ISSN 1514-3465
Judô como atividade física inclusiva: oportunidades
de movimentos para corpos desconhecidos
Judo as an Inclusive Physical Activity: Movement Opportunities for Unfamiliar Bodies
El judo como actividad física inclusiva: oportunidades de movimiento para cuerpos desconocidos
José Edson Rodrigues Ferreira
docentefal@hotmail.com
Licenciatura Plena em Educação Física
(Universidade Federal de Alagoas)
Pós-Graduação: Especialização em Esporte Escolar
(Universidade de Brasília-UNB)
Especialização em Educação Física e Cultura
(Universidade Gama Filho)
Especialização em Educação Física Escolar
(Fundação Universitária de Ciências da Saúde de Alagoas)
Especialização em Fundamentos Sócio-Culturais da Educação Física
(Universidade Gama Filho)
Mestrado Pedagogia do Esporte
(REMH/Universidad Católica del Asunción)
Professor Assistente I – Faculdade Estácio de Alagoas (2003-2017)
Presidente da Comissão Estadual de Graduação
da Federação Alagoana de Judô-FAJU Kodansha
6º Dan de Judô pela Confederação Brasileira de Judô (CBJ)
Professor aposentado da Rede Municipal, Estadual e Particular
de Ensino da Cidade de Maceió-Alagoas
(Brasil)
Recepción: 29/05/2023 - Aceptación: 24/02/2025
1ª Revisión: 21/08/2023 - 2ª Revisión: 21/02/2025
Documento acessível. Lei N° 26.653. WCAG 2.0
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Cita sugerida
: Ferreira, J.E.R. (2025). Judô como atividade física inclusiva: oportunidades de movimentos para corpos desconhecidos. Lecturas: Educación Física y Deportes, 30(323), 196-214. https://doi.org/10.46642/efd.v30i323.7054
Resumo
As práticas esportivas alavancam empreendimentos nos cinco continentes proporcionando as pessoas participarem das mesmas, seja na dimensão competitiva, de lazer, educativa ou mesmo para uma melhor qualidade de vida. Na busca de uma melhor qualidade de vida estão inclusas as práticas esportivas e as atividades físicas adaptadas/inclusivas para as pessoas com deficiência. Objetivo general: Mostrar a relevância da prática do judô para pessoas com deficiência, por propiciar a promoção do desenvolvimento neuropsicomotor. Objetivos específicos: a) enunciar a importância que a dimensão educativa inclusiva do judô promove nas pessoas com deficiência, levando-as para melhorias física, mental e social; b) identificar o judô como uma atividade física e esportiva que promove benefícios às pessoas com deficiência através das interações, tomadas de decisão e realizações de tarefas. Método: Realizou-se uma revisão de literatura nas plataformas SciELO, PubMed, Lilacs e Scopus sobre judô, psicomotricidade, filosofia, esporte e inclusão social, e leituras voltadas às questões da inclusão de pessoas com deficiência. Resultado: Encontrou-se comprovações sobre a necessidade da utilização de movimentos corporais para uma boa qualidade de vida, seja na dimensão física, cognitiva ou social de pessoas com TEA e outras deficiências intelectivas. Sendo as práticas esportivas as mais destacadas, por recorrer as habilidades e competências motoras. Conclusão: Evidências de estudos foram encontradas sobre a importância das atividades físicas e esportivas inclusivas no cotidiano das pessoas com deficiência. Surgimento de implantação de programas de atividades físicas tem sido promovidos para pessoas com deficiência à participarem, efetivando o processo de inclusão social.
Unitermos
: Inclusão. Judô. Corpo. Movimento.
Abstract
Sports practices leverage enterprises on the five continents, allowing people to participate in them, whether in the competitive, leisure, educational or even for a better quality of life. In the search for a better quality of life, sports practices, and adapted/inclusive physical activities for people with disabilities are included. General objective: To show the relevance of the practice of judo for people with disabilities, as it promotes neuropsychomotor development. Specific objectives: a) To enunciate the importance that the inclusive educational dimension of judo promotes in people with disabilities, leading them to physical, mental, and social improvements; b) identify judo as a physical and sports activity that promotes benefits to people with disabilities through interactions, decision-making and task achievements. Method: A literature review was conducted on the SciELO, PubMed, Lilacs and Scopus platforms on judo, psychomotricity, philosophy, sport and social inclusion, and readings focused on the issues of inclusion of people with disabilities. Result: evidence was found about the need to use body movements for a superior quality of life, whether in the physical, cognitive, or social dimension of people with ASD and other intellectual disabilities. Sports practices are the most prominent, as they use motor skills and competences. Conclusion: evidence from studies was found on the importance of inclusive physical and sports activities in the daily lives of people with disabilities. The emergence of the implementation of physical activity programs has been promoted for the people with disabilities to participate, effecting the process of social inclusion.
Keywords:
Inclusion. Judo. Body. Movement.
Resumo
Las prácticas deportivas impulsan emprendimientos en los cinco continentes, permitiendo a las personas participar, ya sea en la dimensión competitiva, de ocio, educativa o incluso para una mejor calidad de vida. En la búsqueda de una mejor calidad de vida se incluyen el deporte y actividades físicas adaptadas/inclusivas para personas con discapacidad. Objetivo general: Mostrar la relevancia de la práctica del judo para personas con discapacidad, ya que promueve el desarrollo neuropsicomotor. Objetivos específicos: a) Manifestar la importancia que la dimensión educativa inclusiva del judo promueve en personas con discapacidad, llevándolas a mejoras físicas, mentales y sociales; b) identificar el judo como una actividad física y deportiva que promueve beneficios para personas con discapacidad a través de interacciones, toma de decisiones y realización de tareas. Método: Se realizó una revisión de literatura en las plataformas SciELO, PubMed, Lilacs y Scopus sobre judo, psicomotricidad, filosofía, deporte e inclusión social, y lecturas enfocadas en temas de inclusión de personas con discapacidad. Resultado: Se encontró evidencia sobre la necesidad de utilizar movimientos corporales para una buena calidad de vida, en las dimensiones física, cognitiva o social de las personas con TEA y otras discapacidades intelectuales. Las prácticas deportivas son las más destacadas, ya que utilizan habilidades y competencias motrices. Conclusión: Se encontró evidencia de estudios sobre la importancia de las actividades físicas y deportivas inclusivas en la vida diaria de personas con discapacidad. Se promueve la implementación de programas para la participación de personas con discapacidad, efectuando el proceso de inclusión social.
Palabras clave
: Inclusión. Judo. Cuerpo. Movimiento.
Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 30, Núm. 323, Abr. (2025)
Introdução
A prática esportiva inegavelmente é uma das mais rentáveis, seja na dimensão do espetáculo, na qual milhares e milhares de pessoas se aglomeram para prestigiar, canalizar as energias da agressividade e para descarregar os problemas do cotidiano; na dimensão mercadológica, em que grande, médio e pequenos investidores acreditam no retorno financeiro pelo qual as atividades esportivas proporcionam quando da utilização dos implementos e aparelhos esportivos; e na dimensão educacional ou formativa, em que os praticantes são orientados para uma vida integrada e participativa com os demais seres ou mesmo com o meio ambiente mediante as ações esportivas.
Na prática esportiva dois elementos tornam-se primordiais para gerir as ações, são eles: o corpo e o movimento. O corpo por intermédio de sua vivência motora, pautada pelo desenvolvimento das funções psicomotoras de base, contribuirá na efetivação das ações indispensáveis e requisitadas nas práticas esportivas. Para essa efetivação faz-se necessário o bom desenvolvimento da percepção do corpo, espaço e tempo. (Camposa et al., 2017)
O segundo elemento que será focado neste estudo – o movimento humano. Pois, a partir de um corpo com uma condição psicomotora bem desenvolvida o ser humano adentra na dimensão vivencial do movimentar-se corporalmente no ambiente. Para movimentar-se o ser humano precisa de diversas aptidões para efetivar tal empreendimento. Ou seja, dependerá das influências que contribuíram para a sua maturação (crescimento e desenvolvimento) e das diversas atividades, possíveis, que as crianças e adolescentes são estimuladas a exercitarem. (Gomes, Soares, e Machado Filho, 2020)
Especificamente no judô, crianças e adolescentes, segundo Santos (2013, apud Gomes, Soares, e Machado Filho 2020) são levados a conhecer novos movimentos, melhorar a coordenação e explorar o domínio corporal, demonstrando uma influência direta com a proposta de ensino aprendizagem, necessária para a formação do indivíduo (pp. 6-7). Isto é, proporcionar aos praticantes o aperfeiçoamento de suas habilidades corporais e o desenvolvimento de novos valores e conhecimentos necessários ao cotidiano.
A referida citação permite compará-la com o idealismo do Jigoro Kano shihan quando da criação do Judô Kodokan, o qual seria um modo de educação integral para os indivíduos praticantes. Tsuneo (1994, apud Ferreira 2019) menciona que Kano conceituava o Judô em três situações: a) sistema de Educação Física; b) voltado aos aspectos intelectual e moral; c) como um sistema de arte marcial. Os dois primeiros sistemas foram inspirados nas obras de Herbert Spencer, principalmente na publicação “Educação: intelectual, moral e física”, editada em 1861, abordando as teorias educacionais da época.
Kano shihan visualizava a educação do indivíduo de forma integral, não se preocupando apenas com o físico, mas também com os componentes de ordem filosófica, cultural, política e psicológica, reunidos para promover o desenvolvimento humano (Deliberador, 1996 apud Ferreira, 2020). E, aqui inclui-se mais uma dimensão, a dimensão terapêutica, pois, segundo Kruszewski (2023, p. 11), “atualmente, a atividade física na área de exercícios com elementos de combate corpo a corpo, esportes de combate ou artes marciais começa a fazer parte da prevenção e tratamento de doenças do século 21” (Tradução de autoria).
Os movimentos corporais exercidos nas lutas servem como ferramentas para educar o indivíduo mediante o uso do próprio corpo e dos corpos dos parceiros de treino que, juntos seguem os princípios disciplinares mantendo assim a harmonia do estado físico e mental (Ferreira 2020). As atividades formativas através das lutas e de outras atividades corporais já eram utilizadas na Grécia Antiga e foram denominadas de Paidéia (παιδεία), a formação do homem grego (Jaeger, 2013). No Japão, a partir da Era Meiji (1868-1912) até a presente data, as práticas de luta denominadas de Budô são utilizadas na formação e transformação do indivíduo para uma vida harmoniosa. (Sato, e Inoue, 2019)
E, para Kruszewski (2023, p. 11),
O exercício do combate corpo a corpo nas suas formas evolutivas sempre foi na área do interesse humano. O elemento essencial que os distingue de outras formas de atividade física ao longo deste longo período de tempo é a estreita ligação entre a melhoria da aptidão física e a formação de atitudes morais e éticas (tradução de autoria).
Assim, de modo mais específico, abordar-se-á neste paper a dimensão física, a qual está diretamente relacionada ao movimento do corpo humano. Para tal finalidade realizou-se uma divisão da característica do movimento corporal na seguinte condição:
Aptidão física – relacionada ao vigor físico e à saúde do ser humano. Sendo as atividades indispensáveis: força, resistência, flexibilidade, agilidade, capacidade aeróbia e anaeróbia etc.
Aptidão motora – relacionada a diversas fases de desenvolvimento do indivíduo (Gomes, Soares, e Machado Filho 2020). Aptidões indispensáveis em diferentes posições: em pé sentado de cócoras deitado e outras movimentações do corpo adequando ao tempo e espaço disponíveis. (Gomes, Soares, e Machado Filho, 2020)
Quanto a característica do movimento corporal ressalta-se a importância das aptidões física e motora, as quais contribuem na superação das limitações no campo da comunicação, dos déficits sensoriais, da má função dos membros, do atraso do crescimento e desenvolvimento motor das pessoas com deficiência (Pierantozzi et al., 2022). Aptidões essas necessárias às atividades físicas, aos exercícios físicos e às práticas esportivas que consequentemente darão uma melhor qualidade de vida aos indivíduos.
Portanto, este paper tem como objetivo geral mostrar a relevância da prática do judô para pessoas com deficiência, a qual propicia a promoção do desenvolvimento neuropsicomotor desses praticantes. E, por objetivos específicos: enunciar a importância que a dimensão educativa inclusiva do judô promove às pessoas com deficiência levando-as à melhoria física, mental e social; e identificar o judô como atividade física e esportiva que promove benefícios às pessoas com deficiência através das interações e realizações de tarefas.
Métodos
O presente artigo é uma pesquisa descritiva, de natureza qualitativa, a qual recorreu-se à revisão de literatura que abordasse sobre judô, psicomotricidade, filosofia, esporte e inclusão social de pessoas com deficiência. Buscou-se na WEB, mais precisamente nas Plataformas SciELO, PubMed, Lilacs e Scopus, artigos científicos vinculados ao tema “práticas esportivas e pessoas com deficiência”. Dos 45 artigos baixados, 24 foram excluídos, pois objetivavam as questões do rendimento no judô como modalidade paradesportiva; 21 artigos foram selecionados/inclusos para a fundamentação da pesquisa, sendo: 5 artigos abordando sobre algumas deficiências; 7 artigos referentes à inclusão, esporte inclusivo e saúde; e 9 artigos direcionados às questões da educação e a prática do judô. Recorreu-se também aos livros com conteúdo pertinentes ao tema da pesquisa, dos quais foram utilizados dois autores (Bruaire 1972, 2010; Le Breton, 2012, 2016) como as principais referências para nortear a construção do corpo texto.
A realização desta pesquisa dá-se pela hipótese de que a vivência prática do judô é mais enfatizada na dimensão competitiva do que a dimensão formativa. Ambas devem ser enfocadas por suas reais importâncias, mas uma distinção deve ser efetuada: a prática do judô como atividade física e esportiva com finalidade formativa, a qual engloba a perspectiva educacional com fins de inclusão social e de melhor qualidade de vida dos seus praticantes, possibilitando-os a exercitarem a autonomia e a valorização de si mesmos. E, consequentemente, contribuir na qualidade da dimensão esportiva da performance, servindo como base para os praticantes que se identificarem e optarem pela dimensão competitiva.
A prática esportiva do Judô e seus benefícios à promoção da saúde
A prática do judô é caracterizada pelo encontro de duas pessoas com objetivos idênticos (agarrar, desequilibrar, derrubar e dominar no solo) mas com características e realizações diferentes (habilidades e capacidades). Ou seja, o corpo precisa estar engajado às ações que requer força, precisão, equilíbrio e resistência. Mas, outras competências são indispensáveis para efetivar a prática do judô. São elas: iniciativa pessoal, capacidade perceptível (esquema corporal, espaço-temporal), autonomia motora e conduta social (obediência às regras).
Encaminhar a pessoa com deficiência à prática esportiva, mais especificamente o judô, é conduzi-la à promoção da iniciativa pessoal, melhoria da autoestima, ampliação da socialização, aprendizagem da cooperação, melhoria na comunicação, dentre outros benefícios (Roldán, Martínez-Pujalte, e Reina, 2022). Assim acontecendo, o judô contribuirá na formação e na participação social de modo mais efetivo, ou seja, o cotidiano das aulas de judô levará o praticante a perceber e melhorar a sua imagem corporal, a confiança na sua própria capacidade e inteligência sinestésica, segundo a psicocinética de Le Boulch (Silva, Andrieu, e Nóbrega, 2018)
Para tal efetivação necessita-se dispor às pessoas, com deficiência ou não, ações que tragam benefícios a sua vida cotidiana, pois, segundo Le Boulch (1960; 1971; 1987 apud Silva; Andrieu, e Nóbrega, 2018), promoverá:
Uma educação perceptiva e baseada no conhecimento do corpo; [...]no âmbito da educação pelo movimento o homem como ser social que se educa na relação de comunicação com outrem como um ser da coletividade (p. 1044); [...] permitindo ao homem situar e agir no mundo por meio do conhecimento e aceitação de si; [...]um melhor ajustamento da conduta, desenvolvendo autonomia e responsabilidade no âmbito social; [...] a expressividade e os gestos do corpo nas mais diversas possibilidades, como uma manifestação do corpo presente no mundo. Desse modo, emoção, afetividade e expressividade são inerentes ao corpo e ao movimento humano (p. 1045); [...] a noção de esquema corporal será relevante para a organização da ação motriz.
E, para dar uma maior consistência a citação de Silva, Andrieu, e Nóbrega (2018), inclui-se aqui um fragmento da Lei no 13.146/2015, conhecida como a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência ou Estatuto da pessoa com deficiência, na qual, em seu Art.1, consta a seguinte redação: “destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades por pessoas com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. (Brasil, 2015, p. 8)
Já que a Lei 13.146/2015 aborda sobre o tema liberdades para pessoas com deficiência, eis uma citação de Hannah Arendt (2017), com a mesma relevância do tema:
[...] a liberdade de movimento é historicamente a mais antiga e a mais elementar. Sermos capazes de partir para onde quisermos é o sinal de prototípico de sermos livres, assim como a limitação da liberdade de movimento, desde tempos imemoriais, tem sido a pré-condição da escravização. A liberdade de movimento é também a condição indispensável para a ação, e é na ação que os homens primeiramente experimentam a liberdade do mundo. (p. 16)
Quer dizer, não só a liberdade de movimento na dimensão social, mas, também e principalmente, na dimensão corporal do indivíduo, podendo o judô proporcionar a relação de descoberta, em virtude dos movimentos, promovendo a liberdade de pensar no que pretende realizar, isto é, as ações.
Conforme visto até o momento pode-se afirmar que o indivíduo se realiza e realiza na efetiva utilização de seus sentidos e percepções de seu próprio corpo fazendo dessa vivência um modo de linguagem à qual servirá como expressão do seu existir. Para Bruaire (1972), o querer pessoal dá-se pelos conhecimentos de fatos, advindos do querer pessoal e do próprio corpo, do agir e do sentir. Para esse autor “tentar, tentar e tentar eis a ação do gesto, do movimento, da autonomia de ser fazendo”. (Bruaire, 1972, p. 135)
Quanto maior for a aptidão do corpo para realização de suas ações, maior será as encadeações de aprendizagem e assimilações para as modificações do corpo. Assim, o praticante de judô começará a questionar, a pensar sobre cada ação exercida por ele e pelo outro. O encadeamento de aprendizagem anteriormente citado será o ato de perceber, pensar, agir, explorar e reagir. Segundo Bruaire (1972, p. 65), “a aptidão do corpo não se mede pela força e pela capacidade física” do indivíduo, mas através da “riqueza das relações” que é mantida com todas as outras coisas que estão implicadas na ação.
Ferreira (2022), cita o seguinte:
A essência da prática dar-se-á na relação de bem-estar mútuo para chegar a um determinado objetivo – a vida cotidiana em coletividade à luz de uma proposta de vida baseada no descobrir. Descobrir no sentido de dar condição à; deixar que se revele; se faça presente de modo interativo e integrador. (p. 147)
O fazer-se presente, o revelar-se e o dar condição à, são ações que devem ser exercidas e reconhecidas, pois segundo Seron et al. (2021, p. 11), “[...] especialmente por contribuir para a construção de percepções e atitudes positivas sobre a deficiência, alertando para o fato de que o esporte tem sido um espaço de pertencimento, reconhecimento, oportunidade e direito”. E assim é vivido o cotidiano do judô. A prática do judô como esporte inclusivo provocará mudanças nos olhares, na comunicação e na socialização dos sujeitos praticantes, pois haverá efetividade nas ações dos contatos corporais. Levando a refletir sobre o corpo-sujeito e o corpo-objeto, tanto para o praticante como para os seus familiares e indivíduos do seu grupo social.
A corporeidade das pessoas com deficiência através das práticas de judô
No cotidiano do judô o praticante é estimulado a pensar, refletir e ter consciência sobre a dualidade existente sobre o corpo – corpo-sujeito e corpo-objeto –, e ele é motivado, mediante oportunidades de ações, de se manifestar, a pensar mais, a questionar, a refletir sobre as suas ações no dojô e nos demais ambiente do seu cotidiano social. Tomar decisão na prática do judô é uma de suas principais ações. E, para que isto aconteça o aluno é orientado a construir a sua autonomia, seja ela procedimental (corporal), atitudinal e conceitual.
Infelizmente não se pode negar a existência da dualidade conceitual sobre o corpo, principalmente no judô por ser uma prática esportiva de confronto (físico e mental) realizado entre duas pessoas, em que cada uma sempre questionará: como sou visto por ele? Tal questionamento levará ao que Bruaire (1972) chamou de “transcendência transcendida pela minha transcendência”. Para ele o questionamento dá-nos uma reposta assertiva: “meu corpo é, para mim, ao mesmo tempo puro sujeito e puro objeto-do-outro”. (p. 109).
Deste modo, Bruaire (1972) conclui:
Assim, meu corpo para mim e para outrem, seu ser-para-si e seu ser-para-outrem, são apenas um, graças o ato de expressão que opera sobre as diferenças, portanto sobre as relações entre mim e meu corpo. E isto, até que os próprios sujeitos diferentes, totalmente distintos, incomparáveis absolutos em sua liberdade impartilhável, façam existir o positivo, real e manifesto, ativo e eficaz, de sua respectiva autodeterminação, pelo e no único elemento do sentido revelado; ele mesmo, por sua vez, suscitado e promovido graças ao único poder do desejo natural. (Bruaire, 1972, p. 112)
Na concepção de Bruaire (2010),
Ter acesso a autonomia, no caminho da vida, à medida que se dá a formação dos hábitos que o conformam, em docilidade crescente ao comportamento voluntário, é aprender a ser para si, a reconhecer-se em seu ser próprio, no tempo em que se procura ser reconhecido pelo outro. (p. 38)
É inegável a colocação de Bruaire (2010), na citação acima, principalmente quando ele utiliza de dois termos essenciais à vivência social - a autonomia e o reconhecimento pelo outro. Mas quando adentramos no campo da educação inclusiva, da inclusão social de forma efetiva é perceptível as barreiras para a efetivação destas vivências para as pessoas com deficiência. Para eliminar tais empecilhos, foi promulgada a Lei Federal no 13.146/2015, posto que no seu Art. 3, parágrafo IV considera como barreiras (para o desenvolvimento da autonomia e o reconhecimento pelo outro), como consta no texto, os seguintes itens:
Qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros. (Brasil, 2015)
Infelizmente ainda há carência de serviços adequa dos que devem garantir o ir-e-vir de pessoas com deficiência, pois o que deve estar visivelmente público é a redução dessas barreiras sociais. (Oliver, 1990; Smith, e Bundon, 2018 apud Seron et al., 2021)
Faz-se necessário uma verdadeira transformação, um verdadeiro movimento educativo e conscientizador nos meios sociais de que há uma legitimação, mesmo que seja por força de uma legislação, de que as pessoas com deficiência também são pessoas que merecem e devem ser tratadas de forma igualitária, cidadã, humanitária perante o convívio social, civilizatório. Ou seja, esse processo de educação, aprendizagem, transformação do indivíduo pode ser percebido na Lei no 13.146 de 6 de julho de 2015 denominada como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Na qual, em seu Art. 1, consta que é “destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades por pessoas com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”. (Brasil, 2015, p. 8)
E, no Art. 2, da referida lei, contém a seguinte redação:
Considera-se por pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, tem interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (Brasil, 2015, p. 8)
O artigo acima utiliza os termos participação plena e efetiva na sociedade e, para suprir tal necessidade eis uma citação de Monforte, Devís-Devís, e Úbeda-Colomer (2020, p. 402):
En los últimos años, se ha señalado la necesidad de desarrollar programas de promoción de la actividad física (AF) dirigidos a las personas con discapacidad, habida cuenta de los altos niveles de inactividad que presenta este colectivo y las consecuencias negativas que esto acarrea para su salud física y psicosocial.
Tem-se como exemplo para esta citação sobre a importância da atividade física na vida das pessoas com deficiências os vários estudos realizados com crianças apresentam várias dificuldades nos aspectos da função motora. (Kaura; Srinivasana, e Bhata, 2018; Najafabadi et al., 2018)
Enfatizando a importância das atividades físicas e das práticas esportivas na melhoria da qualidade de vida das pessoas com deficiência, Pečnikar Oblak et al. (2020) ressalta a grande quantidade de publicações em diversos países, dentre eles o Brasil, Finlândia, Israel, Japão, Polônia, Romênia, Rússia, Eslovênia, Sérvia, Espanha e EUA, fazendo referências à prática do judô para as pessoas com deficiência intelectual nesta década de 2020.
Monforte et al. (2020 p. 402) cita que “diversos estudios en el ámbito internacional han examinado los correlatos de la actividad física en personas con discapacidad con el objetivo de desarrollar intervenciones que reduzcan los niveles de inactividad en este colectivo”.
Assim, do que foi apresentado até o momento pode-se crer, baseando-se também nos argumentos de Abbasi, Farhan, e Hussain (2020), que as pessoas com deficiência, a partir dessas promoções de atividades físicas e esportivas adaptadas e com características de inclusão, poderão usufruir de benefícios psicofísicos e sociais (redução da tensão, ansiedade e depressão, realização de tarefas cotidianas).
Nessa perspectiva, a prática dos esportes deve ser propagada e instituída como ação socializadora e inclusiva, e que a dimensão competitiva/rendimento não seja a vertente principal, mas uma das dimensões, pois tão importante quanto a competição temos a dimensão formativa/educativa. Dimensão essa que sendo bem planejada e orientada servirá como base para a dimensão competitiva.
A exacerbação da prática esportiva com finalidades de promover o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo, principalmente as habilidades e capacidades físicas apenas visando a competição e, caso aconteça, relegando o lado formativo e educacional, estará na contramão da Lei no 13.146/2015 quando no Capítulo IV – Do Direito à Educação, em seu Art. 27. Lê-se no referido artigo:
A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem. (Brasil, 2015, p. 19) (grifo nosso)
Viria de encontro também com a Base Nacional Comum Curricular-BNCC que caracteriza as aulas de educação física como um dos componentes curriculares da área de conhecimento e, as práticas esportivas aparecem como uma das unidades temáticas que recorrem das ações motrizes, cognitivas e sociais para contribuir no processo da formação e educação dos indivíduos, sem exaltar o processo competitivo, “especialmente quando o esporte é realizado no contexto do lazer, da educação e da saúde”. (Brasil, 2018, p. 215; Abbasi, Farhan, e Hussain, 2020)
Aqui fica o destaque do contexto do judô como atividade física esportiva com fins terapêuticos pois, segundo Pierantozzi et al. (2022), a mesma quando oferecida como atividade extracurricular oportuniza as crianças escolares à novas interações sociais, além de prevenir doenças e melhorar as habilidades motoras de crianças.
Assim, diante do que foi exposto, pode-se afirmar que o aprendido nas práticas esportivas, aqui o enfoque para o judô, e o que se aprende na vida serão utilizados no caminhar da transformação e que servirão para toda vida, principal objetivo das Artes Marciais contemporâneas (atualmente denominada Budô [bu, significando guerra, conflito; dô, caminho, via]), também conhecida como a via da transformação, do autoconhecimento e da liberdade. E, daí derivar o vocábulo Judô – Ju, suavidade, flexibilidade; dô, caminho, via. Caminho do aprendizado sem resistência, utilizando formas suaves e flexíveis para obter êxito em determinadas ações. (Sato, e Inoue, 2019)
Aprendizado através da via transformadora que leva à autonomia, ao reconhecimento pelo outro (Bruaire, 2010) através das quebras de barreiras sociais (Brasil, 2015; Oliver, 1990; Smith, e Bundon, 2018 apud Seron et al., 2021) e da implantação de programas de promoção das atividades físicas (Monforte, Devís-Devís, e Úbeda-Colomer, 2020) que podem trazer benefícios psicofísicos e sociais (Hussain, 2020), dentre a interação, tomada de decisão e as realizações de tarefas.
O Judô e a sua dimensão educativa transformadora
O judô é uma prática educativa, educação integral conforme os ideais do Mestre Jigoro Kano e na concepção de Kant (1999), pois, para ele, a educação se divide em duas dimensões, a física e a prática. Vejamos:
Educação física é aquela que o homem tem em comum com os animais, ou seja, os cuidados com a vida corporal. E a educação prática a que diz respeito à construção (cultura) do homem, para que possa viver como um ser livre. (Kant, 1999, p. 34-35)
Torna-se o judô uma forma de educação prática que visa, pela liberdade do indivíduo, ações que vivencie a sociabilidade, mantendo relações com qualidade; recorrendo às suas habilidades e capacidades de modo prudente e seguindo os preceitos éticos e morais para realizar os seus deveres para consigo mesma e aos demais. (Kant, 1999, pp. 82-85-89-90)
Ora, para realizar os deveres para consigo mesmo e aos demais, segundo Kant (1999), o ser humano necessita de experiências perceptivas e vivências psicomotoras, pois Le Breton (2016) esclarece que:
A experiência perceptiva de um grupo se modula através dos intercâmbios com os outros e através da singularidade de uma relação com o acontecido. Discussões ou aprendizagens específicas modificam ou afinam percepções jamais eternamente estanques, mas sempre abertas às experiências dos indivíduos e ligadas a uma relação presente no mundo. Na origem de toda existência humana, o outro é a condição do sentido, isto é, o fundamento do vínculo social. Um mundo sem outrem é um mundo sem vínculo, fadado ao não sentido. (Le Breton, 2016, p. 32)
O aprendizado e, consequentemente, o processo de ensino do judô devem ter as características da inclusão, respeitando a capacidade de cada praticante em assimilar o que foi ensinado. A individualidade deve ser respeitada e as ações exercidas por cada indivíduo devem ser acatadas pelo seu desempenho, pela capacidade de execução e não pela desigualdade de desempenho ou potência, e da quantidade de técnicas aprendidas. O processo de inclusão de pessoas com deficiência deve-se dar visando benefícios para todos e não uma suposta inclusão seletiva de alguns indivíduos.
Entretanto, quando um indivíduo possui limitações nos seus movimentos e restrições em seus sentidos, logo é classificado socialmente como “corpo deficiente”. Assim, para Le Breton (2012, p.73),
uma forte ambivalência caracteriza as relações entre as sociedades ocidentais e o homem que tem uma deficiência; ambivalência que vive no dia a dia, já que o discurso social afirma que ele é um homem normal, membro da comunidade, cuja dignidade e valor pessoal não são enfraquecidos por causa de sua forma física ou suas disposições sensoriais, mas ao mesmo tempo ele é objetivamente marginalizado, mantido mais ou menos fora do mundo do trabalho, assistido pela seguridade social, mantido afastado da vida coletiva por causa das dificuldades de locomoção e de infraestruturas urbanas frequentemente mal adaptadas.
Mas, contraditoriamente, quando esse indivíduo ousa integrar e participar socialmente “[...] É acompanhado por uma multidão de olhares, frequentemente insistente; olhares de curiosidade, de incômodo, de angústia, de compaixão, de reprovação”. (Le Breton, 2012, p. 73). E, fica mais um questionamento sobre esta barreira que ainda existe em aceitar e conviver com as pessoas com deficiência no cotidiano social, pois de acordo com o estudo realizado por Allan et al. (2018 apud Smith, e Sparkes, 2019), o qual aborda sobre a “importância do significado” e a “satisfação das pessoas com deficiência” quando participam do paradesporto, na medida em que novos elementos são incluídos no cotidiano desses praticantes, do tipo: “autonomia, pertencimento, desafio, encorajamento, domínio e significado”.
Ou seja, a mesma sociedade que almeja a inclusão e a integração das pessoas com deficiência nas atividades sociais, também promove uma exclusão social de forma indireta em virtude de olhares espantados, piedosos e críticos às pessoas exercendo a convivência social da prática esportiva, principalmente quando realizada na dimensão competitiva.
Ora, segundo Brousse (2001), por ser um Ser pensante, social e desejante é obvio a integração temporal, instrucional e social dos indivíduos, mesmo com suas limitações e potencialidades. Assim acontecendo, as práticas esportivas, destacando o judô, podem contribuir para a liberação da agressividade, medo, frustração e da repressão. Podem contribuir também na melhoria da autoestima, autoconfiança, satisfação, colaboração (Brousse, 2001; Robertson, 2001), melhoria do equilíbrio, coordenação e do tônus muscular reduzindo, consequentemente, os distúrbios da marcha. (Oppewal, e Hilgenkamp, 2018)
Seguindo esta perspectiva de inclusão, destaca-se a igualdade de oportunidades das pessoas com deficiência, independente de cada condição psicofísica ou de doença, participando das atividades físicas, esportivas e até mesmo competitivas. É preciso registrar a necessidade de ampliar esta inclusão, pois, quando se fala de competição fica a impressão de que todos participam. Para Pečnikar Oblak et al. (2020) há práticas de judô para todos nos clubes, há profissionais e programas voltados ao segmento, mas nem todos estão preparados para dar a real assistência de maneira igualitária às pessoas com deficiência. O referido autor sinaliza sobre a importância da abordagem profissional e científica no campo da cinesiologia, serviço social, esportes, pedagogia, medicina, enfermagem, fisioterapia, psicologia e filosofia na assistência desse segmento.
Para Ferreira (2022, p. 147)
O judô é uma prática para o saber, o conhecimento e, por circunstâncias, uma prática do fazer-se presente. Mostrar a prática do judô como uma importante atividade pedagógica que proporciona benefícios a seus praticantes, e que seja preservada como prática de combate corporal que possui finalidade educativa definida.
Fundamentando-se nas publicações acadêmicas pesquisadas para a elaboração deste paper pode-se afirmar que as atividades físicas e esportivas recorrem aos movimentos corporais com a finalidade de normalizar e, até mesmo, melhorar o acompanhamento das pessoas com deficiência, mais especificamente o TEA, as deficiências motoras e intelectivas. Dentre elas destaca-se o fortalecimento da musculatura total, exercícios repetidos para aumentar a frequência, aumento da motivação (Najafabadi et al., 2018), desempenho motor grosso e fino, a lateralidade, a sincronia interpessoal e o ritmo, significativamente no espectro do autismo. (Kaura, Srinivasana, e Bhata 2018)
Seron et al. (2021) enfatizam que a prática de esportes para pessoas com deficiência é um direito fundamental, pois sob à bandeira dos direitos humanos, seguindo o que reza na Convenção das Nações Unidas, a qual trata sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPD (ONU, 2006 apud Seron et al., 2021), tendo por objetivo “promover, proteger e garantir o gozo pleno e igual de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais para todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente” (p. 5).
Ficando um alerta referente à máxima “sob à bandeira dos direitos humanos”, pois faz-se necessário a distinção quanto ao direito fundamental da prática esportiva para as pessoas com deficiência na perspectiva de inclusão e participação e, quanto ao enfoque da prática esportiva na vertente da competição, do rendimento, a qual prima pela qualidade exacerbada das ações que objetivam resultados vitoriosos nas competições, sobressaindo sobre o enfoque da participação.
Nesse contexto, Torri, e Vaz (2022), focam três pontos importantes que dão suporte ao questionamento da exaltação à competição e pouca atenção à participação:
[...] a suposta igualdade formal de chances (requisito que pretende oferecer justiça para as contendas), aplicada a corpos que, contudo, não podem ser equivalentes e jamais são iguais; a incorporação técnica (a transformação do corpo em instrumento técnico); e a relação do sujeito com seu corpo, construindo-o como se fora um outro em relação a si, como objeto, matéria manipulável e ordenável a serviço do rendimento (p. 4).
Portanto, é necessário oportunizar a integração de pessoas com deficiência nas práticas esportivas para assim conviver e conhecer as suas capacidades de exercer ações que transcendam e materializem o aprendido mediante seus movimentos corporais. Transcendam pelas percepções e sentidos da sua capacidade e habilidade em exercer ações corporais e sociais. Pessoas com deficiência, segundo Puce et al. (2023), “têm um bem-estar pior devido à sua patologia e podem sofrer mais frequentemente de transtornos de ansiedade e depressivos do que as suas congêneres capazes. A participação esportiva é uma forma essencial de lidar com a deficiência” (tradução de autoria).
Programas de atividades físicas voltadas às pessoas com deficiência vêm sendo implantadas aumentando e otimizando a participação dessas pessoas, abrindo novas fronteiras para as práticas esportivas, adaptando-as as necessidades de cada tipo de deficiência, ou melhor, adequando as reais possibilidades e necessidades de cada indivíduo e buscando ampliar os processos de inclusão social. E estudos relatam que melhoras significativas acontecem nas habilidades motoras e no desenvolvimento psicológico e social dos indivíduos com e sem deficiências quando são submetidos à programas de atividade física. (Najafabadi et al., 2018)
Há a necessidade urgente de que seja consolidada a inclusão social das pessoas com deficiência. É urgente que a sociedade veja, conviva e trate estas pessoas também como pessoas. Que a percepção e sentido de ver o outro seja realmente de ver um outro, ou seja, o reconhecimento da pessoa com deficiência como um ser social. Um ser humano, também constituído de família, de quereres, direitos e deveres pertinentes aos indivíduos que vivem em sociedade como todo e qualquer cidadão.
Sendo assim, fica a assertiva de que não se deve estar afirmando que a deficiência está no corpo de indivíduo, mas que um mal maior está no modo pelo qual as pessoas são tratadas socialmente, no qual é visto uma grande falta de responsabilidade das instituições que devem proporcionar o bem-estar social das pessoas com deficiência.
Para Henry (2012, p. 94), “nosso corpo só pode conhecer o mundo porque é um corpo subjetivo, transcendental e, reciprocamente, esse mundo do corpo é um mundo que só é originalmente conhecido pelo corpo, isto é, só é conhecido por nosso movimento”. E, sendo a participação esportiva uma forma essencial no processo de inclusão das pessoas com deficiência, faça-se valer o que preconiza a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de 2006, o Plano de Ação Kazan da UNESCO, a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, Lei no 2 do Qatar de 2004 e a Declaração de Doha de 2019 (Al-Harahsheh et al., 2022, p. 1) e o Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei no 13.146/2015, Inclusão da Pessoa com Deficiência. (Brasil, 2015)
Enfim, no judô o praticante não deve ficar pensando ou preocupado como o outro lhe vê, mas sim, como realiza seus movimentos, sua postura, sua tomada de decisão, a percepção apurada sobre as ações do outro e sobre o que acontece ao seu redor. Para que a ação seja realmente ou efetivamente do sujeito é preciso que ele se movimente com autonomia e realize seus movimentos como algo necessário para si mesmo, para a sua relação vivencial e, sobretudo, para a sua qualidade de vida.
Conclusões
A linguagem mais utilizada nas atividades do judô é corporal, carregada de valores morais que fundamentam as aulas/treinos com disciplina segurança e respeito. Princípios estes contribuirão na construção do caráter do praticante para a sua vida cidadã. Viver a realidade do judô é perceber o que é existente e o que deve ser realizado por intermédio da descoberta de novas possibilidades de comunicação interação inclusão e reflexão.
O modo como o judô é divulgado nas mídias de comunicação e é praticado na sua maioria prevalecendo a prática competitiva, deixa transparecer que o objetivo e significado seja a competição.
Por isso, buscou-se leituras especializadas para responder a hipótese de que a vivência prática do judô se dá com fins competitivos e que as vertentes da formação, da qualidade de vida e da inclusão não são muito vivenciadas com o intuito de socializar, propiciar a autonomia e a valorização de si mesmos nos praticantes. Respeitando os agentes dessas ações incluindo-os nas práticas corporais sejam as esportivas ou mesmo as atividades físicas existentes nos ambientes sociais objetivando uma melhor qualidade de vida. E, principalmente, a inclusão das pessoas com deficiência nestas atividades.
Uma fundamentação teórica abordando sobre judô, psicomotricidade e filosofia foi realizada para mostrar o valor que deve ser dado ao binômio corpo e movimento para esclarecer que o desenvolvimento de qualquer ser humano se dá por ações corporais e interações nas diversas maneiras de agir, mas respeitando as individualidades para exercê-las.
Pois, somos diferentes em relação aos nossos corpos, nas nossas formas de agir, nos modos de transmitir mensagens e nas nossas escolhas, mas iguais como criatura humana que necessita dos movimentos, dos gestos, das ações corporais com fins sociais para o trabalho, lazer, esporte, dentre outros. Enfim, movimentos participativos, cooperativos, integrativos e inclusivos assegurando, de forma igualitária, nossos direitos e deveres sociais na vida cidadã. Assim deve ser e fazer-se o “Judô Para Todos”, seja na dimensão educacional inclusiva ou mesmo na dimensão esportiva com finalidades de rendimento/performance.
De acordo com os resultados encontrados, a nossa hipótese foi refutada, a qual prevalecia que os estudos no campo da prática esportiva para as pessoas com deficiência eram mais focados no viés competitivo. Evidências de estudos sobre a importância das atividades físicas e esportivas, dentre elas o judô, no cotidiano das pessoas com deficiência foram encontradas; programas de atividades físicas vêm sendo implantados, otimizando e aumentando a participação dessas pessoas. Adequando-as de acordo com as necessidades e possibilidades, efetivando o processo de inclusão social.
Portanto, fica a esperança de que outras pesquisas sejam realizadas para ampliar o leque das discussões referentes ao tema, relevante para o cotidiano acadêmico e social, pois a intenção é dar continuidade ao movimento de inclusão das pessoas com deficiência no campo das atividades físicas e esportivas dentre elas o judô.
Referências
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