ISSN 1514-3465
Competições de 'futebóis': a equipe feminina
do Maracanã Futebol Clube entra em campo
'Footballs' Competitions: The Women's Team of Maracanã Football Club Takes the Field
Competiciones de 'Fútboles': el equipo femenino del Maracaná Fútbol Club entra al campo
Fernanda Goldani
*fergoldani8@gmail.com
Janice Zarpellon Mazo
**janice.mazo@ufrgs.br
Aline de Oliveira Galvan Venceslau
+alinegalvan93@gmail.com
Bruno Peradotto Lamb
++bruno.lamb@ymail.com
*Mestra em Ciências do Movimento Humano
do Programa de Pós-graduação
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Graduação em Educação Física Licenciatura Plena
pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Especializada em Educação Física Escolar
pela Universidade Gama Filho/RJ
Especializada em Psicomotricidade e Treinamento Desportivo
pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci - UNIASSELVI/SC
Atua no Ensino Básico Técnico e Tecnológico
como docente de Educação Física no Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-grandense
** Pós-doutora em História. Doutora em Ciências do Desporto
pela Universidade do Porto (Portugal)
Professora Titular da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança (ESEFID)
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Professora do Programa de Pós-graduação
em Ciências do Movimento Humano da UFRGS
Líder do Núcleo de Estudos em História e Memória
do Esporte e da Educação Física (NEHME)
Coordenadora do Centro de Memória do Esporte (CEME)
e do Observatório do Paradesporto e Esportes Surdos (OPES) da UFRGS
+Formada em Secretariado Executivo pela Universidade Federal do Paraná
Aluna do curso de Bacharelado em Educação Física
na Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança (ESEFID) da UFRGS
Bolsista de Iniciação Científica vinculada ao Projeto de Pesquisa
intitulado “Representações Sociais do Movimento Humano”
Integrante do Núcleo de Estudos em História e Memória do Esporte (NEHME)
do Observatório do Paradesporto e Esportes Surdos (OPES)
e do Centro de Memória do Esporte (CEME) da UFRGS
++Formado em Ciências Econômicas
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
com especialização em Gestão de Pessoas: Carreiras, Liderança e Coaching
e em Futebol: Ciência do Movimento, Metodologia e Alto Rendimento
Aluno do curso de Educação Física (ABI)
na Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança (ESEFID)
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Bolsista de Extensão do Centro de Memória do Esporte (CEME)
Integrante do Núcleo de Estudos em História e Memória do Esporte (NEHME)
e do Observatório do Paradesporto e Esportes Surdos (OPES) da UFRGS
(Brasil)
Recepção: 20/09/2023 - Aceitação: 02/01/2024
1ª Revisão: 22/11/2023 - 2ª Revisão: 01/01/2024
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Citação sugerida
: Goldani, F., Mazo, J.Z., Venceslau, A. de O.G., e Lamb, B.P. (2024). Competições de 'futebóis': a equipe feminina do Maracanã Futebol Clube entra em campo. Lecturas: Educación Física y Deportes, 28(309), 2-15. https://doi.org/10.46642/efd.v28i309.7243
Resumo
A equipe feminina de “futebóis” do Maracanã Futebol Clube, situado na localidade de Morro Alto, município de Maquiné/RS foi organizada no ano de 1992 e se manteve em atividade até 1997. O estudo objetiva compreender como foi a participação da equipe feminina do Maracanã em competições esportivas de “futebóis” (futebol de campo, futsal, futebol society, atual futebol sete feminino), na década de 1990. Para tanto foram gravadas e transcritas entrevistas semiestruturadas com as atletas, o técnico e o radialista da região, além da utilização de imagens cedidas pelas atletas. A análise temática de conteúdo das entrevistas revelou que as atletas se reuniam no campo do clube Maracanã para realizarem os treinos, cuja frequência era de no máximo duas vezes por semana. Aos poucos começaram a participar de competições de “futebóis”, que ocorriam em municípios do Rio Grande do Sul, disputando apenas uma competição fora do Estado. A análise das fontes históricas mostra que a participação em competições se deve, principalmente, pelo empenho das mulheres, que pagavam as inscrições, o transporte, dentre outros custos. Outro ponto levantado foi a não confecção de camisetas próprias pela equipe, nem pelo clube, durante sua curta existência, sendo utilizado o fardamento da equipe masculina de futebol nas competições. É possível que a ausência de maior apoio do clube para disputar competições como também o afastamento de jogadoras em razão do trabalho e estudo em outras cidades ocasionou o fim da equipe em 1997.
Unitermos:
Futebol. Mulheres. Competições esportivas. História do esporte.
Abstract
The women's “footballs” team of Maracana Futebol Club, located in the Morro Alto area, municipality of Maquiné/RS, was established in 1992 and remained active until 1997. This paper aims to understand the participation of the Maracana women's team in “footballs” competitions (field football, futsal, football society, currently women's seven-a-side football) in the 1990s. Semi-structured interviews were recorded and transcribed with the players, coach, and a local radio announcer, in addition to using images provided by the athletes. Thematic content analysis of the interviews revealed that the athletes gathered at the Maracana club field for training, which occurred at most twice a week. Gradually, they started participating in “footballs” competitions held in municipalities in Rio Grande do Sul, with only one competition outside the State. The analysis of historical sources shows that the participation in competitions was primarily due to the commitment of the women, who paid for registrations, transportation, and other costs. Another point raised was the absence of custom jerseys for the team, neither by the club, during its short existence, the men's football team's uniform was used in competitions. The lack of greater support from the club to participate in competitions, as well as the players' relocation to other cities for work and study, may have led to the team's dissolution in 1997.
Keywords:
Soccer. Women. Sports competitions. Sports history.
Resumen
El equipo de “fútboles” femenino del Maracaná Futebol Clube, ubicado en la ciudad de Morro Alto, en el municipio de Maquiné/RS, fue organizado en 1992 y permaneció activo hasta 1997. El estudio tiene como objetivo comprender cómo fue la participación del equipo femenino de Maracaná Futebol Clube en las competiciones deportivas de “fútboles” (fútbol de campo, fútbol sala, fútbol de sociedad, actual fútbol siete femenino), en la década de 1990. Para ello, se grabaron y transcribieron entrevistas semiestructuradas con las jugadoras, el entrenador y el locutor de radio de la región, además del uso de imágenes aportadas por las deportistas. El análisis de contenido temático de las entrevistas reveló que las jugadoras se reunían en el campo del club Maracaná para realizar entrenamientos, cuya frecuencia era como máximo dos veces por semana. Comenzaron a participar de torneos de “fútboles”, en municipios de Rio Grande do Sul, y en una sola competencia fuera del Estado. El análisis muestra que la participación en competencias se debe principalmente al compromiso de las mujeres, quienes pagaban las inscripciones, el transporte, y otros costos. Otro punto planteado fue la falta de producción por parte del equipo o del club de sus propias camisetas durante su corta existencia, utilizándose en las competiciones el uniforme del equipo de fútbol masculino. Es posible que la falta de mayor apoyo por parte del club para participar en competiciones, así como la ausencia de jugadoras por trabajo y estudios en otras ciudades provocaron el fin del equipo en 1997.
Palabras clave
: Fútbol. Mujeres. Competiciones deportivas. Historia del deporte.
Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 28, Núm. 309, Feb. (2024)
Introdução
A participação de mulheres em competições de “futebóis” no século XXI é crescente e perceptível no cenário brasileiro (Fensterseifer et al., 2018; Balardin, 2018; Fontana, 2022; Goellner et al., 2023). Nesse sentido, é possível observarmos diversas mudanças no que se refere a popularização e engajamento no esporte, como a criação de diversos torneios de categoria de base e aumento de audiência substancial nos últimos anos. (de Castro, 2020; FIFA, 2023)
Neste estudo utilizou-se o termo “futebóis”, cunhado por Damo (2018, p. 38), pois explicita a “ideia de diversidade” na prática do futebol. Emprega-se esta noção teórica para explicar que o mundo do futebol é amplo e diversificado, mesmo que o emprego original do termo pretendia “justificar um horizontalismo epistemológico ofuscado pela produção acadêmica”, panorama que foi modificado pela “multiplicação de produções acerca do futebol de várzea e de mulheres” (Damo, 2018, p. 39). O termo “futebóis” no caso deste estudo abrange distintas práticas como futebol de campo, futsal, futebol society (atual futebol sete), além de um futebol não institucionalizado com regras adaptadas, relacionado com a quantidade de mulheres presentes no campo ou na quadra naquele momento de prática, uma vez que, alguns dos indícios encontrados não especificam a modalidade esportiva praticada. (Morel et al., 2006)
O estudo enfoca a reconstituição e conservação das memórias relativas à equipe feminina vinculada ao Maracanã Futebol Clube, associação esportiva fundada com o intuito de promover atividades sociais e a prática do futebol masculino, na localidade de Morro Alto, no município de Maquiné/RS, no ano de 1970. Na década de 1990, após 20 anos da fundação do clube conhecido simplesmente como “Maracanã”, algumas mulheres tiveram a iniciativa de praticar “futebóis” no campo, quando a equipe masculina não estava ocupando o espaço. A equipe feminina treinou e participou de competições de “futebóis” no período aproximado de 1992 até 1997, ano em que encerrou suas atividades.
Transcorridos 25 anos do fim da equipe feminina de “futebóis” do Maracanã, localizaram-se indícios como fotografias e cadernos da diretoria do clube pertencentes ao acervo pessoal da família de uma das atletas da equipe. Além disso, empreendeu-se uma busca pelas mulheres que integraram a equipe feminina do Maracanã a fim de coletar seus depoimentos. Diante de tais pistas históricas delineou-se a presente investigação cujo objetivo é compreender como sucedeu a participação da equipe feminina de “futebóis” do Maracanã Futebol Clube da localidade de Morro Alto, no município de Maquiné/RS, em competições esportivas na década de 1990.
Metodologia
A fim de explicitar como se conformavam as competições que a equipe feminina de “futebóis” do Maracanã participou no período de sua existência (1992-1997), recorreu-se a fontes orais por meio de entrevistas com sete atletas da equipe, com o ex-técnico e com o radialista da rádio de Capão da Canoa/RS, em razão de sua atuação na divulgação e incentivo à equipe feminina.Quanto às entrevistas das atletas, quatro ocorreram em formato online, utilizando o Google Meet (serviço de comunicação por videochamadas), e três presenciais na casa das mulheres, de acordo com a disponibilidade delas. A entrevista com o ex-técnico da equipe e com o radialista também sucederam de modo presencial, na residência de cada um dos entrevistados.
Antes de procedermos às entrevistas, cada entrevistada (o) assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) autorizando o uso das informações. Em seguida, as entrevistas foram realizadas conforme o roteiro norteador que contemplou questões sobre os treinamentos da equipe, as competições e o tipo de apoio do Maracanã Futebol Clube. Na sequência, as entrevistas foram transcritas e as informações aglutinadas em categorias para, então, proceder-se a análise temática de conteúdo das informações (Flick, 2009). Tais informações foram confrontadas com a revisão bibliográfica sobre o tema e interpretadas a partir do referencial teórico metodológico da História Oral e da História Cultural do Esporte. A tabela abaixo apresenta os dados das(os) entrevistadas(os).
Tabela 1. Informações dos entrevistados
Nome |
Ano de nascimento |
Cidade onde reside
atualmente |
Ocupação atual |
Radialista:
Pedro |
1947 |
Localidade
de Ribeirão/ |
Coordenador
de esportes |
Atleta:
Isabel |
1961 |
Município
de Capão da Canoa/RS |
Professora
aposentada |
Técnico:
Aroldo (José Aroldo Nelson dos Santos) |
1964 |
Localidade
de Ribeirão/ Município de Maquiné/RS |
Comerciante |
Atleta:
Neiva (Neiva Selau de Cândido) |
1974 |
Município
de Capão da Canoa/RS |
Dona
de Salão de Beleza |
Atleta:
Rosaura (Rosaura Romão Antônio) |
1975 |
Município
de Osório/RS |
Doméstica |
Atleta:
Patrícia (Patrícia
Conceição de Oliveira) |
1977 |
Município
de Capão da Canoa/RS |
Administradora |
Atleta:
Rosimara (Rosimara
da Silva Soares) |
1979 |
Município
de Porto Alegre/RS |
Enfermeira |
Atleta:Silvia (Silvia
José da Silveira) |
1980 |
Município
de Osório/RS |
Professora
de Educação Física |
Atleta:
Vanessa (Vanessa
José da Silveira) |
1982 |
Município
de Porto Alegre/RS |
Professora
Séries Iniciais |
Fonte: Elaboração própria
Algumas das atletas entrevistadas preservaram os escassos registros fotográficos sobre a equipe, no entanto, não foram encontrados outros tipos de documentos até o momento sobre a equipe feminina de “futebóis” do Maracanã.O antigo presidente e outro sócio do clube que guardavam parte do acervo já faleceram e os familiares informaram que o material foi extraviado. Ressalta-se que no Brasil, a salvaguarda de documentação histórica em acervos pessoais não é uma prática que faça parte da cultura das pessoas e mesmo por parte de entidades esportivas é raramente valorizada. (Mazo et al., 2021)
Resultados e discussões
Ao procedermos a análise temática das informações,elaborou-se duas categorias com os resultados: a) Condições de treinamento da equipe feminina de “futebóis”; b) Características das competições disputadas pela equipe feminina de “futebóis”.
Condições de treinamento da equipe feminina de “futebóis”
José Aroldo Nelson dos Santos, conhecido como Aroldo, era jogador de futebol e visto que tinha interesse em ser técnico, recebeu o apoio do então presidente do Maracanã para iniciar a equipe feminina da instituição. Nesse sentido, o clube oferecia o campo para a prática, mas era necessário que Aroldo ficasse responsável por levar a bola e/ou demais equipamentos que fosse utilizar. Conforme a entrevistada Isabel: “Tínhamos o apoio do clube para o transporte e o fardamento usado era do masculino. Então, era na cara e na coragem” (Saraiva, 2023, p. 4).
Em entrevista, o técnico Aroldo relatou que, primeiramente desejava formar uma equipe de futebol de campo, mas não foi possível porque houve a redução do número de atletas. Sobre a questão da formação da equipe de futebol, Rosaura relembrou a intenção do treinador Aroldo: “Eu lembro que começamos a jogar futebol 11, tinham bastantes mulheres. Aroldo quis tentar fazer 11. Eu lembro que no dia pra a gente vir aqui em Osório, não deu mulher suficiente, se eu não me engano ele 'catou' umas daqui de Osório”. (Antônio, 2023, p. 2)
Atualmente, é recorrente no ambiente esportivo o uso das redes sociais para divulgar, atrair novos integrantes e até mesmo combinar competições entre equipes. No entanto, na década de 1990, não havia telefone celular e mídias digitais. A comunicação sucedia por meio de telefone residencial, em alguns lugares pelo rádio ou presencialmente.Sendo assim, as mulheres da equipe feminina de “futebóis” do Maracanã adotaram os meios existentes na época para combinar os encontros visando o treino. Rosaura (Antônio, 2023, p. 3) contou que: “Naquela época, não tinha celular pra se comunicar. E era aquele negócio de boca em boca; avisa lá fulano que tem treino tal dia”.
Os treinos ocorriam durante a semana no final da tarde, às vezes, no sábado, no campo de futebol do Maracanã, uma vez que este era o horário que a maioria das atletas podia comparecer tendo em vista que trabalhavam ou estudavam.Segundo a entrevistada Isabel: “eram uma, duas vezes na semana, quando dava duas, uma era certo” (Saraiva, 2023, p. 3). Aroldo contou sobre o treino: “corriam no sábado à tarde, fazia corrida e aquecimento e depois treino só com chute à bola [...] como dominar uma bola [...]”. (Santos, 2023, p. 1)
Silvia relatou que “eram treinos bem pegados, eu lembro que tinha treino de resistência, treinos táticos, aí era bem legal, e nós treinávamos sim, teve um momento bem forte que a gente chegou a treinar mesmo legal” (Silveira, 2023, p. 5). Patrícia também possui lembranças dos treinos: “Nós treinávamos umas duas vezes por semana, no próprio campo, ele [Aroldo] botava numa sequência de correr, de treino de chute, jogada ensaiada, até hoje tem coisa que eu não esqueci. Só de se olhar a gente já sabia o que tinha que fazer” (Cardoso, 2023, p. 2). Observa-se que tanto Silvia como Patrícia destacaram positivamente os treinos conduzidos pelo técnico Aroldo, cujo intuito era melhorar a qualidade da equipe para participação em competições.
Características das competições de “futebóis”
Antes de falar sobre as competições da equipe feminina de “futebóis” do Maracanã, cabe lembrar que no ano anterior, em 1991, ocorreu a primeira Copa do Mundo de Futebol Feminino, e a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) assumiu o time feminino oficialmente. Além disso, é importante considerarmos a descriminalização da prática do futebol pelas mulheres ocorrida no final da década de 1970, e a criação de setores para futebol feminino em associações locais tradicionais como o Sport Club Internacional no ano de 1983. (Morel et al., 2006; Sport Club Internacional, 2023)
O aumento na prática no âmbito local somados com a visibilidade de um evento como Copa do Mundo e a criação de uma seleção nacional que mostra resultados marcantes, pode ter sido força motriz para a organização da equipe feminina de “futebóis” do Maracanã. Na imagem abaixo (Figura 1) apresentamos uma parte da equipe feminina de “futebóis” do Maracanã.
Acima, em pé, na parte esquerda está o técnico Aroldo, e abaixo dele, tem uma ovelha, de costas na fotografia, a qual foi concedida como premiação em uma competição. Ao lado do treinador Aroldo, em pé, ao seu lado está a jogadora Patrícia, no outro lado a jogadora Fernanda e no meio delas a goleira, que faleceu no final do ano de 2020. Agachadas estão as jogadoras Isabel do lado esquerdo da foto e Neiva do lado direito. Uma vez que não ocorria o registro dos locais onde jogavam, não é possível saber qual a competição que o time foi vencedor. Na fotografia, as jogadoras estão usando o fardamento do time masculino do clube Maracanã, o qual era emprestado, quando eles não tinham jogo.
Neste cenário, é possível que algumas das atletas vislumbrassem a possibilidade de realizar o sonho de ser uma jogadora de futebol inspiradas pela seleção brasileira feminina. Inclusive, Patrícia comentou sobre “fazer um teste no Grêmio uma vez, lembra? Mas acho que faltou verba, não sei... lembro até hoje” (Cardoso, 2023, p. 3). Neiva, que jogava na escola do município de Itati/RS e mudou para Maquiné a fim de participar da equipe feminina do Maracanã, também parecia sonhar com uma carreira no futebol: “Eu tinha uma impressão assim, que eu estava subindo o nível, então ir para esse time jogar, no Maracanã fazer parte daquele time era como se dissesse assim ‘eu tô ficando, tô indo para o profissional sabe’ e saindo lá de Itati/RS”. (Cândido, 2023 p. 1)
Se algumas das atletas participavam da equipe com o intuito de praticar “futebóis” por divertimento, no caso das entrevistadas citadas acima a motivação para os treinos e competições estava ligada à vontade de ser uma jogadora profissional de futebol de um grande clube ou até mesmo na seleção brasileira. Neiva manifesta seu desejo de construir uma carreira profissional por meio do futebol: “entrar no campo para ver se tinha um olheiro, para ver se tu passavas no peneirão, para ver se talvez alguém fosse te chamar para jogar profissionalmente” (Cândido, 2023, p. 9). Assim, competições em diferentes cidades poderia aumentar as chances de serem vistas e escolhidas para jogar em outro lugar.
A equipe feminina de “futebóis” do Maracanã disputou competições nas seguintes localidades: Aguapés (localidade que pertence ao município de Osório/RS), Campo Bonito (localidade do município de Torres/RS), Canoas/RS, Capão da Canoa/RS, Itati/RS, Maquiné/RS, Morro Alto (localidade pertencente ao município de Maquiné/RS), Montenegro/RS, Osório/RS, Ribeirão (localidade pertencente ao município de Maquiné/RS), Santo Antônio da Patrulha/RS, Terra de Areia/RS, Torres/RS e Três Cachoeiras/RS. Além das competições no estado do Rio Grande do Sul, a equipe feminina de “futebóis” também participou de uma em São João do Sul no estado de Santa Catarina. Os deslocamentos da equipe eram realizados com uma Kombi alugada e, às vezes,o presidente do Maracanã alugava um ônibus para a torcida acompanhar a equipe.
Neiva comentou em sua entrevista sobre uma competição no município de Montenegro que, segunda ela, foi a mais marcante: “A gente jogou contra times, assim, era time do Inter, tipo aqueles mais importantes, tinha a Duda, tinha uns negócios desses, jogando, coisas que pra gente só víamos na TV” (Cândido, 2023, p. 5). O depoimento sugere que a competição foi de futebol de campo, uma vez que cita a ex-jogadora e ex-coordenadora da seleção brasileira feminina Duda Luizelli.
A partir dos depoimentos, entretanto, a equipe feminina do Maracanã, conforme a declaração da ex-jogadora Isabel, também disputou outros tipos de “futebóis”: “Em Canoas, já foi futebol de salão, depois do futebol 7 veio o salão junto. Uma coisa puxou a outra. Daí que nós jogamos em Terra de Areia, em Itati jogamos mais de uma vez. Quase todo o litoral norte começou a ter bastante torneio” (Saraiva 2023, p. 4). Nesse sentido, o depoimento indica um aumento substancial no número de torneios disputados: “A partir desse momento começou, como se fosse uma febre, o futebol feminino, todo domingo tinha um torneio. Todas as segundas-feiras, as gurias estavam todas furadas, quebradas, mancas ou engessadas (risos)”. (Saraiva 2023, p. 4)
O aumento expressivo no número de torneios significou um crescimento na quantidade de equipes femininas, o que Isabel corrobora na frase a seguir: “foi aumentando, teve equipe em Osório, Capão, Maquiné, Tramandaí, Terra de Areia, Torres, Itati, Santo Antônio da Patrulha, São João do Sul” (Saraiva 2023, p. 4). Esse aumento de praticantes elevou o nível de competividade na região e, segundo Isabel, a equipe do Maracanã tinha “rivalidade com o time de Capão [nomeado Unidas], mas era mais ferrenha entre Maracanã, Maquiné e Capão. A rivalidade é tipo um Grenal [rivalidade entre Grêmio e Internacional] né; o nível da rivalidade era forte, até mesmo as atletas se encaravam no ônibus e se empurravam e se chutavam”. Parece que depois de um período a rivalidade ficou mais controlada: “no final [talvez próximo do ano de 1997] já estavam mais civilizadas né e um time socorria o outro; o time de Capão foi extinto também”. (Saraiva 2023, p. 6)
Outro ponto levantado pelas entrevistadas está relacionado com as premiações recebidas pela equipe feminina do Maracanã, sendo bastante diversificadas e, às vezes inusitadas. Além dos tradicionais troféus e medalhas, também ganhavam engradado de cerveja, novilha (terneira), ovelha, porco e bola. A equipe do Maracanã, em competição disputada na localidade de Campo Bonito, recebeu como prêmio pela vitória uma terneira. E, mais inusitado ainda foi o fato da equipe feminina do Maracanã precisar ir em outro momento buscar a premiação, a terneira, uma vez que “o prêmio” não cabia na Kombi junto com as jogadoras. Em entrevista Neiva comentou: “eu me lembro da novilha que a gente ganhou, a Ametista. Foi engraçado, porque a gente que botou o nome (risos)” (Cândido, 2023, p. 11). Este fato também foi relatado por Isabel: “Nós ganhamos uma vez a terneira, a Ametista, em Campo Bonito [Município de Torres] num torneio. Ganhamos também uma bola e cerveja” (Saraiva, 2023, p. 6). Na sequência fotografia da premiação.
A equipe feminina do Maracanã também recebeu premiações tradicionais como troféus e medalhas. Na imagem abaixo, apresentamos a medalha (Figura 3) de primeiro lugar conquistada em competição realizada no município de Terra de Areia, no dia três de setembro de 1995. Se observa que na medalha está escrito o termo “futebol”, evidenciando que no período, naquela região, não havia diferenciação entre futsal, futebol de campo ou futebol sete. Também consta o registro da empresa que patrocinou a compra da premiação, “Casa Maggi”.
As premiações conquistadas pela equipe feminina do Maracanã eram prestigiadas pelo presidente do clube na época, que continuava auxiliando o futebol feminino. Conforme relata Isabel: “O presidente, foi a nossa mão na roda, e o clube, porque daí além do campo que cedia para o treinamento, o fardamento e o nome do clube, então teve apoio, suporte financeiro e logístico” (Saraiva, 2023, p. 6). Silvia, assim como Isabel, reconheceu o apoio do presidente do clube: “A gente tinha fardamentos que eram doados pelo Maracanã, porque o presidente era o maior incentivador de futebol dali da volta, ele gostava muito de futebol e era um dos incentivadores, levava para os jogos”. (Silveira, 2023, p. 7)
Além do presidente do clube, Silvia destacou o apoio do radialista Pedro: “eu lembro que tinha o Pedro Ribeiro que ia pra rádio, coisa mais queridão esse radialista, e falava sobre o time de futebol de Morro Alto porque ele era dali de perto, ali do Espraiado [localidade]” (Silveira, 2023, p. 7). Pedro Ribeiro também contribuiu para a divulgação do futebol masculino no litoral Norte ao realizar transmissões diretas do campo e abordar o futebol na programação diária. Quando foi promovido a Diretor de Esportes da Rádio passou a incentivar os “futebóis” feminino e dar visibilidade ao entrevistar as atletas, o treinador e acompanhar as competições. Em entrevista contou que: “O meu trabalho era divulgar o esporte em geral no Litoral Norte, na região” (Ribeiro, 2023, p. 1).
Após os torneios de domingo, o radialista concedia espaço na programação para os times vencedores, como relata a seguir: “normalmente levava as equipes vencedoras na rádio para dar entrevistas no outro dia” (Ribeiro, 2023, p. 1). Sobre a equipe feminina do Maracanã vale ainda destacar a fala de Pedro Ribeiro: “A equipe era bem organizada, era uma das principais da região na época. Através do Maracanã e através das Unidas de Capão começou o futebol feminino da região” (Ribeiro, 2023, p. 2). Na época em que a equipe feminina do Maracanã estava na ativa, a única divulgação das competições e eventos promovidos pela equipe era através do radialista Pedro, na transmissão da rádio em que ele trabalhava, localizado no município de Capão da Canoa/RS.
Conclusões
O estudo tratou de reconstituir as memórias da equipe feminina de “futebóis” do Clube Maracanã do município de Maquiné/RS, que teve uma curta trajetória, iniciada em 1992 e encerrada no ano de 1997. Talvez, a realização desta pesquisa somente foi possível porque uma das pesquisadoras foi jogadora da equipe e guardou muitas lembranças positivas daquela época,ao passo que são raras fotografias e outros tipos de registro do clube em questão. No caso deste estudo, o acervo pessoal de uma das pesquisadoras e a História Oral possibilitaram reconstituir as memórias de mulheres,de distintas faixas etárias,escolaridade e experiências esportivas, na prática de “futebóis”. A despeito da escassez de fontes, inclusive no clube Maracanã, considera-se que os indícios apresentados podem contribuir para a compreensão da trajetória do futebol de mulheres no Brasil.
A análise das fontes históricas mostra que a prática de “futebóis” se manteve, principalmente, pelo empenho das mulheres. A análise temática de conteúdo das entrevistas revelou que as mulheres se reuniam no campo do clube Maracanã para realizarem os treinamentos, cuja frequência era de no máximo duas vezes por semana. Aos poucos começaram a participar de competições, que ocorriam em vários municípios do Rio Grande do Sul, disputando apenas uma competição fora do estado, em Santa Catarina. Ao longo do tempo, a equipe começou a participar de competições de futebol sete, uma vez que o número de atletas era reduzido. A equipe pagava os custos com deslocamento, alimentação, inscrição, dentre outros nas competições. O deslocamento das mulheres era feito, geralmente em uma kombi, pois comportava a equipe e era o meio disponível. O Maracanã emprestava para as mulheres o uniforme da equipe masculina de futebol para representarem o clube. E, a alimentação era por conta das mulheres, que levavam sanduíches, bolachas, frutas, dentre outros lanches. Nas competições, para a equipe vencedora, além do tradicional troféu e medalhas, a premiação era um tanto inusitada, por exemplo, um terneiro (novilho). Inclusive, a equipe vendeu este prêmio para obter recursos financeiros a fim de custear gastos com as viagens.
Ao buscar os possíveis motivos do fim da equipe feminina de “futebóis”, identificou-se, nas entrevistas, que as jogadoras foram estudar e trabalhar em outras cidades, e não houve renovação. Embora com uma curta trajetória,a reconstituição das memórias da equipe feminina de “futebóis” do Maracanã tratou de assinalar a necessidade de se narrar histórias de mulheres que se organizaram em torno de práticas corporais que ao longo do tempo foram tomadas como não próprias a seus corpos. Ainda, consideramos que as entrevistas reavivaram memórias afetivas das jogadoras que, provavelmente não tinham a dimensão dos sentidos e significados da sua prática naquele tempo e lugar.
Referências
Antônio, R.R. (2023). Entrevista de Rosaura Romão Antônio concedida a Fernanda Goldani. Osório/RS. 29 min 40 seg. [Material não publicado].
Balardin, G.F., Voser, R.C., Duarte, M.A., e Mazo, J.Z. (2018). O futebol feminino no Brasil e nos Estados Unidos: semelhanças e diferenças no esporte. RBFF - Revista Brasileira De Futsal e Futebol, 10(36), 101-109. http://www.rbff.com.br/index.php/rbff/article/view/549
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