ISSN 1514-3465
Sentidos/significados atribuídos à saúde por usuárias de
práticas corporais integrativas no Sistema Único de Saúde
Senses/Meanings Assigned to Health by Users of Integrative Mind-Body Practices in Brazilian Unified Health System
Sentidos/significados atribuidos a la salud por los usuarios de prácticas corporales integradoras en el Sistema Único de Salud
Priscilla de Cesaro Antunes*
pri.antunes@ufg.br
Heitor Martins Pasquim**
hpasquim@gmail.com
Alex Branco Fraga***
brancofraga@gmail.com
*Docente na Faculdade de Educação Física e Dança
da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás
Doutora em Ciências do Movimento Humano pela UFRGS
**Docente no Instituto Saúde e Sociedade
da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp, campus Baixada Santista
Doutor em Ciências pela USP
***Docente na Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre
Doutor em Educação pela UFRGS
(Brasil)
Recepção: 13/09/2022 - Aceitação: 28/01/2023
1ª Revisão: 29/12/2022 - 2ª Revisão: 25/01/2023
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Citação sugerida
: Antunes, P. de C., Pasquim, H.M., e Fraga, A.B. (2023). Sentidos/significados atribuídos à saúde por usuárias de práticas corporais integrativas no Sistema Único de Saúde. Lecturas: Educación Física y Deportes, 27(298), 17-31. https://doi.org/10.46642/efd.v27i298.3679
Resumo
A oferta de práticas corporais integrativas foi institucionalizada no Sistema Único de Saúde brasileiro pela Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, num contexto de disputas e de necessária mudança dos modos de se compreender e agir em saúde. Este artigo objetivou analisar os sentidos/significados de saúde atribuídos por usuárias de práticas corporais integrativas na Atenção Primária de Florianópolis-SC, Brasil. Os dados foram produzidos por meio de entrevista semiestruturada feita com as 15 praticantes mais antigas de 3 grupos (1 de yoga, 1 de lian gong, 1 de danças circulares). A análise de conteúdo das falas permitiu categorizá-las a partir da associação da saúde a aspectos subjetivos, bem como ao viés comportamental da prática de exercícios e alimentação. Considerando a frequência de respostas, o artigo discute o reposicionamento da subjetividade, silenciada e marginalizada na concepção hegemônica da saúde. Ao indicarem que saúde, doenças e reações físicas podem estar associadas e/ou ter origem subjetiva, as usuárias reconheceram uma relação indissociável entre mente-corpo-emoções com prevalência dos aspectos sutis aos do corpo físico. Os dados da pesquisa, portanto, tensionam pilares historicamente cristalizados no trato com os processos saúde-doença e convidam à reflexão sobre a valorização do componente subjetivo na atenção à saúde.
Unitermos:
Medicina integrativa. Terapias complementares. Práticas corporais. Saúde coletiva. Sistema Único de Saúde.
Abstract
Provision of mind-body practices knows in Brazil as integrative bodily practices was institutionalized in Brazil’s Public Health System by the National Policy on Traditional and Complementary Medicines, in a context of disputes and necessary changes in the ways of understanding and acting in health. This article analyzes the health senses/meanings ascribed by users of integrative bodily practices in Primary Care in the city of Florianópolis, SC, Brazil. The data were gathered through semi-structured interviews with the 15 longest-term practitioners in three groups – of yoga, lian gong and circular dances. Content analysis enabled categorizing the speeches based on their association of health to subjective aspects and behavioral bias in exercising and eating. Considering the frequency of answers, the article discusses the repositioning of subjectivity – silenced and marginalized under the hegemonic view of health. The users recognized an inseparable mind-body-emotions relationship and a hierarchy that has superimposed the subtle aspects on the physical body, indicating that health, illnesses and physical reactions may be associated to and/or originate in emotions and thoughts. Therefore, the research data challenge historically crystallized pillars when addressing the health-illness processes and invite to reflection on the value placed on the subjective component in health care.
Keywords:
Integrative medicine. Complementary therapies. Bodily practices. Public health. Brazil’s Unified Health System.
Resumen
La oferta de prácticas corporales integradoras fue institucionalizada en el Sistema Único de Salud brasileño por la Política Nacional de Prácticas Integradoras y Complementarias, en un contexto de disputas y cambios necesarios en las formas de entender e intervenir en salud. Este artículo tuvo como objetivo analizar los sentidos/significados de salud atribuidos por usuarios de prácticas corporales integradoras en la Atención Primaria de Florianópolis-SC, Brasil. Los datos se produjeron a través de entrevistas semiestructuradas con los 15 practicantes más antiguos de 3 grupos (1 de yoga, 1 de lian gong, 1 de danza circular). El análisis de contenido de los discursos permitió categorizarlos a partir de la asociación entre salud y aspectos subjetivos, así como el sesgo conductual de ejercicio y alimentación. Considerando la frecuencia de las respuestas, el artículo discute el reposicionamiento de la subjetividad, silenciada y marginada en la concepción hegemónica de la salud. Al señalar que la salud, las enfermedades y las reacciones físicas pueden estar asociadas y/o tener un origen subjetivo, los usuarios reconocieron una relación inseparable entre mente-cuerpo-emociones con predominio de los aspectos sutiles sobre los del cuerpo físico. Los datos de la investigación, por lo tanto, destacan pilares cristalizados históricamente en el abordaje de los procesos salud-enfermedad e invitan a la reflexión sobre la apreciación del componente subjetivo en el cuidado de la salud.
Palabras clave
: Medicina integradora. Terapias complementarias. Prácticas corporales. Salud pública. Sistema Único de Salud.
Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 27, Núm. 298, Mar. (2023)
Introdução
O campo das Práticas Integrativas e Complementares (PICS) envolve um conjunto vasto e heterogêneo de saberes, práticas e produtos distintos da medicina convencional (WHO, 2013), do qual fazem parte as práticas corporais integrativas, tais como yoga, tai chi chuan, qi gong, lian gong, danças circulares, meditação, entre outras. A Política Nacional de PICS (Brasil, 2006; 2017; 2018) institucionalizou sua oferta no Sistema Único de Saúde (SUS), em consonância com as mudanças dos modos de atenção em saúde preconizadas pela Reforma Sanitária brasileira.
As práticas corporais integrativas podem ser definidas como propostas de cuidado e promoção de saúde que se fundamentam no paradigma da vitalidade-energia, envolvem movimentos corporais com técnicas de respiração, posturas/coreografias, relaxamento, atitude mental, etc. oriundos de diferentes tradições culturais, que prezam pela introspecção e pela qualidade de presença. Ainda, estimulam as pessoas a descobrirem os limites e potencialidades do corpo (nas suas dimensões mais visíveis e mais sutis) e promovem processos individuais, mas que reverberam também na coletividade, na medida em que convidam para a construção de uma nova relação consigo, com os outros e com o universo, para o questionamento e o compartilhamento da vida e para a ressignificação dos processos saúde-doença. (Antunes, e Fraga, 2021)
As PICS partem de outras racionalidades, ou seja, apresentam formas diferentes do modelo (bio)médico para explicar e agir em saúde com relação à anatomia e fisiologia humanas, aos sistemas diagnósticos e terapêuticos, além do próprio entendimento do que seja saúde e doença (Tesser, e Luz, 2018). Sob a perspectiva paradigmática das PICS, a saúde é compreendida como equilíbrio dinâmico e multidimensional. Equilíbrio interno no que concerne ao microcosmo que constitui o ser humano e equilíbrio relacional no que concerne às relações entre o ser humano e o meio natural, social e espiritual (macrocosmo). A resolutividade em saúde se deve ao enfoque integral dos problemas de saúde e da vida para restabelecer e expandir a vitalidade (Luz, 2013). Esta compreensão contrasta com concepções hegemônicas que tendem a reduzir a saúde à ausência de doenças e considerar os adoecimentos como problemas do organismo humano, cuja solução está na tecnologia químico-cirúrgica ou na submissão a um determinado estilo de vida saudável.
No contexto da necessária mudança dos modos de atenção em saúde e de disputas no âmbito do SUS, caberia perguntar em que medida o envolvimento das pessoas com PICS contribui para que ressignifiquem/ampliem sua compreensão de saúde. Por isso, esse artigo teve como objetivo analisar os sentidos/significados de saúde atribuídos por usuárias de práticas corporais integrativas na Atenção Primária de Florianópolis-SC, Brasil.
Estudos de revisão e avaliação (Ruela et al., 2019; Tesser, e Sousa; Nascimento, 2018; Amado et al., 2017) apontam que a oferta de PICS ocorre de forma tímida nos serviços de saúde. Sua implementação enfrenta dificuldades relacionadas ao financiamento, à formação profissional, ao reconhecimento e organização institucional, entre outras, exigindo investimento e planejamento para sua ampliação de forma equânime no país. O fortalecimento do SUS passa pela ampliação do entendimento de saúde de seus profissionais e usuários, articulada ao desenvolvimento de políticas públicas comprometidas com a determinação social da saúde.
Metodologia
Esse artigo é parte de uma pesquisa de doutorado1 – aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (parecer n. 2.107.200) – cuja intenção foi analisar como as práticas corporais integrativas contribuem para potencializar os modos como as pessoas lidam com seus processos saúde-doença. Após ação de mapeamento realizada na Atenção Primária de Florianópolis-SC, foram encontrados 20 grupos de práticas corporais integrativas, nos quais foram aplicados diversos instrumentos de produção de dados.
Nesse texto, centramo-nos na análise de uma das perguntas da entrevista semiestruturada, tendo em vista o objetivo do artigo: qual a primeira coisa que lhe vem à cabeça quando se fala em saúde? Foram entrevistadas 15 pessoas, sendo cinco usuárias de três grupos (yoga, lian gong e danças circulares). Essas usuárias foram selecionadas pelo critério de serem as que participavam a mais tempo dos grupos, segundo indicação das profissionais.A escolha dos grupos tomou como critérios: ser um de cada modalidade e ser o que tinha o maior número de usuárias de cada prática.
Quanto ao perfil das usuárias, predominaram as mulheres, de cor branca, adultas de meia idade e idosas. Por este motivo, o artigo adota o gênero feminino na escrita, embora houve presença de três homens. O grupo de yoga era conduzido por um médico e uma voluntária nutricionista; o grupo de lian gong por uma professora de Educação Física e o grupo de danças circulares por uma enfermeira, uma professora de Educação Física e uma voluntária com graduação em Enfermagem e Biologia.
Mediante análise de conteúdo (Minayo, 2014) buscamos compreender as unidades de sentido e contexto que balizaram o entendimento de saúde das usuárias. As categorias emergiram, em ordem decrescente de frequência, a partir da associação da saúde à atividade/exercício; alimentação; visão integrada corpo-mente-emoções; grupo; atividades diárias; ausência/presença de doenças; rotina; energia; prevenção e exames.
Na apresentação dos resultados, a letra inicial do nome fictício das usuárias corresponde à letra inicial da prática que realizam: nomes com Y são do grupo de yoga, com L de lian gong e com D de danças circulares.
Resultados e discussão
As respostas mais frequentes apontaram que saúde tem a ver com “estarem ativas”, realizar atividades como alongamento, caminhada, ginástica, dança e práticas corporais integrativas. Boa parte das pessoas que mencionaram esse aspecto deu destaque também à alimentação.
“pra mim quando fala em saúde a primeira coisa é atividade... qualquer uma... um alongamentozinho até em casa assim... qualquer coisa, mas atividade pra mim é garantia da saúde”. (Yolanda)
“é ginástica, é atividade... e uma boa alimentação... uma caminhada, dança, a ginástica aqui”. (Darlene)
“em primeiro lugar uma boa alimentação. Eu caminho praticamente todos os dias (...) aprendi a fazer alongamento”. (Lilian)
Muitas usuárias associaram saúde aos hábitos de alimentação e prática de atividades/exercícios, de certo modo acompanhando o discurso de possuir um estilo de vida ativo e saudável. Regulações sobre alimentação e exercícios físicos são componentes destacados em receituários que se propõem a ditar normas sobre o estilo de vida das pessoas, propagados fortemente na mídia, no senso comum e no meio científico.
Associadas a essas respostas estiveram outras que categorizamos sob o título “prevenção”:
“nem tudo pode comer que faz mal (...) tenho colesterol, diabetes (...) se eu não me cuidar (...) se você não fizer atividades, você também não tem saúde, porque se você ficar parada você vai ficar uma parasita”. (Liara)
“não parar para não atrofiar (...) eu não quero ficar travada (...) se eu não me exercitar eu sei que eu vou travar”. (Damiana)
“tem que trabalhar prevenção (...) conhecimento de boa alimentação... tudo que a gente já tá cansado de saber”. (Yuri)
Nas primeiras falas, a ótica preventivista esteve associada à conjunção “se”, como no teorema lógico de implicação “se e somente se” (“se eu não me cuidar”, “se não fizer atividades”, “se eu não me exercitar”), apontando a alimentação e o exercício como condição indispensável para a saúde, a qual, se não for cumprida, resultará em consequências (colesterol alto, diabetes, atrofia, etc.). A proposição preventiva acionada nas respostas não exige a descrição das condições de cada afirmação lógica e pareceu indicar uma preocupação com doenças e com a decrepitude.
O discurso da vida ativa se funda no conceito de “risco”, o qual, a partir de uma certa pedagogia do medo, interpela as pessoas a seguirem receituários moralizantes que regulam seus modos de viver (Carvalho, e Carvalho, 2018; Soto-Lagos, 2018a; 2018b; Castiel, Guilam, e Ferreira, 2015; Fraga, 2006). Parte-se da ideia de que as pessoas possuem iguais condições materiais e subjetivas e sabem o que devem fazer para ter uma vida saudável, afinal, uma avalanche de normas de conduta é propagada no cotidiano. Se não fazem, devem arcar com as perdas. Algo que, de certa forma, está expresso na última fala: “a gente já tá cansado de saber” e, na fala imediatamente abaixo: “sei tudo que tem que fazer”.
Além de entrevistadas alinhadas à necessidade de seguir condutas para garantir a saúde, também encontramos aquelas que, deliberadamente, não seguiam:
“eu sei que eu como errado pra caramba... sei tudo que tem que fazer (...) eu tenho agora 120 quilos mas já pesei 96 (...) fazendo dieta... mas o meu humor, ficou humor de cão... sabem o que é um bicho brabo? Um siri, tu prende numa lata... ele fica irritado, doido... assim ficava eu fazendo dieta... agora eu como de tudo... tá certo, aparece dor aqui, dor ali... é gordo, perde mobilidade, sua pra caramba (...) mas o bom humor, meu deus do céu [sorri] ele é gordo, mas é simpático... melhor ser um gordo simpático do que um magro azedo! Tá errado, mas tá bom”. (Lisandro)
A fala retrata que a vida não se resume a seguir recomendações. Demonstra noção dos riscos, mas não se curva a eles por considerar que a lógica moralizante dos receituários da vida saudável lhe exige renúncias que não lhe são suportáveis, pois imagina que irá perder o que lhe define como membro de um grupo social: graça e simpatia. Mesmo que relate a opção por não seguir normas alimentares e assumir as consequências, a fala do usuário conserva a sombra do discurso do risco, uma vez que ele avalia que o que faz é errado.
O discurso preventivo se baseia no conhecimento epidemiológico tradicional, considerado capaz de inferir a causalidade, avaliando a probabilidade da ocorrência de eventos de doença e morte. Contudo, do ponto de vista científico, o que se estima é o “efeito causal médio”, com limites do método matemático utilizado, mas os significados culturais que proliferam daí, muitas vezes, assumem caráter totalizante. (Czeresnia, 2009)
No contexto dos estilos de vida ativos e saudáveis, a maior parte da produção de conhecimento refere associações positivas entre atividades físicas e saúde, afirmando benefícios para os praticantes. Essa reflexão pode ser estendida aos hábitos alimentares. Entretanto, a relação de causalidade posta nessas análises é linear, como se a exclusiva exercitação fosse geradora de saúde. Nessa ótica, são desconsideradas outras questões que interferem no processo saúde-doença das pessoas, como condições socioeconômicas e elementos da subjetividade humana.
Pesquisas reúnem evidências que o índice de desenvolvimento humano das cidades, quantidade de rendimentos, nível educacional, ocupação profissional, classe econômica, violência/criminalidade, desigualdades sociais, bem como disparidades de raça, gênero, renda, escolaridade e geração (Ballesteros, Freidin, e Wilner, 2021; Rodrigues et al., 2020; Ballesteros et al., 2020; Ballesteros, e Freidin, 2019; Rodrigues et al., 2017; Brasil, 2017), não são aleatórios em relação à produção da saúde e modo de vida (Breilh, 2020). As condições socioeconômicas, portanto, estão associadas à prevalência de problemas de saúde, bem como ao acesso a informações, serviços de saúde e às próprias práticas corporais/atividades físicas, que poderiam ajudar a respondê-los.
Já com relação aos componentes subjetivos relacionados à saúde, estudos realizam crítica à fragmentação corpo-mente e à prioridade conferida aos componentes anátomo-fisiológicos do organismo como únicos demarcadores dos processos saúde-doença (Antunes et al., 2018; Carvalho, 2016; Luz, 2013). Afirmam ser fundamental considerar os sentidos/significados atribuídos pelas pessoas ao que praticam, além de destacarem a complexidade da experiência humana. As experiências com processos de adoecimento, bem como com práticas corporais, envolvem uma série de sensibilidades, cuja apreensão nem sempre pode ser aferida com precisão quantitativa, mas são constitutivas dos modos como as pessoas vivenciam seus processos saúde-doença-cuidado e, portanto, podem compor tanto a origem quanto a cura dos adoecimentos.
Estas abordagens questionam o privilégio das Ciências Naturais, rearticulando a complexidade observada pelas Ciências Humanas e Sociais, para fazer frente ao reducionismo em curso na abordagem do corpo e dos processos saúde-doença.
Notamos nas entrevistas que, embora a maioria tenha associado a saúde com prática de atividades/exercícios e boa alimentação, nenhuma usuária encerrou sua resposta nesses aspectos.
Sobressaíram-se outros sentidos associados a dimensão subjetiva, com referências a emoções e pensamentos, numa relação integrada do tipo corpo-mente-emoções. Houve falas sobre sentimentos positivos:
“disposição (...) alegria de viver”. (Darlene)
“alegria, acho que é você tá feliz, você tá fazendo, você tá animado, você ter ânimo pra fazer as coisas”. (Yandra)
“a gente ter o emocional bom né... é porque se a gente tá sempre para baixo, aí mesmo é que vem os problemas de saúde”. (Damiana)
As falas relacionadas a bem-estar, felicidade, disposição, bom humor, alegria e animação, alçaram o entendimento de saúde a uma percepção particular que reconhece aspectos da subjetividade e da individualidade, só possível de ser avaliada pelo/com o próprio sujeito, referente as formas como cada pessoa percebe sua saúde em relação ao cotidiano e à satisfação na vida.
Para explicar o processo saúde-doença, elas reposicionaram suas subjetividades, silenciadas e marginalizadas na concepção hegemônica da saúde, em posição hierarquicamente superior. Essa constatação foi enfaticamente reafirmada a partir de outro bloco de respostas, que deu destaque à “mente” ou à “cabeça” como componente relacionado à saúde:
“se eu tivesse um controle melhor sobre a mente, eu não adoeceria (...) clinicamente eu não tenho nada... então todas essas coisinhas são provenientes do meu emocional descompensado ou desequilibrado”. (Dalila)
“parece que a mente já melhora praticando os exercícios junto com os colegas (...) eu me sinto melhor, não fica aquela coisa assim só pensando besteira”. (Lineu)
“a mente é que manda na gente, não é o corpo... às vezes o corpo até tá ruim (...) mas se tu tá de bom humor, aquilo ali meio que fica esquecido”. (Yolanda)
“a cabeça conta muito para saúde (...) vai determinar toda tua saúde... porque se tu está bem emocionalmente, tu vai ter vontade de fazer prática, vai te alimentar direito”. (Yasmin)
Chamou atenção o uso dos termos “mente” ou “cabeça” como aspecto relacionado à saúde, sobrepondo-se ao corpo físico. Mesmo que a ideia de “cabeça” pareça mediar uma representação física, quiçá corpórea da mente, as falas se colocaram numa posição distinta de pilares historicamente cristalizados no trato com os processos saúde-doença. Se, numa visão hegemônica, os processos saúde-doença começam e terminam na esfera física do corpo, na visão de algumas usuárias da pesquisa, certas doenças e reações físicas não apenas estão associadas, mas têm origem em componentes subjetivos, como emoções e pensamentos.
O (não) lugar que os fenômenos subjetivos relacionados ao adoecimento ocupam no modelo da biomedicina tem sido discutido (Guedes, Nogueira, e Camargo Junior, 2006) apontando necessidade de direcionar a escuta terapêutica também para os aspectos singulares que permeiam o adoecer, não só para os relatos objetivos da doença. Essa crítica se estende ao privilégio dos exames clínicos e medicamentos, os quais, inclusive, apagaram o próprio ato da escuta nas consultas. A diagnose tem nas tecnologias duras o seu parâmetro de confiança e a terapêutica está centrada nos recursos de remédio e cirurgia, num contexto de relação entre profissional da saúde-usuário cada vez mais impessoal e desumanizado.
No desenvolvimento da medicina ocidental moderna, o esforço tem sido de situar as práticas e os saberes em saúde sob a égide das ciências naturais, o que implica fazer surgir a objetividade da doença, com a exclusão da subjetividade e a construção de generalidades (Luz, 1988). Contraditoriamente, a subjetividade se mostra tanto na experiência de adoecimento dos usuários, quanto na experiência profissional de ação clínica, nas interpretações dos exames, decisões, julgamentos, etc. (Guedes, Nogueira, e Camargo Junior, 2006)
Para Canguilhem (2017, p.160),
a vida de qualquer ser vivo não reconhece as categorias de saúde e doença, a não ser no plano da experiência, que é, em primeiro lugar, provação no sentido afetivo do termo, e não no plano científico. A ciência explica a experiência, mas não a anula. O ser vivo não vive entre leis físicas e químicas, mas entre seres e acontecimentos que diversificam essas leis.
Conforme o modelo biomédico, a doença não é percebida como um constructo humano, mas como uma entidade independente dos humanos adoecidos. O trabalho na clínica, portanto, seria decodificar as queixas dos usuários em sinais, passíveis de se inscrever no discurso biomédico. Porém, as manifestações que não se encaixam nesses referenciais se tornam um problema quando usuários possuem sintomas persistentes, sem que se possa detectar uma doença (Guedes, Nogueira, e Camargo Junior, 2006). Essa situação ficou evidente na fala de uma usuária da pesquisa que afirmou seu estado de adoecimento, mas apontou: “clinicamente eu não tenho nada”. Esse tipo de postura cria um impasse para a atenção em saúde, pois denuncia a falta de recursos para lidar com esse tipo de dilema.
Ao outorgar o adoecimento à “mente”, à “cabeça”, ao “emocional”, as entrevistadas estão sinalizando à atenção em saúde seu entendimento de que os processos saúde-doença não podem mais ser considerados apenas em sua acepção biológica, mas reconhecem uma relação indissociável mente-corpo-emoções e uma hierarquia que sobrepõe os aspectos sutis (mental e emocional) ao corpo físico.
Por um lado, essa compreensão aponta uma ampliação do entendimento de saúde, superando a fragmentação historicamente construída, baseada no predomínio dos componentes biológicos, objetivos e materiais. Por outro, esse conjunto de respostas está alinhado com as mudanças multicausais observadas no trato com o sofrimento psíquico na contemporaneidade, quando é notório um olhar destacado para a saúde mental no contexto de medicalização da vida, que se materializa, por exemplo, nas edições do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, nos resultados de pesquisas na neurociência (que tentam fundamentar o funcionamento psíquico em bases orgânicas) e nos maciços investimentos no mercado de psicofármacos. (Caponi, e Martinhago, 2019; Guarido, 2007)
As reconfigurações dos modos de pensar e agir frente à dimensão enigmática da subjetividade e dos conflitos internos vêm produzindo novos significados culturais e passam a habitar o imaginário social, o que pode ser percebido na incorporação de certas referências aos discursos. Depressão, por exemplo, foi uma palavra usada em diferentes contextos, mas presente em todas as entrevistas realizadas.
Assim, outra forma de interpretar essas respostas indica que a concepção de saúde das usuárias está relacionada a ter boa saúde mental, por exemplo, quando dizem: “se tu está bem emocionalmente, vai ter vontade de fazer prática, vai te alimentar direito”, “a tua mente tando boa, o corpo reage bem”, “um controle melhor sobre a mente, eu não adoeceria”.
Em suma, tais associações da subjetividade com a saúde apontaram para dois modos de interpretar essa relação. O primeiro se referiu à incorporação dos componentes subjetivos das experiências humanas no entendimento da saúde, extrapolando o viés eminentemente biológico. O segundo foi uma espécie de substituição causal (do físico pelo subjetivo), que manteve o foco na doença e na perspectiva medicalizante, uma vez que a saúde poderia estar determinada pela ausência de doenças de cunho “mental ou emocional”.
A respeito de considerar a saúde como negação de doenças, algumas respostas afirmaram a saúde como ausência de dores e vícios.
“não ter vícios (...) fumar, beber, drogas, essas coisas, pra mim, se tu já estás livre dessas coisas, já tais com bastante saúde (...) se tu consegue levantar sem gemer [risos]”. (Yolanda)
“como eu tenho muita dor, saúde para mim é não sentir dor”. (Lisandro)
Foi interessante notar um contraponto em respostas que admitiram a presença de doenças e uso de medicamentos:
“saúde total já com 67 ninguém consegue [risos] o corpo vai realmente apresentando falhas (...) eu considero, apesar de pressão alta, arritmia e esse processo agora [depressão], que eu tenho saúde”. (Dalila)
Essas respostas indicaram que é possível ter saúde mesmo apresentando dores ou doenças, ao encontro do entendimento de Canguilhem (2017) de que ser saudável é poder adoecer e se recuperar, ser capaz de instituir novas formas de se relacionar com as adversidades, na perspectiva de que saúde-doença não são opostos, mas compõem a experiência humana de viver.
Com relação a vida cotidiana, algumas falas associaram a saúde a “atividades diárias”:
“poder sair, falar, andar, trabalhar, se alimentar, fazer a alimentação... cuidar do corpo (...) doente é aquele que não pode se manter, tomar banho, se alimentar, nem fazer aquilo que quer”. (Livia)
Nestas falas, repletas de verbos, a saúde se relacionou com a autonomia para cuidar de si e agir na vida diária. Algumas usuárias afirmaram a saúde a partir da sua compreensão sobre doença, traduzida como a falta de condições de levar a vida com independência e ânimo.
A saúde pareceu ser entendida como algo trivial, confundida com o cotidiano, mas que quando falta produz impacto direto, pois abala ações elementares da existência. As usuárias valorizaram a autonomia, nesses casos entendida como a habilidade de realizar atividades da vida prática, ser dona da própria história e ter um sentimento de poder agir como desejar. Essa concepção de autonomia no campo acadêmico aparece mais na literatura gerontológica (Fonseca et al., 2010) coincidindo com a faixa etária das respondentes. Sob outro ponto de vista (Luz, 2013), a compreensão da saúde como capacidade-incapacidade de trabalhar ou desempenhar atividades é uma visão reducionista; poder-se-ia prezar pelo desfrutar/bem viver a vida.
Outro aspecto que se destacou nos dados foi a participação nos grupos:
“participar de um grupo é muito importante pra essa parte assim da cabeça (...) aonde eu me sinta apoiada, participe, possa interagir com as pessoas (...) para não me sentir sozinha, ajudar para poder ser ajudada”. (Yasmin)
“alegria, conversar, botar para fora o que a gente sente, poder dar um abraço (...) às vezes eu tava lá assim com dor [ela] já vinha me abraçava... aquilo para mim já era uma cura, uma melhora”. (Danúbia)
“amizade (...) quando eu vim morar aqui (...) não tinha nenhum conhecido, entrei em depressão... só depois que descobri esse grupo que voltei a ser o que eu era”. (Lilian)
Algumas ressaltaram a participação nos grupos como possibilidade de sair de casa:
“não ficar só enfiada dentro de casa... no fim vem depressão, autoestima vai lá embaixo... e tu vai ficando”. (Damiana)
O grupo apareceu como sinônimo de saúde por potencializar as pessoas a lidar com adversidades da vida no aspecto afetivo. A saúde esteve relacionada a sociabilidade, e os relatos das usuárias mostraram seus esforços em permanecer engajadas em atividades e relações significativas, em contraposição a situações de isolamento social, solidão, mais frequentes para idosos.
Algumas respostas referiram a energia como componente da saúde, todas oriundas do grupo de yoga:
“ter energia”. (Yandra)
“isso que vai deixando a alma, o espírito numa situação boa e você vai resolvendo teus chakra (...) a energia tem que fluir corretamente que aí você não fica doente”. (Yuri)
“acordar, agradecer a deus pelo dia, pela saúde”. (Yolanda)
No primeiro caso, a energia foi mencionada como sinônimo de vitalidade, disposição. Já o segundo evocou a existência de um corpo energético, com menção aos chakras, centros de energia ou força vital relacionados a elementos cósmicos, cores, sons, glândulas, órgãos e sistemas do organismo humano (Marques, 2012), cujo alinhamento é considerado importante para a saúde. No terceiro, a energia foi associada à gratidão, remetendo ao sagrado que se manifesta no ato de reverenciar a vida e à dimensão da espiritualidade.
A noção de energia é polissêmica e não é facilmente aceita no campo hegemônico da saúde. Contudo, alguns autores apontam para a emergência do paradigma energético (Martins, 2012), para o qual a energia aparece como um operador simbólico de um conjunto de técnicas e práticas em saúde que partem de outras racionalidades. Nas falas das usuárias da pesquisa, mostrou-se a multiplicidade de sentidos, quando foram mencionadas três abordagens distintas.
Uma usuária associou a saúde à regulação de exames, sendo a única resposta que citou um parâmetro consagrado da biomedicina. Estes recursos são tidos como fontes mensuráveis da saúde/doença, a partir de demarcadores biológicos, organizados sob lógica objetiva. Embora sejam padrões de confiança, a adequação orgânica a índices não pode ser vista afastada do cotidiano, uma vez que está inter-relacionada aos modos de vida, conforme já discutimos.
Foi interessante notar no conjunto de respostas das usuárias que suas concepções de saúde não se mostraram exclusivamente atreladas a tais parâmetros fisiológicos, clínicos, objetivos, mas estiveram relacionadas a percepções de ordem subjetiva e vinculadas à vida cotidiana.
Conclusões
Na literatura é possível identificar distintos conceitos de saúde, assim como problematizações a respeito da (im)pertinência de delimitá-lo com precisão. Nos dados da pesquisa, em síntese, os sentidos/significados que as usuárias atribuíram à saúde congregaram percepções em que aspectos da subjetividade foram mencionados com frequência, como sentimentos positivos, capacidade de empreender ações no cotidiano, o lugar destacado da “mente”, as relações com o grupo. As falas também referiram o viés comportamental da prática de exercícios e alimentação. Em contrapartida, aspectos de ordem sócio-política não foram mencionados.
Assim, destacaram-se nos resultados algumas marcas contemporâneas no pensamento social em saúde. Se, por um lado, as falas conservaram o privilégio do estilo de vida ativo para manutenção da saúde e a premissa da ausência de doenças, por outro, a maior parte tensionou fundamentos do aparato biomédico. As principais expressões disso foram o reposicionamento da dimensão subjetiva para explicar o processo saúde-doença, ao indicarem a interconexão corpo-mente-emoções, e a vinculação da saúde à vida cotidiana, mais do que a regularidades clínicas/fisiológicas.
Não é possível afirmar que estas compreensões sejam provenientes do envolvimento das usuárias com yoga, lian gong ou danças circulares. Contudo, tais aspectos se mostraram coerentes com certos referenciais destes saberes e práticas que propõem uma visão integrada de ser humano, corpo e saúde, considerando as dimensões física, emocional, mental, energética e espiritual, bem como uma concepção de saúde relacionada à vitalidade e ao equilíbrio dinâmico do ser e seu entorno, considerando o contexto cotidiano da vida, em constante mutação.
Os resultados desta pesquisa permitem concluir que as falas das usuárias demonstraram ampliação frente aos conceitos que tendem a um reducionismo da saúde a aspectos físicos ou normatizações de ordem orgânica – justamente porque somaram elementos complexos de diferentes concepções sem síntese. O que elas dizem, portanto, parece reforçar a necessidade de valorização do componente subjetivo na atenção à saúde.
Agradecimentos
O trabalho contou com financiamento da CAPES.
Nota
O artigo é um dos produtos da tese de doutorado intitulada “Práticas corporais integrativas: experiências de contracultura na Atenção Básica e emergência de um conceito para o campo da saúde”, de autoria de Priscilla de Cesaro Antunes no Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano da UFRGS, defendida em 2019.
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