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ISSN 1514-3465

 

Construção e utilização de um diário de campo

para observações de uma oficina de judô

Construction and Use of a Field Diary for Observations of a Judo Workshop

Construcción y uso de un diario de campo para observaciones de un taller de judo

 

Rodrigo Augusto Trusz*

rodrigo.trusz@gmail.com

Carlos Adelar Abaide Balbinotti**

carlos.balbinotti@ufrgs.br

 

*Doutor em Ciências do Movimento Humano

da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança

da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ESEFID/UFRGS)

Mestrado em Ciências do Movimento Humano (ESEFID/UFRGS)

Licenciatura Plena em Educação Física (ESEFID/UFRGS)

Faixa preta Ni-Dan pela Confederação Brasileira de Judô

Árbitro de judô, categoria nacional. Professor de Educação Física

da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre.

**Professor titular da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança (ESEFID)

da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

e do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano (PPGCMH)

da UFRGS. Doutorado em Ciências do Desporto

pela Universidade do Porto, Portugal

Mestrado em Ciências do Movimento Humano pela ESEF/UFRGS

Licenciatura em Educação Física

(Brasil)

 

Recepção: 20/07/2023 - Aceitação: 27/08/2023

1ª Revisão: 31/07/2023 - 2ª Revisão: 24/08/2023

 

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https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/deed.pt

Citação sugerida: Trusz, R.A., e Balbinotti, C.A.A. (2023). Construção e utilização de um diário de campo para observações de uma oficina de judô. Lecturas: Educación Física y Deportes, 28(306), 173-191. https://doi.org/10.46642/efd.v28i306.7138

 

Resumo

    O relato acerca dos benefícios cognitivos e psicossociais da prática do judô por crianças está mais associado à percepção e observação dos/as sensei no cotidiano das aulas, apontando para a necessidade da existência de instrumentos que possam fazer apontamentos de forma científica. Nesse sentido, o objetivo deste artigo foi construir um diário de campo e testar um roteiro para as observações acerca do aprendizado de habilidades sociais de crianças praticantes de judô. Foi elaborada uma base conceitual através de revisão bibliográfica sobre a utilização do diário de campo associado ao método de observação participante em pesquisa qualitativa e um estudo piloto com uma turma de judô. A partir da análise da bibliografia e da experiência no estudo piloto, foi produzido um diário de campo descritivo-reflexivo contemplando, além dos campos descritivos, uma ficha de observação de situações de relações interpessoais que ocorrem nas aulas de judô. Concluiu-se que esta experiência produziu um diário de campo que se configurou como um instrumento de coleta de informações claro e pertinente, atendendo ao propósito das observações do estudo.

    Unitermos: Judô. Crianças. Diário de campo. Observação participante. Habilidades sociais.

 

Abstract

    The report about the cognitive and psychosocial benefits of the practice of judo by children is more associated with the perception and observation of the sensei in the daily life of the classes, pointing to the need for the existence of instruments that can make notes in a scientific way. In this sense, the aim of this article was to build a field diary and test a script for observations about the learning of social skills by children practicing judo. A conceptual basis was elaborated through a bibliographic review on the use of the field diary associated with the participant observation method in qualitative research and a pilot study with a judo group. From the analysis of the bibliography and the experience in the pilot study, a descriptive-reflective field diary was produced, contemplating, in addition to the descriptive fields, an observation form of situations of interpersonal relationships that occur in judo classes. It was concluded that this experience produced a field diary that was configured as a clear and relevant information collection instrument, meeting the purpose of the study observations.

    Keywords: Judo. Kids. Field journal. Participant observation. Social skills.

 

Resumen

    El informe sobre los beneficios cognitivos y psicosociales de la práctica del judo por parte de niños y niñas está más asociado a la percepción y observación del/de la sensei en las clases diarias, apuntando a la necesidad de la existencia de instrumentos que puedan tomar notas de forma científica. En este sentido, el objetivo de este artículo fue crear un diario de campo y experimentar una guía de observaciones sobre el aprendizaje de habilidades sociales de niños y niñas que practican judo. Se desarrolló una base conceptual a través de una revisión bibliográfica sobre el uso de diarios de campo asociados al método de observación participante en una investigación cualitativa y un estudio piloto con una clase de judo. A partir del análisis de la bibliografía y de la experiencia en el estudio piloto, se elaboró ​​un diario de campo descriptivo-reflexivo, incluyendo, además de los campos descriptivos, una ficha de observación de situaciones de relaciones interpersonales que ocurren en las clases de judo. Se concluyó que de esta experiencia se obtuvo un diario de campo que se configuró como un instrumento de recolección de información claro y pertinente, cumpliendo con el propósito de las observaciones del estudio.

    Palabras clave: Judo. Niños y Niñas. Diario de campo. Observación participante. Habilidades sociales.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 28, Núm. 306, Nov. (2023)


 

Introdução 

 

    O envolvimento em pesquisa científica é motivado por diversos fatores, normalmente definidos pelas escolhas do/a pesquisador/a ou grupo de pesquisa, escolhas essas relacionadas ao seu cotidiano. Dessa maneira, é possível entender a pesquisa científica como uma ação política, considerando que, desde a escolha do tema até a apresentação dos resultados, toda a produção oriunda desse processo ocorre a partir da compreensão das experiências vivenciadas na/pela sociedade (Oliveira, 2014). Pesquisas na área da Educação, da Psicologia, entre outras, que buscam investigar e articular a teoria com experiência prática na produção de conhecimento, têm sido cada vez mais frequentes, configurando o trabalho de campo como uma importante estratégia de pesquisa. (Triviños, 1987; Bogdan, e Biklen, 1994; Gil, 2008; Deslandes, Gomes, e Minayo, 2013; Richardson et al., 2017; Kroef, Gavillon, e Ramm, 2020)

 

    Com uma caracterização mais aproximada ao viés qualitativo, a pesquisa de campo busca compreender os fenômenos no seu acontecer natural, contemplando todos os segmentos da situação analisada em suas interações e influências recíprocas. Nessa perspectiva, o ambiente natural é a fonte direta para coleta de dados e o pesquisador é o instrumento chave (Triviños, 1987; Gil, 2002; Lakatos, e Marconi, 2003; Flick, 2009). Sobre a abordagem qualitativa, considera a existência de um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito que não pode ser traduzido em números, tendo a interpretação dos fenômenos e a atribuição de significados como requisitos básicos para o seu desenvolvimento, no qual os processos e seu significado são os focos principais de abordagem. (Flick, 2009)

 

    Quando se fala sobre a realização de uma pesquisa científica, independente da abordagem, se quantitativa ou qualitativa, o cumprimento dos processos normativos que envolvem seu desenvolvimento é indispensável (Galeffi, 2009). É necessário o cumprimento de itens e procedimentos para o trabalho caracterizar-se como um estudo científico, desde a definição do tema e abordagem, primeiramente, até a elaboração do problema, da justificativa e dos objetivos do estudo. Delineada a proposta do estudo, define-se o método, e nesta parte escolhem-se as técnicas e os instrumentos que servirão para a coletas de dados/informações. (Gil, 2002; Lakatos, e Marconi, 2003; Flick, 2013; Gaya, 2016)

 

    Os instrumentos de coleta de dados/informações são a ferramenta para o processo de coleta, levantamento e tratamento das informações e divulgação dos resultados (Barroso, 2012; Rafagnin, Madruga, e Furtado, 2020). Recebe a denominação de instrumento de pesquisa todo o mecanismo que é utilizado para a coleta de dados, os meios que o/a pesquisador/a utilizará para obter as informações que poderão responder aos objetivos do estudo (Rudio, 1986; Gaya, 2016). Desse modo, a escolha do instrumento deve ser bem avaliada pelo/a pesquisador/a, de maneira que possa analisar qual se adéqua melhor a proposta do estudo a ser executado e identifique quais os aspectos positivos e negativos específicos do instrumento de pesquisa a ser utilizado. (Galeffi, 2009; Barroso, 2012; Richardson et al., 2017)

 

    Estabelecer o método e os instrumentos para coleta de dados se configuram tão importantes quanto o texto final de apresentação dos resultados de uma pesquisa científica. Apresentar as conclusões de um estudo só é possível devido aos instrumentos utilizados na coleta de dados e a interpretação dos resultados obtidos. Outro aspecto importante e que dá legitimidade à uma pesquisa científica considera que, o ato de descrever os procedimentos metodológicos, além de conceder um aspecto de formalidade, possibilita que o estudo seja replicado por outros/as pesquisadores/as e oportuniza a testagem e confirmação das considerações apontadas originalmente. (Galeffi, 2009; Barroso, 2012; Richardson et al., 2017)

 

    Estratégias de pesquisa contemporâneas, como a pesquisa-intervenção ou a pesquisa-ação, fazem uso da observação associada a escrita de diários de campo como instrumento de registro, indicando um engajamento intenso entre pesquisador/a e campo de pesquisa, sendo esse engajamento considerado um ponto fundamental. A utilização dessa metodologia proporciona a visualização de aspectos do envolvimento do/a pesquisador/a com o campo de estudo, contemplando tanto o desenvolvimento das atividades realizadas, como também as possíveis alterações realizadas ao longo da investigação, auxiliando também como um relato transcrito das percepções do/a pesquisador/a. (Kroef, Gavillon, e Ramm, 2020)

 

    Em se tratando do campo de estudo das habilidades sociais, já vem há algum tempo que intervenções para a aprendizagem destas habilidades entre grupos e contextos distintos tem ganhado cada vez mais espaço (Bolsoni-Silva, 2002). Estas habilidades são consideradas requisitos fundamentais para a saúde psicossocial das pessoas devendo ser trabalhadas desde a infância, o que tem provocado o interesse cada vez maior em propor, avaliar e implementar programas voltados para a promoção de habilidades sociais no contexto das escolas (Batista, e Marturano, 2015; Del Prette, e Del Prette, 2017; Acosta, e Martínez, 2020). Nessa perspectiva, pode-se dizer que estes programas podem ter sua eficácia investigada por pesquisas que utilizem a observação participante e o registro em diário de campo como recurso metodológico.

 

    As propostas de implementação de programas de treinamento e aprendizado de habilidades sociais que tem sido ofertada no contexto escolar visam, de maneira geral, ampliar o repertório de comportamentos socialmente habilidosos, bem como melhorar o desempenho acadêmico de crianças com baixo rendimento escolar (Batista, e Marturano, 2015; Del Prette, e Del Prette, 2017; Acosta, e Martínez, 2020). Nesse sentido, trabalhar o aprendizado de habilidades sociais através da prática de esportes na escola configura-se como uma opção interessante. O esporte, por ser desenvolvido no meio natural do cotidiano das crianças, contribui efetivamente para o aprendizado delas, especialmente de competências sociais (Saldaña, Barrios, e Encina, 2020). As atividades esportivas têm sido uma alternativa eficaz não apenas para o desenvolvimento da aptidão física, mas para o desenvolvimento psicossocial de crianças e adolescentes, promovendo aprendizados importantes para o processo de socialização. (Machado et al., 2007)

 

    Dentre as atividades esportivas mais citadas para se desenvolver um trabalho de educação e socialização pelo esporte nas escolas está o judô. Este esporte de combate pode funcionar como uma excelente ferramenta para o ensino/aprendizado de habilidades sociais, como, por exemplo, o respeito às normas e regras de conduta nos espaços de convivência, o saber lidar com interrupções e provocações de colegas, o respeito à hierarquia, entre outras, contribuindo de maneira efetiva e significativa para a formação cognitiva e psicossocial dos praticantes. Utilizar o judô, reconhecidamente uma prática que promove valores morais e éticos quando é trabalhado nessa perspectiva (Kozdraś, 2019; Martinkova, Parry, e Vágner, 2019), para desenvolver o aprendizado de habilidades sociais na escola pode ser um caminho interessante a seguir.

 

    Entretanto, o relato acerca dos benefícios cognitivos e psicossociais da prática do judô por crianças está mais associado à percepção e observação dos/as sensei no cotidiano das aulas, ou seja, um conhecimento empírico (Trusz, Balbinotti, e Nunes, 2022), assim como acontece com outras modalidades de combate (Ferreira, Marrero, e Ramos, 2019; Ng-Knight et al., 2021; Pinto-Escalona et al., 2021). Nesse sentido, compreende-se que a utilização do método de observação participante associada ao registro em diário de campo configura-se como a alternativa metodológica que poderá apresentar informações acerca da eficácia do judô para o aprendizado de habilidades sociais dos praticantes. A construção de um diário de campo que registre com fidedignidade tudo o que foi observado nas aulas é essencial para a realização de uma pesquisa com esse propósito.

 

    Assim, considerando a necessidade de viabilização desse instrumento, de maneira que contemple as informações necessárias para análise acerca do aprendizado de habilidades sociais por crianças através da prática de judô, procedeu-se com a realização deste estudo. A partir da análise da bibliografia sobre a utilização do diário de campo associado a observação participante na pesquisa qualitativa, buscou-se, através da experiência com um estudo piloto de uma oficina de judô para crianças, construir um diário de campo e testar um roteiro para as observações acerca do aprendizado de habilidades sociais de crianças praticantes de judô.

 

Metodologia 

 

    Este estudo utilizou a abordagem qualitativa para a elaboração da base conceitual acerca da utilização, construção e validação do diário de campo associado ao método da observação participante como instrumento para coleta e análise de informações, bem como para a análise da experiência vivenciada no projeto piloto da oficina de judô. A opção por esse enfoque ocorreu pelo entendimento de que o processo e seu significado são os focos principais de abordagem. (Flick, 2009)

 

    Num primeiro momento, foi organizada uma base conceitual acerca da utilização do diário de campo associada ao método da observação participante como instrumento para coleta e análise de dados na pesquisa qualitativa. Para tanto, uma pesquisa bibliográfica de livros sobre metodologia da pesquisa qualitativa e pesquisa social, e artigos científicos que abordam a utilização do diário de campo na pesquisa qualitativa foi realizada. Num segundo momento, elaborou-se um projeto piloto para uma oficina de judô para crianças, na qual nosso foco de observação foi o aprendizado de habilidades sociais. Esta oficina de judô foi realizada com crianças de uma Escola da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, na qual o professor-pesquisador trabalha.

 

    A oficina ocorreu nas dependências da Escola, em uma sala montada especificamente para este fim. Esta sala possui 32 m² de área total e 25 m² de área de tatame montada (material E.V.A. com 30 mm de espessura). Teve 4 meses de duração, ocorrendo de abril/2019 a julho/2019, com duas aulas semanais de 45 minutos, num total de 28 aulas. Participaram 26 crianças (11 meninos e 15 meninas), com idades entre 8 e 9 anos, todos/as integrantes da mesma turma de 3º ano do Ensino Fundamental. A oficina de judô fazia parte do Programa de Integralização da Escola, ocorrendo no turno inverso aos das aulas regulares dos/das estudantes. A participação das crianças na oficina teve o consentimento/autorização assinado pelos pais/responsáveis, que participaram de uma reunião com a professora referência da turma, a supervisora escolar e o professor de judô/pesquisador.

 

    O programa de conteúdos trabalhados com os/as alunos/as na oficina contemplou a tradição e etiquetas do judô (saudações, meditação), incluindo um breve histórico e biografia do seu criador, técnicas de amortecimento de quedas (ukemi); formas de deslocamento (shintai e tai sabaki); técnicas de domínio no solo (osaekomi waza); e técnicas de projeção (nage waza). Exceto pelos momentos de início e final da aula, nos quais se adotou uma postura voltada para as tradições, executando as saudações e meditação, o desenvolvimento das aulas ocorreu com uma abordagem mais lúdica, no qual utilizou-se de brincadeiras e jogos para o ensino do repertório técnico, alternando com estratégias mais tradicionais, como por exemplo, treino de repetição de entrada de golpes (uchikomi). (Kano, 2020)

 

    As observações foram relatadas em um caderno modelo escolar, sendo destinada uma folha para o registro das ocorrências do dia. Para cada dia registrado era informado um cabeçalho contendo a data da aula, a data do registro, o número de alunos presentes e o conteúdo/tema da aula do dia. As notas de campo no início do projeto piloto seguiram o formato de tópicos, sendo registradas as observações que o professor-pesquisador entendia como pertinentes ao tema do estudo, qual seja, o aprendizado de habilidades sociais no contexto da aula de judô.

 

Resultados 

 

    A proposta do projeto piloto foi verificar se a prática do judô, especialmente os momentos que remetiam às tradições e etiquetas, influenciaria no aprendizado de habilidades sociais. Utilizou-se como método a pesquisa-ação para averiguar esse fenômeno. Esse tipo de pesquisa exige o delineamento do tema de estudo e a elaboração da estratégia metodológica alinhados à criação de uma condição de experiência exclusiva (Thiollent, 2008). E assim, é nesse cenário de conjunção que surge o campo empírico do estudo, concebido pelas relações entre os envolvidos, participantes e pesquisador/es (Kroef, Gavillon, e Ramm, 2020). Formulada a proposta de intervenção no campo de estudo, definiu-se que a coleta de informações aconteceria pelo método da observação e o registro dessas observações seria feito em um diário de campo.

 

    Cabe destacar que a proposta de estimular o aprendizado de habilidades sociais através da prática do judô remete às origens deste esporte de combate. Na sistematização do antigo ju-jutsu, a arte marcial praticada pelos guerreiros japoneses, Jigoro Kano estabeleceu que seu método proporcionaria o treinamento do corpo, da mente e da moral de forma integrada. Para isso, além das técnicas selecionadas do ju-jutsu, ele agregou princípios da cultura japonesa (ju - suavidade, gentileza; seiryoku-zenyo - uso eficiente da energia mental e física; jita kyoei - prosperidade e benefícios mútuos) para que este objetivo fosse atingido, configurando o judô como um método de educação global para os praticantes. (Kano, 1986; Kano, 2008; Casado, e Villamón, 2009; Nunes, e Trusz, 2018; Kozdraś, 2019)

 

    As aulas da oficina seguiram a seguinte estrutura: entrada no tatame (ritsu-rei), alinhamento para meditação (mokusô), saudação coletiva (za-rei), aquecimento (com brincadeiras, corridas, ginástica), exercícios de amortecimento de queda (ukemi), demonstração e execução de técnicas (uchikomi ou nage komi), exercícios de combate (randori, brincadeiras ou jogos de oposição), alinhamento para meditação (mokusô), saudação coletiva (za-rei) e saída do tatame (ritsu-rei). Essa estruturação das aulas remete à influência do judô ensinado pelos imigrantes japoneses, que praticavam judô nas colônias como forma de vivenciar a sua cultura e que somente aos poucos foram repassando o conhecimento aos brasileiros (Nunes, e Rubio, 2012). Mesmo com o passar do tempo e a utilização de métodos e recursos mais modernos, como a inclusão da ludicidade em muitas atividades do treino de judô (Cirino, e Pereira, 2021), esta estrutura ainda é bastante utilizada no Brasil. (Moreira et al., 2019; Trusz, Balbinotti, e Nunes, 2022)

 

    Procurou-se registrar no diário aquilo que foi visto e ouvido, bem como as percepções e vivências durante cada aula na oficina de judô. Os registros relatavam o “clima” geral das aulas, desde os momentos pré-aula, de preparação dos/as alunos/as vestindo o uniforme, até os momentos da oficina relacionados aos comportamentos apresentados pelos/as alunos/as, indicando quantos haviam conseguido manter a concentração nos momentos de meditação, quantos haviam conseguido executar a saudação sem o lembrete do professor/pesquisador. As anotações foram registradas no cenário da atividade da pesquisa no mesmo dia da observação, porém algumas foram realizadas em um ou dois dias depois, tendo em vista que o professor/pesquisador atendia outras turmas em seguida à da oficina.

 

    Após cerca de 8 aulas de judô registradas no diário de campo, percebeu-se que a forma geral com a qual as informações eram relatadas, apesar de considerar todos os momentos da aula, não estava atendendo por completo ao objetivo do estudo, qual seja, relatar as possíveis mudanças comportamentais nas crianças. Resolveu-se determinar que o foco dos relatos seria direcionado para o momento do ingresso e saída da área de tatame, observando se os/as alunos/as executavam a saudação oriental. E ao final da aula, no momento de alinhamento para saudação, ao realizar-se a meditação, observando a manutenção da postura e do silêncio durante esse momento. Dessa forma pode-se observar duas situações específicas de exercício de habilidades sociais: pedir licença, e respeito às normas e regras dos locais de convivência (saudação para ingresso no tatame); e acalmar-se e manter a concentração (meditação).

 

    Assim, para melhor organizar os registros, estabeleceu-se um roteiro em duas partes: a primeira em formato de ficha de registro da aula (Figura 1), na qual foram registrados aspectos descritivos como data, horário de início e de término da aula, o conteúdo/tema, bem como aspectos reflexivos acerca do desenvolvimento da aula, do estado de humor geral da turma, dificuldades e facilidades na condução da aula e ocorrências (apenas de situações fora da rotina normal). Foram anotadas as percepções quanto à execução do plano de aula, indicando se foi possível cumpri-lo de forma integral, se não foi possível, se houve necessidade de mudanças e as possíveis razões para isso. A segunda parte, uma ficha de observação de habilidades sociais (Figura 2), em formato de scout, no qual foram registrados os alunos/as presentes no dia e a indicação sobre a execução da saudação de forma espontânea e da postura na meditação. Essa indicação foi realizada através da atribuição de um código, sendo atribuído 1 ao aluno/a que desempenhou de forma espontânea e 0 para o/a aluno/a que não o fez.

 

Figura 1. Ficha de Registro da Aula

Figura 1. Ficha de Registro da Aula

Fonte: Construção dos autores (2022)

 

Figura 2. Ficha de Observação de Habilidades Sociais

Figura 2. Ficha de Observação de Habilidades Sociais

Fonte: Construção dos autores (2022)

 

Discussão 

 

    A ideia inicial foi registrar todos os momentos da aula. Entretanto, os registros somente puderam ser feitos ao final do dia, tendo em vista que o professor/pesquisador atendia outras turmas em seguida à da oficina. Essa situação ocasionou a perda de informações importantes, principalmente às relacionadas ao aprendizado de habilidades sociais, foco principal das observações. Uma dificuldade que se apresentou foi o tempo excessivo que os/as alunos/as levavam para vestir o uniforme de judô (judogi), ocasionando perda de 10 a 15 minutos de aula, deixando-os mais agitados. Entretanto, com o decorrer das aulas, esse fato foi usado para praticar um elemento da tradição do judô, a meditação (mokusô), como recurso para o aprendizado das habilidades “acalmar-se”, “prestar atenção” e “manter a concentração”. (Del Prette, e Del Prette, 2017)

 

    Dessa forma, o diário de campo utilizado para o registro das observações cumpriu duas funções específicas: 1) ferramenta para revisão das práticas trabalhadas na oficina; e 2) instrumento para registro das ocorrências no grupo, produzindo conhecimento acerca dessas ocorrências. Importante destacar que a produção de novos conhecimentos ocorre não apenas pelas ações dos sujeitos do grupo que está sendo estudado, mas também pelo pesquisador que está acompanhando, observando e interagindo. Essa produção recíproca de conhecimentos é elemento chave para que se forme a identidade grupal, criando situações facilitadoras no processo de investigação (Freitas, e Pereira, 2018). O fato de o professor/pesquisador fazer parte do corpo docente da Escola contribuiu muito para que as interações na oficina acontecessem de maneira mais natural.

 

    Outro ponto a destacar, a oficina de judô fazia parte do currículo das turmas de integralização, ocorrendo de forma independente à realização da pesquisa. Essa situação também contribuiu para a naturalização das interações entre o professor/pesquisador e os/as alunos/as. A pesquisa ocorreu em razão da oficina e não o contrário. Dessa maneira, foi possível estabelecer que a relação entre professor/pesquisador, alunos/as e fenômeno investigado converteu-se numa questão determinante da produção de conhecimento, dando rumo à pesquisa. O diário de campo se mostrou uma ferramenta apropriada para os registros das observações, se configurando não apenas num instrumento de coleta de informações, mas também de intervenção, na medida que provocou reflexões sobre todos os processos da pesquisa, incluindo o planejamento, o desenvolvimento e os métodos de análise. (Kroef, Gavillon, e Ramm, 2020; Campos, Silva, e Albuquerque, 2021)

 

    No diário de campo, as notas registradas incluíam o registro de observações do comportamento dos/as alunos/as durante a aula, das falas deles/as e do professor/pesquisador, além de conversas informais com as professoras referência e volante da turma. Sobre as falas registradas ressaltam-se aquelas que tinham relação com os comportamentos combinados para o bom andamento da aula, como por exemplo, um colega avisando ou cobrando outro para cuidar da atitude, ou do próprio professor/pesquisador com a mesma ênfase. Foram registradas também as impressões pessoais do próprio professor/pesquisador. Em um primeiro momento, precisamente nas primeiras semanas de aulas da oficina, estas notas de campo foram registradas em um formato de texto contínuo que resumiam os acontecimentos da aula. Numa primeira análise, percebeu-se que esta estratégia não era a mais adequada, uma vez que informações essenciais sobre os comportamentos dos/as alunos/as não estavam sendo registradas de forma detalhada.

 

    A elaboração do instrumento em formato de fichas de observação possibilitou organizar um diário com maior fluidez para a leitura e interpretação das informações, especialmente nas que foram determinadas como o foco das observações, indicando que esta estratégia se mostrou adequada tanto para a análise das informações quanto para a futura escrita do texto final. A flexibilidade para a elaboração, a possibilidade de construção gradual do objeto de investigação e o acesso amplificado às vivências práticas (Araújo et al., 2013), o indicam que o diário de campo no formato como foi concebido neste estudo se mostrou uma escolha adequada para investigar a possível influência da prática do judô no aprendizado de habilidades sociais. Além de se configurar como um recurso de registros e apontamentos importante sobre as ocorrências na oficina de judô, apresentou os percursos trilhados na pesquisa do começo ao fim.

 

Conclusões 

 

    A proposta deste estudo foi construir um diário de campo para registro das observações realizadas em uma oficina de judô para crianças com foco no aprendizado de habilidades sociais que apresentasse clareza e confiabilidade nas informações registradas. Foram realizados uma revisão bibliográfica referente à utilização desse instrumento metodológico e um estudo piloto com uma turma da oficina de judô da Escola. Elaborou-se uma base conceitual acerca da utilização do diário de campo enquanto instrumento metodológico na pesquisa qualitativa, aliado ao método da observação participante, e relatou-se a construção de um diário de campo a partir das experiências obtidas com a sua utilização no registro das observações realizadas em uma oficina de judô.

 

    A escolha pela utilização do diário de campo como instrumento de coleta e análise das informações oriundas das observações realizadas na oficina de judô se configurou como pertinente para a proposta deste estudo. Este entendimento considera a imersão do professor/pesquisador no campo-tema da pesquisa, primeiramente em razão do vínculo com a escola e a comunidade atendida ser profundo, são mais de 12 anos ininterruptos de trabalho na Escola. E sua relação com o problema de pesquisa é significativa, uma vez que antes de ser um pesquisador, atua como professor de judô na Escola. Tanto a revisão da literatura quanto a experiência no projeto piloto apontaram que o diário de campo é um instrumento de registro que se consolida no decorrer da pesquisa, adaptando-se ao que o campo apresentou, atendendo assim aos objetivos do estudo.

 

    As dificuldades encontradas no início do projeto piloto se mostraram condizentes com o que se encontrou na revisão de literatura. Apesar de ter estabelecido um roteiro para as observações, no decorrer das primeiras aulas a organização para ministrar a oficina e registrar as notas de campo no diário não ocorreram conforme o planejado, ocasionando em perda de algumas informações relevantes. Entretanto, estas dificuldades fizeram parte do processo de construção do instrumento, mostrando que até mesmo o roteiro de observação poderia ser adaptado para responder às questões do estudo. O percurso trilhado na construção desse diário de campo demonstra a importância da testagem de um instrumento metodológico, no qual buscamos desenvolver os procedimentos para aplicação, realizar a testagem desses procedimentos, de maneira a garantir que possibilitem medir as variáveis pretendidas, conforme orientações buscadas na literatura.

 

    Para concluir, destaca-se que o diário de campo na pesquisa qualitativa é uma tecnologia cuja finalidade não está limitada apenas ao registro das observações e das estratégias de pesquisa. É um instrumento que contribui para a compreensão do objeto de estudo em todas as suas dimensões. Sua construção não está limitada ao início da pesquisa, quando se estabelecem os objetivos e os procedimentos metodológicos, mas ocorre durante a coleta das informações, quando vai se moldando conforme as interações vão ocorrendo. A partir desse entendimento, adquirido a partir da elaboração da base conceitual sobre a utilização do diário de campo na pesquisa qualitativa, bem como da experiência com a construção através do projeto piloto com a oficina de judô na escola, conclui-se que o diário de campo construído neste estudo possui validade e confiabilidade.

 

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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 28, Núm. 306, Nov. (2023)