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ISSN 1514-3465

 

Aprender a ser professor de Educação Física:

a experiência sensível do corpo vivido

Learning to be a Physical Education Teacher: Sensitive Experience of the Lived Body

Aprender a ser profesor de Educación Física: la experiencia sensible del cuerpo vivido

 

Willer Soares Maffei*

willer.maffei@unesp.br

Isadora Galaci Maffei**

maaffei10@gmail.com

 

*Licenciado em Educação Física pela Universidade Estadual de Maringá

Mestrado em Ciências da Motricidade - Área de Pedagogia do Movimento

pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho

Doutor em Educação, área de Formação de Professores

pela UNIMEP/Piracicaba

Atualmente é professor Assistente Doutor junto à UNESP/Bauru, SP

Credenciado junto ao Programa de Mestrado Profissional

em Educação Física em Rede Nacional (PROEF)

Coordenador do Laboratório de Estudo, Ensino

e Pesquisa em Educação Física – LEPEEF

Pertence ao quadro de Avaliadores de Curso do INEP/MEC

e do Conselho Estadual de Educação de São Paulo

**Discente do terceiro ano de Psicologia

na Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto

Presidente do Centro Acadêmico de Psicologia FAMERP (CAPsi) (2023-2024)

Monitora da disciplina Análise Experimental do Comportamento

Coordenadora do Projeto de Extensão da Liga de Atenção

à Populações Negligenciadas (LIPOP)

Membro do Projeto de Extensão Eis-me Aqui

(Brasil)

 

Recepção: 24/12/2022 - Aceitação: 22/01/2023

1ª Revisão: 19/08/2022 - 2ª Revisão: 19/01/2023

 

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Citação sugerida: Maffei, W.S. e Maffei, I.G. (2023). Aprender a ser professor de educação física: a experiência sensível do corpo vivido. Lecturas: Educación Física y Deportes, 27(297), 167-184. https://doi.org/10.46642/efd.v27i297.3656

 

Resumo

    As temáticas envolvendo a formação docente no Brasil têm sido alvo de muitos debates no meio acadêmico, principalmente após a abertura política ocorrida na década de 1980, período marcante para o atual momento. Ao longo do período foram apresentadas diversas imagens e concepções a respeito do professor e o seu processo de constituição profissional. Buscando contribuir com a temática, esta pesquisa teve como objetivo analisar a percepção de professores de Educação Física sobre o próprio processo de aprendizagem da docência. Trata-se de uma pesquisa descritiva, cujas informações foram geradas por questionário eletrônico, a partir da questão: “Como aprendeu ser Professor(a)?”. Participaram da pesquisa 81 docentes das diferentes regiões do país. Utilizou-se a técnica da Análise de Conteúdo, com dados organizados a partir de 112 apontamentos, reunidos em 43 campos semânticos, agrupados em 6 categorias temáticas: Aprendizagem Contínua, Aptidão, Experiência Profissional, Formação Continuada, Formação Inicial e Outros. Concluiu-se que a percepção sobre a aprendizagem profissional é constituída pelos hábitos recuperados pela motricidade, ou seja, na relação do sujeito com a própria experiência, sendo que a experiência do corpo vivido ou em outras palavras o viver da experiência significa ao sujeito e se materializa por meio da forma como ele percebe o seu processo de formação.

    Unitermos: Educação Física. Formação profissional. Percepção.

 

Abstract

    Themes involving teacher training in Brazil have been the subject of many debates in the academic world, specifically after the political opening, which happened in the 1980s, a remarkable period for the current moment. During the period, several images and conceptions were presented regarding the teachers and their process of professional formation. Seeking to contribute to this theme, this research aims to analyze the perception of Physical Education teachers about the teaching and learning process. This is a descriptive research, in which the information is engendered by an electronic questionnaire, composed of five sections, however, this document refers to question 1, Section 5: “How did you learn to be a Teacher?”. 81 professors from different regions of the country participated in the research. A Content Analysis technique is used and the data were organized into 112 notes, gathered in 43 semantic fields, grouped into 6 thematic categories: Continuing Learning, Aptitude, Professional Experience, Continuing Education, Initial Training and Others. It is concluded that the perception of professional learning is constituted by the habits recovered by motricity, that is to say, in the subject's relationship with his own experience, and the experience of the lived body, or in other words, the living of the experience means to the subject and materializes through the way he perceives his formation process.

    Keywords: Physical Education. Professional qualification. Perception.

 

Resumen

    Los temas que involucran la formación docente en Brasil han sido objeto de mucho debate en el ámbito académico, especialmente después de la apertura política que tuvo lugar en la década de 1980, un período relevante para el momento actual. A lo largo del período se presentaron diversas imágenes y concepciones sobre el docente y su proceso de constitución profesional. Buscando contribuir con el tema, esta investigación tuvo como objetivo analizar la percepción de los profesores de Educación Física sobre el proceso de enseñanza aprendizaje en sí. Se trata de una investigación descriptiva, cuya información fue generada por medio de un cuestionario electrónico, a partir de la pregunta: “¿Cómo aprendiste a ser Profesor(a)?”. Participaron de la encuesta 81 docentes de diferentes regiones del país. Se utilizó la técnica de Análisis de Contenido, con datos organizados a partir de 112 apuntes, agrupados en 43 campos semánticos, organizados en 6 categorías temáticas: Aprendizaje Continuo, Aptitud, Experiencia Profesional, Educación Continua, Formación Inicial y Otros. Se concluyó que la percepción del aprendizaje profesional está constituida por los hábitos recuperados por la motricidad, o sea, en la relación del sujeto con su propia experiencia, y la experiencia del cuerpo vivido o, en otras palabras, la vivencia de la experiencia significa al sujeto y se materializa a través de la forma en que percibe su proceso de formación.

    Palabras clave: Educación Física. Formación profesional. Percepción.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 27, Núm. 297, Feb. (2023)


 

Introdução 

 

    As temáticas envolvendo a formação docente no Brasil têm sido alvo de muitos debates no meio acadêmico, principalmente após a abertura política ocorrida na década de 1980, período marcante para o atual momento. No período, estudos sobre a formação docente pautados na prática profissional e na reflexão docente marcaram os debates e foram utilizados na reformulação das políticas públicas da formação de professores em diversos países. (Schön, 1992; Zeichner, 1992; Nóvoa, 1992; Perrenoud, 1993; Maffei, 2021)

 

    Desses debates emergiram imagens e concepções a respeito das especificidades do processo de ensino/aprendizagem que evidenciaram particularidades do professor e orientaram diferentes entendimentos e caminhos na busca por melhor compreensão sobre os processos de constituição do profissional que atua na educação básica. Com relação à constituição profissional do professor, importantes contribuições foram apresentadas, das quais se pode destacar entre muitas:

    Tardif (2002), quando atenta para a importância da formação continuada, uma vez que o processo de formação de professores extrapola a experiência inicial propiciada pelo curso superior; Schön (1992), ao propor um processo de reflexão sobre a prática pautada em – conhecimento na ação, reflexão-na-ação, reflexão-sobre-a-ação e reflexão-sobre-a-reflexão-na-ação; Huberman (1992), quando descreve a carreira docente a partir dos ciclos de vida profissional e atribui sentidos para os diferentes momentos da carreira do professor; Isaia, e Bolzan (2007, 2009), ao afirmarem que a formação/constituição para a docênciase caracteriza pelo processo de aprender a ser professor, no qual o tempo de experiência docente é compreendido como diferencial no processo de formação/mediação.

    Na educação física, autores como Barbosa-Rinaldi (2008), Silva (2009). Gariglio (2010), Metzner (2011), Maffei (2014), Maffei, e Schnetzler (2018); Bisconsini, e Oliveira (2019), reforçam o valor das experiências na formação, em especial, as relacionadas ao campo de atuação.

 

    Se o tempo, a experiência, a reflexão e a aprendizagem contínua, citadas pelos autores são fundamentais à formação, osmeios pelos quais essa formação se dá também são importantes para a constituição do profissional, sendo quemerecem destaque, a presença do outro, as estratégias utilizadas na mediação da aprendizagem, as diferentes experiências vividas na formação e na atuação profissional e o próprio campo profissional.

 

    Com relação à presença do outro, a ação educativa “[...] é realizada concretamente numa rede de interações com outras pessoas, num contexto em que o elemento humano é determinante e dominante”. (Tardif, 2002, p. 50)

 

    As estratégias utilizadas na formação e as experiências no campo profissional também são fatores importantes da formação. Dentre as diferentes perspectivas adotadas nas últimas décadas, as concepções com características mais técnicas têm sido questionadas quanto à eficácia, enquanto o discurso voltado à valorização da reflexão e da ação no processo de ensino têm se tornado hegemônico. (Bisconsini, 2017; Carvalho Santos, 2019)

 

    Esse cenário se tornou propício para a utilização de estratégias que se valem de experiências reais e simuladas da prática profissional objetivando a resolução de problemas em diferentes contextos e aplicações, onde o futuro professor se torna protagonista da própria aprendizagem e ativo no processo da sua formação.

 

    Partindo desses pressupostos, o encontro entre os diferentes sujeitos do processo de formação implica, por um lado, um mediador que não é apenas a figura da pessoa, mas seus conhecimentos, concepções e crenças; o contexto; os meios utilizados no processo de formação e as estratégias didáticas utilizadas. O outro, o aprendiz, é o sujeito com papel fundamental e responsabilidade no processo formativo, uma vez queele é o agente responsável pela construção do próprio conhecimento. Diante disso, “estar em formação implica um investimento pessoal, um trabalho livre e criativo sobre os percursos e os projetos próprios, com vista à construção de uma identidade”. (Nóvoa, 1992, p. 25)

 

    Como consequência desses e de outros muitos estudos, o conhecimento produzido possibilitou a construção de diferentes conceitos, imagens, representações e metáforas sobre o professor e os processos de constituição profissional. Frente ao exposto, surge o questionamento/problema: Como os professores de Educação Física aprendem a ser professores?

 

    Com o intuito de avançar teoricamente na compreensão sobre a temática, foi utilizado como referencial parar a investigação a teoria da percepção apresentada por Merleau-Ponty (1999), que considera a percepção distinta da sensação, ainda que mantenha relação com estímulo/resposta na interação com o corpo e com o movimento. Nesta relação, entende que a sensação é o instrumento, a maneira pela qual o sujeito é afetado pela experiência, enquanto a percepção seria a ação, o ato pelo qual a consciência apreende o mundo e para issonão pode estar destacado dele.

 

    Entendida como autopoieses e como enação, a percepção é entendidacomo processo de “juntar partes novas do ambiente ao sistema organismo-entorno (sic), porém não se trata de um processamento de informações. Com a ajuda dos receptores eferentes, cada organismo cria seu próprio mundo, simultaneamente objetivo e subjetivo” (Nóbrega, 2008, p.144).

 

    O corpo se torna, portanto, campo de percepção e construção de sentidos e frente a essa afirmação, Neuenfeldt, e Mazzarino (2017), reconhecem o corpo como lugar de aprendizagens. Ainda que o corpo seja o lugar da aprendizagem ou campo de percepção e construção de sentidos, ele não pode estar destacado do mundo ou das coisas do mundo,“"algo" (sic) perceptivo está sempre no meio de outra coisa, ele sempre faz parte de um "campo" (sic)”. (Merleau-Ponty, 1999, p. 24)

 

    Trata-se, portanto, de uma experiência do eu com o mundo, em que os sentidos providos da experiência instrumentalizam as percepções que dão significado ao mundo concreto ou subjetivo. Partindo dessa premissa, ouvir a percepção do professor sobre o seu processo formativo, enseja em compreender sua própria concepção a respeito da apreensão do mundo em um determinado campo.

 

    Buscando respostas à questão problema, esta pesquisa tem como objetivo analisar a percepção de professores de Educação Física sobre o próprio processo de aprendizagem da docência.

 

Método 

 

Dados contextuais e metodológicos 

 

    Este estudo pressupõe uma pesquisa descritiva de natureza qualitativa, na qual as informações foram geradas por meio da aplicação de questionário via plataforma online (Google Forms) aos docentes de Educação Física, que atuam em escolas de educação básica, nas diferentes regiões do Brasil. Para tanto, partiu-se de um banco de dados com endereço de e-mail de 810 professores de Educação Física distribuídos pelas diversas regiões do país.

 

    O questionário aplicado foi constituído por cinco seções, a primeira se relacionava com o texto convite, no qual explicitava os pesquisadores que desenvolveram o estudo e apresentava informações a respeito da pesquisa. Na Seção 2, estava alocado o termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o qual após a ciência dos termos apresentados sobre a pesquisa, perguntava ao leitor se ele aceitava participar da pesquisa e consentia que as informações fossem tornadas públicas, preservando o anonimato do participante. Em caso de resposta positiva, o convidado acessava às seções 3 a 5. Na Seção 3 e 4, por meio de nove questões fechadas, foram solicitadas informações a respeito do participante (sexo, idade, dados sobre a formação, titulação e atuação profissional). Por fim, a Seção 5, era constituída por 19 questões abertas que tratavam das experiências de vida de professores de Educação Física, abordando temas como aprendizagem da profissão; desafios atuais da docência; critérios de atuação e escolha dos conteúdos e estratégias para os diferentes níveis da educação básica; como agir em momentos de insatisfação com o trabalho; como tratar a atitude de insatisfação/não participação do aluno na aula; como avaliar os resultados alcançados nos processos de ensino/aprendizagem; como lidar com fatores institucionais que interferem no trabalho.

 

    Em função da quantidade de informações e do formato proposto para a construção deste artigo, foram tratadas apenas das informações obtidas nas Seções 3 e 4 (informações dos participantes) e da questão 1 da Seção 5: Como aprendeu a ser Professor (a)?

 

    As informações foram analisadas por meio da técnica da Análise de Conteúdo, Bardin (1977), que consiste em três fases fundamentais: Organização da análise (pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados); Codificação (unidade de registro e regras de enumeração) e Categorização (classificação dos elementos). Tais ações são seguidas pela inferência e a interpretação dos dados.

 

    Para a construção dos dados da pesquisa, inicialmente foi realizada uma leitura flutuante sobre as respostas das questões da Seção 5, com o propósito de verificar aproximações com o objetivo da pesquisa, verificando-se que apenas a Questão 1 trazia informações sobre a demanda requerida. No passo seguinte, foi realizada a leitura minuciosa no conteúdo das respostas e destacadas as frases que atendiam ao chamado da pesquisa. Nestas frases foram destacadas e contadas as palavras-chave (apontamentos), sem interpretação de sentido e agrupadas em função do conteúdo para em seguida, fazer a redução dos agrupamentos por emparelhamento de sinônimos e sentidos próximos (campos semânticos), dando origem às categorias temáticas.

 

    Ao analisar as informações da pesquisa e em função do rigor metodológico e manutenção do anonimato dos participantes, quando mencionado um participante a citação ocorrerá por meio da indicação da letra P (indicativo de professor), seguido do número gerado pela ordem em que os professores responderam ao questionário. Assim, os professores serão nomeados como P01 a P81, uma vez que dos 810 questionários enviados aos professores, 81retornaram respondidos e compõem o banco de informações da pesquisa.

 

    Destaca-se que essa investigação foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos conforme parecer CEP Nº 3.261.852.

 

Resultados 

 

Organização, codificação e categorização dos dados 

 

    Ainda que o banco de dados seja constituído por 810 e-mails de docentes da Educação Básica, 81 (10%) questionários estão preenchidos e, portanto, integram o núcleo de colaboradores da pesquisa. Do total de docentes colaboradores, 43 (53,1%) do sexo masculino; 9 (11,1%) docentes têm idade superior a 46 anos, 39 (48,1%) idade entre 36 e 45 anos, 27 (33,3%) entre 31 e 35 anos, 6 (7, 4%) entre 26 e 30 anos.

 

    Com relação a distribuição dos docentes por unidade federativa, o grupo de colaboradores é constituído por docentes que desenvolvem suas atividades profissionais em 19 estados da Nação, conforme os dados apresentados na Tabela 1.

 

Tabela 1. Distribuição dos docentes por unidade federativa

Estados

Número por estado

Número total

% por Estado

% total

São Paulo

21

21

25,9%

25,9%

Paraná

8

8

9,9%

9,9%

Minas Gerais e Distrito Federal

7

14

8,6%

17,6%

Mato Grosso

5

5

6,2%

6,2%

Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte

4

12

4,9%

14,7%

Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Goiás e Espírito Santo

3

12

3,7%

14,7%

Tocantins e da Bahia

2

04

2,5%

5%

Santa Catarina, Alagoas, Ceará, Paraíba e Pará.

1

05

1,2%

6%

Total

81

 

100%

Fonte: Dados da pesquisa

 

    A Tabela 2 apresenta dados relativos à formação dos colaboradores, em sua maioria formados em Universidades Públicas e quase que a totalidade com curso de especialização.

 

Tabela 2. Formação dos colaboradores

 

Graduação

Pós-graduação

Universidade Pública

Universidade Particular

Faculdade Particular

Especialização

Mestrado

Nº de Docentes

41

23

17

75

28

% de Docentes

50,6%

28,4%

21%%

92,6%

34,5%

Fonte: Dados da pesquisa

 

    Com relação à atuação dos colaboradores, o grupo é constituído por docentes experientes, sendo que 62 (76,5%) têm experiência de 6 a 25 anos de atuação com a Educação Física na educação básica.

 

    Quanto à categoria administrativa em que os docentes atuam, a Tabela 3 apresenta dados consolidados a respeito da temática.

 

Tabela 3. Categoria administrativa das escolas em que atuam os colaboradores

Categoria Administrativa

Escolas Municipais

Escolas Estaduais

Escolas Municipais e Estaduais

Rede Privada

Total

Nº de Colaboradores

34

22

19

06

81

% de Colaboradores

42%

27,2

23,4

7,4

100

Fonte: Dados da pesquisa

 

    Para a construção dos dados da pesquisa, extraídos da percepção docente sobre a própria experiência, foram utilizadas as respostas da questão 1, localizada na seção 5 do formulário, constituída da seguinte forma: Como aprendeu a ser Professor(a)?

 

    A análise das informações foi realizada por meio da Categorização Temática por critério semântico (sintático, léxico e expressivo), conforme proposto por Bardin (1977). Para tanto, procurou-se inicialmente construir um inventário com todas as proposições de experiências percebidas como fundamentais à aprendizagem da docência e que atendiam ao objetivo da pesquisa. Nessa fase foram encontrados 112 apontamentos.

 

    Em seguida, foi realizado o agrupamento temático (seguindo os critérios léxicos, relativo ao sentido das palavras, com emparelhamento de sinônimos e sentidos próximos; e expressivo, que considera as diversas perturbações da linguagem). Nesse processo foram reunidas 43 diferentes percepções, agrupadas em seis campos semânticos/categorias temáticas, denominados nesse estudo como Aprendizagem Contínua (5), Aptidão (5), Experiência Profissional (15), Formação Continuada (4), Formação Inicial (9) e Outros (5). A Tabela 4 apresenta as percepções docentes, reunidas nas seis categorias temáticas.

 

Tabela 4. Percepção dos participantes sobre a aprendizagem profissional

Categorias Temáticas

Percepção docente reunida por campo semântico

Total de citações

Apontamentos

Campo semântico

Aprendizagem Contínua

Continuo aprendendo; estou aprendendo; aprendo a cada dia; construção diária; aprendizagem é contínua, inacabada.

06

05

Aptidão

Dom; naturalidade; nasci assim, vocação; ensino desde jovem.

08

05

Experiência profissional

Estágios; prática; vivência; no processo; docência; prática pedagógica; prática docente; experiência de ser professor; prática diária; ministrando aula; experiência como aluna; dia-a-dia; com outros professores; chão da escola; refletindo sobre a prática.

59

15

Formação Continuada

Em órgãos públicos; pós-graduação; formação continuada; cursos de formação.

06

04

Formação Inicial

Magistério; curso superior; percurso acadêmico; estágio na faculdade; disciplina didática; formação inicial; formação individual; aprendendo e ensinando na formação inicial; projeto de extensão.

28

09

Outros

Com base em uma professora do Ensino Fundamental; sempre gostei de atividade física; envolvimento com a prática de esportes; estudo e dedicação; relações humanas e convívio.

05

05

Total

112

43

Fonte: Dados da pesquisa

 

Discussão 

 

Interpretação dos dados/inferências 

 

    A percepção trazida pelos participantes da pesquisa, agrupada por campo semântico, conforme apresentada na Tabela 4, trata da experiência percebida pelos docentes, que se mostra variada e heterogênea. Diante das informações, aprender da prática da experiência ou do mundo percebidopressupõe uma experiência sensitiva pessoal, local e temporal do sujeito, visto que toda experiência perceptiva é corporal, onde o movimento e o sentir são os elementos fundamentais à percepção.

    A percepção sinestésica é a regra e se não percebemos isso é porque o saber científico desloca a experiência e porque desaprendemos a ver, a ouvir e, em geral, a sentir, para deduzir de nossa organização corporal e do mundo tal como concebe o físico aquilo que devemos ver, ouvir e sentir. ... Portanto, se considerados como qualidades incomparáveis, os "dados dos diferentes sentidos" (sic) dependem de tantos mundos separados, cada um deles, em sua essência particular, sendo uma maneira de modular a coisa, todos eles se comunicam através de seu núcleo significativo. (Merleau-Ponty, 1999, pp. 308-309)

    Diante das considerações apresentadas é possível inferir que não há como perceber pela experiência do outro, nem tampouco generalizar que as experiências são homólogas, uma vez que elas se referem ao contato do sujeito com o mundo, com seu próprio campo de existência. Tal consideração pressupõe também que toda percepção parte de algo concreto, de uma experiência sensível, na qual a própria sensação é o instrumento da percepção. A percepção “é uma descrição do mundo em estado nascente, mundo pré-reflexivo, não é o mundo objetivado criado pela cultura, ciência, é o mundo percebido por um corpo”. (Costa, 2015, pp. 275-276)

 

    Ainda que as percepções tenham sido alocadas em categorias e agrupadas por campo semântico, não há como precisar que as experiências refletem os mesmos sentidos nos sujeitos, uma vez que representam dados de diferentes sentidos, percebidos em mundos particulares. Tal condição está referenciada na Tabela 4, que apresenta 112 apontamentos distribuídos em 43 campos semânticos. Ainda assim, trata-se da forma como os participantes percebem o mundo, em particular, o próprio processo de formação.

 

    Ao discorrer sobre o mundo percebido, mais precisamente ao tratar da percepção visual e tátil, Merleau-Ponty (1999) conclui que as percepções sensoriais são imediatamente traduzidas na linguagem dos outros órgãos. Portanto, toda experiência corporal (tátil) vai ao encontro de todos os órgãos ao mesmo tempo e traz consigo uma certa típica do mundo. Diante disso, as percepções estão ligadas ao campo de existência, entendido como objeto, espaço e tempo das experiências sensitivas em que o sujeito estabelece com o mundo. As experiências a que o corpo se submete são o próprio campo de criação e criadora de sentido, ou seja, as experiências são únicas e autênticas e quando iluminadas pela consciência, concedem ao ser humano uma existência única, que é de seu direito. (Da Motta, 2022)

 

    Com relação à tríade objeto, espaço e tempo das experiências sensitivas do mundo percebido,a reunião das categorias temáticas trazidas na Tabela 4, sugere que as percepções se relacionam a diferentes espaços e tempos da formação, sendo queentre elas figura a percepção dos docentes de que o tempo é contínuo, a Aprendizagem é Contínua (Tabela 4).

    ... o que é dado não é um fragmento de tempo e depois um outro, um fluxo individual e depois um outro, é a retomada de cada subjetividade por si mesma e das subjetividades umas pelas outras na generalidade de uma natureza, a coesão de uma vida intersubjetiva e de um mundo. (Merleau-Ponty, 1999, p.606)

    Nessa perspectiva, as falas dos colaboradores trazidas a seguir se remetem à ideia da retomada das subjetividades e da percepção sobre o inacabado, envolvendo a consciência individual, própria ao sujeito da experiência.

    Aprendo todos os dias, mas acredito que minha primeira experiência foi muito enriquecedora. (P26)

 

    Aprendo até hoje, é uma construção diária. (P33)

 

    Acredito que ainda não aprendi tudo, estou aprendendo, cada ano de docência é um aprendizado, aliando as experiências com teoria e desafios encontrados e apresentados pelos estudantes durante a prática. (P46)

 

    ... mas a aprendizagem de ser professor é contínua e inacabada. (P57)

 

    Não aprendi ser professor, estou aprendendo e estudando constantemente. (P76)

    De acordo com os colaboradores, a aprendizagem da docência se faz em um contínuo, visto que os diferentes sentidos são constituídos pelas experiências corpóreas experimentadas pelo sujeito a partir do mundo percebido, ou das subjetividades construídas nas ações cotidianas do trabalho da docência.

 

    Corroborando com as afirmações dos participantes da pesquisa, Rufino et al. (2017) constataram que a construção dos saberes dos professores advém de diferentes fontes como a formação, a experiência e o currículo, mas também é gerada durante o desenvolvimento da prática profissional. A prática profissional “engendra um amálgama de construção, mobilização e ressignificação de saberes que são fundamentados a partir da epistemologia que se ancora na prática”. (Rufino et al., 2017, p. 401)

 

    Portanto, as experiências são significadas no sujeito de acordo com diferentes percepções, uma vez que elas são ao mesmo tempo campo de criação e criadoras de sentido, trata-se de experiências do “...sujeito encarnado, que olha, sente e reconhece o espaço como expressivo e simbólico ...nós somos uma zona de existência generalizada e de projetos já feitos, significações que vagueiam entre nós e as coisas e que nos qualificam”. (Merleau-Ponty, 1999, p. 603)

 

    De acordo com os colaboradores da pesquisa, o próprio desempenho da docência é um campo de aprendizagem, de formação, visto que é um espaço de construção de sentido e significação do sujeito, um espaço perceptivo, expressivo e simbólico.

 

    A aprendizagem contínua também é percebida quando se alinha objeto, espaço e tempo das experiências sensitivas. Nesse sentido, o alinhamento temporal das categorias temáticas Aptidão, Formação Inicial, Experiência Profissional, Formação Continuadadenota a relação com o tempo presente, a percepção do sentido construído a partir do mais significativo no aprender profissional.

 

    Por outro lado, ao se referirem a uma experiência ou a um conjunto de experiências no tempo como experiência única de formação percebida, desconsideram o campo intersubjetivo da sua história e muito daquilo que se vê, sente e é, deixando transparecer que o dado é um fragmento de tempo e depois um outro, dando ao sujeito a falsa impressão de que a percepção se constrói por fragmentos do real, o que não é verdadeiro, segundo já enunciado por Merleau-Ponty em citação anterior. Entretanto, as falas a seguir fazem referência à percepção fragmentada sobre a formação.

    Aprendi noções com a faculdade por meio de estudos e práticas pedagógicas, mas somente na docência efetiva que desenvolvi práticas e habilidades de regência. (P02)

 

    Bom, primeiramente eu fiz magistério no CEFAM durante o ensino médio. Na graduação, tive os conhecimentos teóricos (que são em maior número) e também práticos (em menor proporção) necessários para embasar minha prática e levei muito da experiência do magistério para a construção da mesma, por ter tido uma vivência prática maior. Mas no final, acredito que a gente aprende a ser professor mesmo através das experiências positivas que tivemos ao longo de toda vida. (P06)

 

    Lecionando e participando de formações oferecidas pelos órgãos públicos estaduais e municipais. (P21)

 

    Com bases teóricas construídas no percurso acadêmico e com a prática diária na escola. (P44)

 

    Tive a primeira base de instruções na faculdade na disciplina de educação física escolar, mas aprendi a dar aula, lidar com alunos na vivência do dia e tendo auxílio de outros professores com maior tempo de serviço na escola. (P49)

    Se por um lado a construção subjetiva da percepção possa parecer fragmentada, por outro, tal percepção é representação do presente, de tudo aquilo que a pessoa vê e sente com relação a própria experiência.

 

    Sobre a temática da formação a partir das experiências, ainda que Hildebrandt-Stramann et al. (2021) atentem para o fato de que os conhecimentos da formação apoiados apenas nas experiências biográficas impactam diretamente na prática cotidiana e dificultam a compreensão da importância da teoria em um processo formativo, eles afirmam que o “mundo não pode ser identificado somente pelo pensar, mas também pelo sentir e pelo movimento. Movimento é um meio de conhecimento e com isso identificamos o seu significado”. (Hildebrandt-Stramann et al., 2021, p. 12)

 

    Neuenfeldt et al. (2021), ao estudarem o processo de formação, concluíram que a dimensão da experiência se apresenta de duas formas nos currículos de formação do professor de Educação Física, sendo a primeira como forma de experimentar o corpo e pelo corpo, objetos de ensino da Educação Física e a outra como experiência do cotidiano docente, necessária à construção dos saberes a partir da experiência de ser professor.

 

    Fragmentadas ou não, é certo que as experiências biográficas conforme denominam Hildebrandt-Stramann et al. (2021), significam e afetam o tempo presente do sujeito, promovendo representações e sentidos particulares sobre as aprendizagens da docência, entretanto o tempo não pode ser deslocado do todo.

    O presente efetua a mediação do Para Si e do Para Outrem (sic), da individualidade e da generalidade. A verdadeira reflexão me dá a mim mesmo (sic) não como subjetividade ociosa e inacessível, mas como idêntica a minha presença ao mundo e a outrem, tal como eu a realizo agora: sou tudo aquilo que vejo, sou um campo intersubjetivo, não a despeito de meu corpo e de minha situação histórica, mas ao contrário sendo esse corpo e essa situação e através deles todo o resto. (Merleau-Ponty, 1999, p. 606)

    Diante de tais construções sobre a percepção da aprendizagem da docência, pode-se inferir que o constitutivo da aprendizagem profissional no magistério da Educação Física não se pode resumir a um fragmento da formação, massim ao conjunto objeto/tempo/espaço das experiências sensitivas do corpo vivido, ou seja, trata-se dos sentidos produzidos ao longo de todo o processo de formação e atuação profissional, iniciado ainda antes do ingresso no curso de graduação, como sugerem as palavras-chave retiradas do campo semântico da Tabela 4: Com base em uma professora do Ensino Fundamental; sempre gostei de atividade física; envolvimento com a prática de esportes; Curso de Magistério; dom; naturalidade; nasci assim, vocação; ensino desde jovem.

 

    Partindo dessa construção, pode parecer que uma experiência marcante seja a representação do todo, entretanto ela somente pode ser percebida em função de todo o resto. Tal condição também é salientada pelos participantes, conforme indicam as percepções transcritas a seguir.

    Com as experiências vivenciadas no decorrer da docência, conhecimentos compartilhados por meio de outros colegas professores, e por conhecimentos teóricos adquiridos durante minha formação individual ou acadêmica. (P13)

 

    Na graduação, na vivência do cotidiano escolar (iniciei a docência estando no 2º período de graduação), nas trocas com colegas professores, na pós-graduação, no mestrado e agora aprendendo a ser professor também no trabalho remoto. (P27)

 

    Aprendi a ser professor, vendo outros bons e ruins exemplos, estudando e aprofundando cada dia mais, estando em frente de algumas dificuldades no contexto do colégio e sendo professor com passar do tempo, a gente aprende ensinando, na formação inicial, na pós-graduação e na minha formação aprendi a ética profissional de ser professor, agora como ser professor é somente sendo e estando aberto a novos aprendizados e desafios. (P45)

 

    Nas experiências vividas em brincadeiras e jogos na infância/adolescência, na graduação nos estágios e na prática docente. (P55)

    Tais construções sobre o corpo atual são retrospectivas, não significam ou valorizam apenas um momento da formação, mas descrevem um continuum sobre a percepção formativa. Entretanto, o corpo perceptivo está por vir.

    Para Merleau-Ponty (1999), perceber é, a partir do passado, que não me é totalmente conhecido (corpo habitual), e apoiado na materialidade do presente (corpo atual), lançar-se ao futuro, que não me é totalmente previsível (corpo perceptivo). Portanto, o corpo perceptivo é virtual, nós percebemos como uma possibilidade futura; sou sempre corpo atual, mas dirigido por hábitos que retomo de maneira expressiva pela motricidade. (Betti, 2007, p. 43)

    Infere-se, portanto, quea resposta à pergunta inicial, como aprendeu a ser professor, é retrospectiva, prospectiva e perspectiva, ainda quematerializada no corpo presente (corpo atual). Trata-se da materialidade virtual, relacionada ao corpo perceptivo, que existe sem estar presente, ou seja, pressupõe a percepção retrospectiva sobre a experiência no mundo, que se materializa/percebe no corpo presente, corpo atual.

 

    As respostas à questão da pesquisa podem trazer a impressão de um recorte do real, porque quebram a noção de temporalidade e remetem àquele momento em que o participante respondeu ao questionário. Entretanto, conforme sinalizado na interpretação trazida anteriormente por Betti, as percepções dos participantes da pesquisa a respeito da própria formação são dirigidas por hábitos retomados pela motricidade, ou seja, percepções do corpo vivido nas diferentes experiências de formação/atuação como professor que se materializam no corpo percebido. Diante disso, entende-se que tais percepções são significativas para o tempo presente e como sou sempre corpo atual, representado por hábitos, tais percepções podem ser ressignificadas no futuro ou a partir de outras reflexões, apresentando percepções diferentes daquelas do momento presente, visto que estarão contempladas em outro tempo presente.

 

    Dessa forma, pode-se inferir que o processo pelo qual o professor aprende a ser professor é sensitivo (instrumento da percepção), individual, corporal (sinestésica - provoca a percepção de vários sentidos), temporal (relação presente/passado/futuro), espacial (em determinado lugar), situacional (experiência concreta) e subjetivo (pertence ao sujeito).

 

Conclusões 

 

    Este texto teve como objetivo analisar e, acima de tudo, compreender a percepção de professores de Educação Física sobre o próprio processo de aprendizagem da docência. Em função do objetivo proposto, conclui-se que o processo de aprendizagem da docência se mostra variado, heterogêneo e, portanto, se apresenta de diferentes formas/momentos ao sujeito, é guiado por hábitos retomados nas diferentes experiências de formação/atuação como professor que se materializam nas ações docentes. Tal processo é, portanto, retrospectivo, pois recorre aos diferentes hábitos retomados das experiências vividas; é perspectivo, uma vez que está relacionado com a forma como se analisa o próprio processo de formação, a materialidade presente; e prospectivo, pois a percepção não é concreta, é virtual, é percebida como uma possibilidade futura.

 

    Tendo essa constatação como ponto de partida, elementos como formação inicial, formação continuada e experiência profissional são citados como importantes espaços/momentos da aprendizagem da docência. Entretanto, fatores relacionados ao indivíduo (pessoais) como a aptidão ou o gosto pela área também são percebidos como referências à constituição do profissional. Há ainda o destaque para outros agentes que participam do processo e são fundamentais para a aprendizagem profissional do professor, que é infinita, ou seja, a aprendizagem é contínua e se estende por toda a carreira docente.

 

    Conclui-se, portanto, que não há como descrever ou indicar processos, momentos, estratégias mais eficazes ou mais significativas que sejam comuns ao aprendizado da docência em Educação Física, uma vez que a percepção dos colaboradores sobre a constituição profissional foi significada a partir dos hábitos recuperados pela motricidade, isto é, a partir dos sentidos providos da relação com o mundo, visto que a experiência do corpo vivido, ou em outras palavras, o viver da experiência significa ao sujeito e se materializa por meio da forma como ele compreende o seu processo de formação. Logo, trata-se de um processo sensitivo, individual, corporal, temporal, espacial, situacional e subjetivo, estabelecido com a experiência, no qual o sujeito constrói os significados por meio da percepção sobre o mundo vivido.

 

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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 27, Núm. 297, Feb. (2023)