período mínimo de quatro anos;
Permitir a avaliação contínua do jovem atleta no percurso das diversas fases de formação;
Avaliar a maturidade biológica do jovem atleta, a fim de adaptar o planejamento de treino à sua maturidade;
Permitir que o plano de treino abrangesse um grande número de capacidades condicionais, coordenativas, técnicas e psicológicas, fundamentais na formação esportiva do jovem atleta;
Impedir que o bem-estar físico, psíquico e social do jovem atleta seja posto em risco.
Foco primário da iniciação esportiva deve ser o prazer pela prática e o aprendizado de habilidades motoras para a vida toda;
Participação em esportes variados, pelo menos até a puberdade, diminuindo as chances de lesões, stress e esgotamento dos jovens atletas;
Para a maioria dos esportes, a especialização tardia (após a puberdade) pode aumentar as chances de jovens atletas alcançarem seus objetivos atléticos;
Diversificação precoce e especialização tardia proporcionam maiores chances de envolvimento esportivo a longo prazo, condição física duradoura e a possibilidade de participação em alto nível de desempenho;
Proporcionar pelo menos 3 meses de descanso ao longo do ano, e mais 1 mês longe do esporte de interesse, pode permitir uma melhor recuperação física e psicológica.
O monitoramento de jovens atletas em treinamento intensivo em busca de maturação física e psicológica, assim como a condição nutricional é um importante parâmetro para a saúde e bem-estar.
Conclusões
Uma rápida busca na literatura a respeito do tema da especialização esportiva precoce mostrou um grande número de investigações em contextos diversos. A análise de uma pequena amostra desses trabalhos mostra a importância do estudo do tema, e a preocupação dos profissionais e estudiosos para a construção de um corpo de conhecimentos, que auxilie na diminuição dos danos causados por esse processo, ao se ignorar as etapas de desenvolvimento motor de nossas crianças e adolescentes pretendentes à atividade regular competitiva no esporte.
A análise dos trabalhos consultados à luz do modelo de desenvolvimento proposto por Gallahue, Ozmun, e Goodway (2013), ressalta pontos importantes a serem considerados no processo de formação de jovens atletas. Como uma das primeiras observações, quando direcionado de forma prazerosa e desafiadora, respeitando os estágios de desenvolvimento motor, cognitivo e emocional, o esporte é uma importante ferramenta para a descoberta e alcance do potencial atlético do indivíduo. Contudo, o processo de iniciação esportiva exige para isso, o desenvolvimento de uma base motora a partir da aquisição e combinação de habilidades fundamentais em nível maduro. Os primeiros anos do ensino fundamental devem permitir a ampliação da base motora para que, a partir de então, conforme seu desenvolvimento maturacional, a criança tenha condições de enfrentar desafios em nível físico, motor, cognitivo e emocional. Dessa forma, o processo terá condições para ser motivador e prazeroso para o jovem aprendiz.
Em relação à especialização esportiva, as pesquisas indicam que, quanto mais tardia a especialização em relação à puberdade, maiores as chances de sucesso e permanência no esporte escolhido. Porém, características culturais das modalidades esportivas exercem forte influência na aceleração desse processo de desenvolvimento em busca de resultados competitivos antecipadamente.
Modalidades esportivas como a Ginástica Artística e o Futebol de Salão são dois exemplos no contexto brasileiro, de grande especialização exigida por crianças pré-púberes, em busca do alcance de performance mínima para competições oficiais. Os trabalhos atestam que essa exigência pode gerar lesões por stress e problemas emocionais devido à pressão exigida por resultados. Já no caso de outras modalidades onde as primeiras competições oficiais são estabelecidas a jovens atletas em uma faixa etária posterior, há maiores possibilidades de oportunizar variabilidade de práticas e menos casos de especialização precoce, como observado nas consultas feitas entre atletas profissionais de voleibol no trabalho de Marques et al. (2014).
Vale destacar o trabalho de Menezes, Marques, e Numomura (2014), sobre o ensino de Jogos Coletivos de Invasão e sua relação com a especialização precoce, que indicam que, modelos pedagógicos de ensino podem auxiliar no processo de desenvolvimento com uma abordagem mais global/situacional, ao invés do foco em instruções analítico/sintéticos. O modelo global incentiva o desenvolvimento cognitivo e aspectos perceptivo-motores, com foco na variabilidade de prática. e acervo motor variado, enquanto o método analítico/sintético pode enfatizar a mecanização e automatização precoce de habilidades, limitando as possibilidades de tomadas de decisão, principalmente em modalidades coletivas. Este pode ser considerado um exemplo de manipulação da tarefa, que pode auxiliar o desenvolvimento das habilidades motoras específicas esportivas.
Em geral, pode-se dizer que as considerações e sugestões feitas pelos autores consultados corroboram o modelo de desenvolvimento proposto por Gallahue, Ozmun, e Goodway (2013).
Destaque pode ser feita à ideia de que influências ambientais acabam sendo decisivas no processo de formação do atleta e a sua permanência no esporte escolhido. Além disso, esse processo terá influência direta na forma com que esse indivíduo conseguirá se relacionar social e emocionalmente com o ambiente que o cerca, influenciando a qualidade de vida a ser conquistada na velhice.
Referências
Achour Junior, A., e Gomes, A. (2015). Esporte: Preparação de Jovens Atletas. Sport Training Editora.
Aroni, A.L. (2017). Especialização Esportiva Precoce: o jovem em idade escolar. In: B.D. Batista, e G.H.G. Silva (Orgs.), Psicologia do Esporte: perspectivas de atuação na escola, 159-168. https://www.researchgate.net/publication/324249015
Barbanti, V.J. (2005). Formação de esportistas. Editora Manole.
Bompa, T.O. (2002). Treinamento total para jovens campeões. Editora Manole.
Brenner, J.S., e Council on Sports Medicine and Fitness (2016). Sports specialization and intensive training in young athletes. Pediatrics, 138(3). https://www.doi.org/10.1542/peds.2016-2148
Côté, J., e Hay, J. (2002). Family influences on youth sport performance and particpation. In J. Silva, e D. Stevens (Eds.), Psychological foundations of sport (pp. 503-519). Allyn & Bacon.
Erickson, K., e Gilbert, W. (2013). Coach-athlete interactions in children’s sport. In J. Côté, e R. Lidor (Eds.), Conditions of Children's Talent Development in Sport. Fitness Information Technology.
Fechio, J.J., Castro, N.M. de, Cichowicz, F.D.A., e Alves, H. (2011). Estresse infantil e a especialização esportiva precoce. Revista Psicologia e Saúde, 3(1). https://pssaucdb.emnuvens.com.br/pssa/article/view/82
Gallahue, D.L., Ozmun, J.C., e Goodway, J.D. (2013). Compreendendo o desenvolvimento motor: bebês, crianças, adolescentes e adultos. AMGH Editora.
Gaya, A.C.A., Marques, A.T., e Tani, G. (2004). Desporto para crianças e jovens: razões e finalidades. Editorial de la UFRGS.
Gregório, K.M., e Silva, T. da (2014). Iniciação esportiva X especialização esportiva precoce: quando iniciar estas práticas? Horizontes-Revista de Educação, 2(3), 49-65. https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/horizontes/article/view/3127
Güllich, A., Macnamara, B.N., e Hambrick, D.Z. (2021). What Makes a Champion? Early Multidisciplinary Practice, Not Early Specialization, Predicts World-Class Performance. Perspectives on Psychological Science, 17(1), 6-29. https://www.doi.org/10.1177/1745691620974772
Haibach, P., Reid, G., e Collier, D. (2017). Motor Learning and Development (2nd Edition). Human Kinetics.
Hyman, M. (2009). Until it hurts: America's obsession with youth sports and how it harms our kids. Beacon Press.
Kunz, E. (1994). As dimensões inumanas do esporte de rendimento. Movimento, 1(1), 10-19. https://doi.org/10.22456/1982-8918.2004
Magill, R.A., e Anderson, D.I. (2016). Motor Learning and Control: Concepts and Applications (11th ed.): Mc Graw Hill Education.
Marques, R.F.R., Lima, C.P., Moraes, C. de, Nunomura, M., e Simões, E.C. (2014). Formação de jogadores profissionais de voleibol: relações entre atletas de elite e a especialização precoce. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, 28, 293-304. https://doi.org/10.1590/1807-55092014000200293
Menezes, R.P., Marques, R.F.R., e Nunomura, M. (2014). Especialização esportiva precoce e o ensino dos jogos coletivos de invasão. Movimento, 20(1), 351-373. https://doi.org/10.22456/1982-8918.40200
Morais, J.E., Marinho, D.A., Castro, F.A.D.S., e Barbosa, T.M. (2021). Editorial: Coaches' Role in Youth Sports Performance: Early Specialization Versus Long-Term Development [Editorial]. Frontiers in Psychology, 12. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2021.774944
Mosher, A., Fraser-Thomas, J., e Baker, J. (2020). What Defines Early Specialization: A Systematic Review of Literature. Front Sports Act Living, 2, 596229. https://doi.org/10.3389/fspor.2020.596229
Nunomura, M., Carrara, P.D.S., e Tsukamoto, M.H.C. (2010). Ginástica artística e especialização precoce: cedo demais para especializar, tarde demais para ser campeão! Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, 24(03), 305-314. https://doi.org/10.1590/S1807-55092010000300001
Papalia, D.E., e Feldman, R.D. (2013). Desenvolvimento Humano (12ª edição). Artmed Editora.
Severino, R.C., Felix, C., Agostini, J., e Ferreira, L. (2014). Iniciação e especialização esportiva precoce: uma revisão da literatura. Revista Mineira de Educação Física, 22(2), 156-167. https://periodicos.ufv.br/revminef/article/view/10085
Silva, A.L. da, e Ulbrich, A.Z. (2011). A iniciação ao futsal para crianças: os riscos da especialização precoce. Revista on-line de divulgação científica da UNIDAVI, 121. https://s3-sa-east-1.amazonaws.com/siteunidavi/revistaCaminhos/ano2saude.pdf
Sullivan, C. (2021). Coaching Youth Sports: Guidelines to Ensure Development of Young Athletes. Rowman e Littlefield Publishers.
Walters, B.K., Read, C.R., e Estes, A.R. (2018). The effects of resistance training, overtraining, and early specialization on youth athlete injury and development. J Sports Med Phys Fitness, 58(9), 1339-1348. https://doi.org/10.23736/s0022-4707.17.07409-6
Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 29, Núm. 312, May. (2024)