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ISSN 1514-3465

 

A Educação Física escolar em Portugal: entre a centralidade e a diversidade

The School Physical Education in Portugal: Between Centrality and Diversity

La Educación Física Escolar en Portugal: entre la centralidad y la diversidad

 

António Camilo Cunha*

camilo@ie.uminho.pt

Zenaide Galvão**

zgalvao@uol.com.br

 

*Prof. Doutor com Agregação (Livre Docência)

Universidade do Minho – Instituto de Educação

CIEC - Centro de Investigação em Estudos da Criança

**Doutoranda em Estudos da Criança

Universidade do Minho – Instituto de Educação

CIEC - Centro de Investigação em Estudos da Criança

Universidade do Minho

(Portugal)

 

Recepção: 25/11/2021 - Aceitação: 10/06/2022

1ª Revisão: 14/03/2022 - 2ª Revisão: 07/06/2022

 

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Citação sugerida: Cunha, A.C., e Galvão, Z. (2022). A Educação Física escolar em Portugal: entre a centralidade e a diversidade. Lecturas: Educación Física y Deportes, 27(290), 112-123. https://doi.org/10.46642/efd.v27i290.3274

 

Resumo

    A Educação Física escolar em todos os países onde a Educação se faz presente está cercada por diferentes concepções, sejam culturais, científicas, pedagógicas, sejam de práxis curriculares. O objetivo desta reflexão (ensaio) é tentar vislumbrar tendências de Educação Física em Portugal e no mundo, tendo como referência a Europa. Vamos perceber que tanto a formação de professores de Educação Física, como a intervenção profissional se faz entre duas grandes dimensões: a centralidade/unidade versus a diversidade. Uma centralidade/unidade “prisioneira” da autoridade do Estado e uma diversidade que apela à consciência de cada escola, de cada professor, de cada comunidade, em função dos contextos e circunstâncias. Esta dimensão, parece estar mais próxima do livre movimento, do livre brincar - caraterísticas fundantes do homo-ludens.

    Unitermos: Educação Física. Unidade. Diversidade. Professor. Currículo.

 

Abstract

    School Physical Education in all countries where Education is present is surrounded by different concepts, whether cultural, scientific, pedagogical, or curricular praxis. The objective of this reflection (essay) is to try to glimpse trends in Physical Education in Portugal and in the world, having Europe as a reference. We will see that both the training of Physical Education teachers and professional intervention is made between two great dimensions: centrality/unity versus diversity. A “prisoner” centrality/unit of State authority and a diversity that appeals to the conscience of each school, each teacher, each community, depending on the contexts and circumstances. This dimension seems to be closer to free movement, to free play - founding characteristics of homo-ludens.

    Keywords: Physical Education. United. Diversity. Teacher. Curriculum.

 

Resumen

    La Educación Física Escolar en todos los países donde la Educación está presente se ve influida por diferentes concepciones, ya sean culturales, científicas, pedagógicas o de praxis curricular. El objetivo de esta reflexión (ensayo) es tratar de vislumbrar tendencias en Educación Física en Portugal y en el mundo, teniendo a Europa como referencia. Se percibe que tanto la formación del profesorado de Educación Física como la intervención profesional se realiza entre dos grandes dimensiones: centralidad/unidad versus diversidad. Una centralidad/unidad “prisionera” de la autoridad del Estado y una diversidad que apela a la conciencia de cada escuela, de cada docente, de cada comunidad, según los contextos y las circunstancias. Esta dimensión parece estar más cerca del libre movimiento, del libre juego, características fundantes del homo ludens.

    Palabras clave: Educación Física. Unidad. Diversidad. Profesor. Currículo.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 27, Núm. 290, Jul. (2022)


 

Introdução 

 

    A Educação Física escolar em todos os países onde a Educação se faz presente está cercada por diferentes concepções, sejam culturais, científicas, pedagógicas, sejam de práxis. O objetivo desta reflexão (ensaio) é tentar vislumbrar tendências de Educação Física em Portugal e na Europa. A partir daqui, talvez estender (generalização teórica) aos diferentes países, onde estas dimensões são também objeto de discussão.

 

    Neste contexto, depois da exposição dos cenários, a pretensão é fazer o elogio ao “livre movimento”, ao movimento “intrinsecamente vivido”, ao movimento fenomenológico e hermenêutico como uma sábia estratégia para o homem/mulher (criança) não esquecer a natureza, nem esquecer a força do homo-ludens – o primeiro homem.

 

    O homo-ludens vai, pelo brincar e jogar, tomar conhecimento de si e do mundo - conhecendo-o e compreendendo-o. Ora, este sentido, não deverá ser esquecido pela práxis curricular, pedagógico/didática, quer na formação de professores (Quennerstedt, 2019; Rius, e Torrebadella-Flix, 2018), quer na Educação Física Escolar (Neves, 2019; O'Neil, e Richards, 2018; Torrebadella-Flix, e Montes, 2018). Neste sentido, emerge este pequeno ensaio, que está organizado em três momentos.

 

    Num primeiro momento apresenta as grandes tendências/perspectivas da formação de professores e intervenção escolar/pedagógica de Educação Física e Desporto na Europa. Estas tendências de formação implicam perspectivas diferentes de Educação Física e Desporto, em termos de intervenção formativa, escolar, curricular e social. Importante referir que, geralmente, não existe apenas uma tendência, mas um diálogo entre tendências/concepções.

 

    Num segundo momento reflete sobre os Programas de Educação Física em Portugal e qual a tendência dominante – formação e currículo.

 

    Finalmente (um terceiro momento), num exercício de abstração teórica, visita a memória e recua até à Idade Média, falando da Reforma e Contra Reforma (Protestantes e Católicos), tentando enquadrar o currículo, a formação de professores e os programas escolares, num elogio à metáfora da “ética protestante (liberdade com responsabilidade)” – que sustenta por analogia e, no caso que nos anima: uma Educação Física do “livre movimento”, do movimento “intrinsecamente vivido”, do movimento fenomenológico e hermenêutico.

 

Tendências/perspectivas da formação e intervenção profissional de professores de Educação Física e Desporto na Europa 

 

    Ao fazer uma análise (macro) à Educação Física na Europa, Cunha (2013) afirmou que existem, historicamente, pelo menos sete grandes concepções, sinteticamente apresentadas a seguir:

  1. Psicomotricidade. Concepção ligada à corrente Francesa, esta tendência é percebida com maior enfoque em países como França, Portugal, Espanha, Bélgica, Itália, Grécia. Para “além da dimensão aprendizagem e desenvolvimento psicomotor, existe também a ideia do lúdico, do jogo, dos movimentos fundamentais, da psicologia do comportamento e desenvolvimento (a estruturação de fases, etapas de aprendizagem)” (Cunha, 2013, p. 83). A Psicomotricidade considera a importância da educação por meio do movimento e em alguns países isso é sublinhado pelo fato de que desde a primeira turma da creche há programas de educação física que incluem o tema “corpo e movimento”, como na Dinamarca ou cursos psicomotores no currículo escolar, como na França. (D’Anna et al., 2019)

  2. Desportivista. Concepção ligada ao modelo Alemão. Os professores apresentam dupla formação (Exemplo: Educação Física e de Biologia); a Educação Física aparece como disciplina de menor importância, dando ênfase ao Desporto. Este fato está relacionado com o traço cultural forte relacionado “à ideia de atitude, disciplina, eficácia, sucesso, trabalho, produtividade, competição, rendimento (dimensão quantitativa)” (Cunha, 2013, p. 83). A Educação Física como Técnica Esportiva é uma tradição de ensino muito difundida. Nessa tradição, as técnicas esportivas estão no centro do ensino e inclui movimentos específicos do esporte, como as habilidades mais genéricas e fundamentais como arremessar, pegar ou chutar uma bola. Os conteúdos são divididos e segmentados, o ensino privilegia uma ordem hierárquica dos elementos simples aos mais complexos. Os alunos precisam dominar as habilidades mais fáceis antes de serem autorizados a se confrontar com as mais avançadas (Forest et al., 2018). Esta dimensão (Desportivista) está presente em muitos países, inclusive em Portugal. Os currículos de formação de professores e os currículos escolares, apresentam uma grande tendência para as práticas desportivas, como explicado no segundo momento deste escrito.

  3. Educação Desportiva. Nesta concepção o Desporto é concebido como uma forma de entender a vida e a cultura e não tanto no sentido purista expresso na competição. A preocupação é diminuir a exclusão, conciliando competição com inclusão. “Muito associada a esta perspectiva está também a defesa do conceito do estado/nação e da tradição - preservação e divulgação da tradição (cultura). Por exemplo, esta concepção dá uma grande atenção à defesa e divulgação dos Jogos Tradicionais” (Cunha, 2013, p. 83). O mesmo autor coloca ainda, que os jogos tradicionais, mais do que dizer e não esquecer o passado, mostram e iluminam o futuro, ele entende jogos tradicionais como aqueles que foram construídos pela cultura em tempos e espaços diferenciados, mas que ganharam um estatuto de jogos intemporais. Forest et al. (2018) colocaram que a Educação Desportiva pode proporcionar experiências desportivas autenticas e ricas, conhecimentos sobre a cultura do esporte, desenvolvimento das competências sociais, relação crítica ao consumismo, além de melhorar a aprendizagem motora. Esta concepção é típica de Países como Inglaterra, Escócia, Irlanda. Estes Países apresentam uma forte cultura desportiva.

  4. Especialização Precoce. Concepção que exalta o desporto precoce, a especialização precoce, a detecção de talentos, o rendimento. Na Especialização Precoce “ainda está expressa a ideia de que o cidadão é pertença do estado. É, portanto, uma concepção muito influenciada pelos caminhos político-ideológico dos antigos Países do Leste europeu que ainda preconizam esta tendência” (Cunha, 2013, p. 83). Diferentes questões (calamidades físicas, fisiológicas, psicológicas) envolvem essa concepção, entretanto uma das mais importantes é a discussão/reflexão sobre o caráter educativo do esporte quando proclama o desempenho excessivo, a obsessão pelo recorde e pelo campeonato. (Torrebadella-Flix, e Montes, 2018)

  5. Voluntariado. A Educação Física é vista como uma concepção de vida. Cunha (2013) aponta que essa concepção de vida está ligada ao tempo livre, à socialização, aos valores (o axiológico), à ecologia, à saúde e ao lazer; é um traço cultural que convida ao tempo livre para dedicar-se a si mesmo. É o que poderemos chamar de cultura explícita (eclética e inclusiva). A Educação Física apresenta-se com “forte” representação escolar, mas sobretudo com uma “forte” representação familiar e social. Estamos perante uma lógica de dicotomia de influência – pais influenciam os filhos, os filhos influenciam os pais e estes o social. Situa-se em países como Suécia, Noruega, Holanda, Dinamarca.

  6. Saúde/Biologista. A Educação Física é vista como campo de prevenção da doença e promoção da saúde, sobretudo às questões ligadas à condição física, atividade física, combate ao sedentarismo e obesidade etc. Também tem por objetivo fazer com que a atividade física se construa como um elemento cultural (hábitus) para que seja praticada durante toda a vida. Está presente em todos os países. Em alguns países, a disciplina escolar é chamada de Saúde e Educação Física ou Educação Física e Saúde (por exemplo, na Suécia), daí a crítica sociológica que aponta a normatividade de uma perspectiva de 'saudabilidade' e o perigo de reduzir a Educação Física a atividades que se relacionam apenas com o desenvolvimento da aptidão física como dever individual. O risco de interferência de tal projeto educacional nos aspectos mais privados da vida dos alunos e a tentação de regular ou mesmo normalizar padrões de comportamento escolhidos privadamente também são sublinhados. (Forest et al., 2018)

  7. “Novos” Movimentos. “A Educação Física que convoca os 'novos' movimentos - movimentos na terra, no ar, na água - resultado da evolução técnica e de um retorno do homem à natureza” (Cunha, 2013, p. 84). Retorno esse pautado pelos discursos político/sociais sobre proteção e promoção da natureza/ecológico. Esta concepção está presente em todos os países.

    Com todo o acerto, estas tendências de formação e de práxis implicam perspectivas diferentes de Educação Física/Desporto, em termos de intervenção formativo, escolar e social, implicando também concepções de currículo diferenciados – ora mais fechados e hierarquizados, ora mais abertos e dialogantes.

 

Os programas de Educação Física em Portugal 

 

    Confrontando estas tendências com a formação de professores e com os novos programas/currículos (Ministério da Educação, 1998a, 1998b, 2001) de Educação Física na escola, “parece” (numa análise empírica) correto afirmar que a tendência da Psicomotricidade e o modelo Desportivista (do Modelo Alemão – eficácia, competição) estão muito presentes. Ao analisar os currículos de 2º Ciclo do Ensino Básico até ao Ensino Secundário, foi possível constatar que este é composto por dois blocos centrais: matérias nucleares e matérias alternativas.

 

    As matérias nucleares agregam as atividades ditas clássicas: Futebol, Basquetebol, Voleibol, Atletismo, Ginástica. São matérias que, na sua essência, estão enquadradas numa abordagem estruturalista, positiva, quantitativa, fechada, de racionalidade técnico-tática, com grandes preocupações com o rendimento, a objetividade, a eficácia, a performance. É com certeza, um caminho que leva à instrumentalização do corpo (homem – máquina/objeto) pela ação técnico/tática. Estamos perante um paradigma quantitativo.

 

    Talvez, existam várias razões para a implementação da abordagem desportivista. Há de se destacar três que, parece estar em cima da mesa:

  1. A existência de lobbies curriculares e acadêmicos que defendem a lógica desportivista porque esta pressupõe maior visibilidade escolar e social;

  2. A existência de instrumentos de avaliação já construídos (de índole quantitativo/psicométrico) e, supostamente, validados para todos;

  3. A incidência desportiva está aparentemente (ou mesmo efetivamente) próxima de uma classe média/alta motora, que estimula códigos elaborados motores (competição, eficácia, rendimento) em detrimento de códigos restritos, levando à “marginalização” de crianças/jovens menos dotadas do ponto de vista motor.

    Por seu lado, as matérias alternativas agregam as atividades ditas de aventura, radicais, abertas (ecológicas). São matérias que, na sua essência, estão enquadradas numa abordagem pós-estruturalista e que enfatiza a subjetividade, a imaginação, a emoções, a presença, o rosto, a hospitalidade, etc. É com certeza, uma forma de elevação do corpo/sujeito pela ação individual e pelas práticas de significação qualitativas. Estamos perante um paradigma qualitativo.

 

    Apesar destes dois blocos centrais (como referido) estarem presentes nos currículos - do 2º Ciclo do Ensino Básico até ao Ensino Secundário – parece existir uma maior atenção às matérias nucleares em “detrimento” das matérias alternativas.

 

Matérias nucleares a alternativas – quantitativo versus qualitativo 

 

    Pelo exposto até aqui, parece existir uma dialética entre dois tipos de corpos/movimentos:

  • o corpo/movimento anatômico, funcional, objetivo, competitivo, individual, que procura a eficácia – paradigma da ideologia de mercado. Vários autores chamam atenção para este paradigma. (Gomez et al., 2018; Lavoura, e Neves, 2019)

  • o corpo/movimento mais lúdico (o eu, o outro, e o mundo – suas relações autênticas/fenomenológicas), interpretativo, hermenêutico, onde o lugar da subjetividade faz-se presente: uma subjetividade incorporada, encarnada e espiritualizada – paradigma humanista e relacional.

    Perante estes cenários esse ensaio quer fazer o elogio/defesa ao corpo/movimento humanista e relacional (Oliveira, 1985; Hildebrandt, e Laging, 1986; Maturana, 2006; Herrera, e Scharagrodsky, 2016; Ricoeur, 1990, 2000); e às práticas corporais concebidas como experiências vividas, expressão da totalidade e unidade, onde existe uma intencionalidade (fenomenológica) – casa da alegria do Ser. Neste contexto, há (por continuidade) um elogio à Educação Física que enfatiza a autonomia, a identidade, a convivência, a criatividade e a comunicação (Kunz,1996; Kant,1998). A possibilidade de experimentar, de conhecer, de expressar as subjetividades evidenciadas no modo de Ser-no-mundo, interagindo positivamente.

 

    Um corpo e um movimento na Educação Física (em particular na infância), onde o lúdico, a liberdade, a descoberta, a presença, o rosto, o diálogo, o sentido, o significado, a hospitalidade sejam caminhos de relação, de valor e de conhecimento (Freire, 1992; Chaparro, e Guzmán, 2012). Jogar, compartilhar, perguntar, dar-se conta, reagir, acolher, acariciar, abraçar, experienciar o vivido, etc. como elementos (manifestações) intrínsecas a um corpo (mente/espírito) e a um movimento do Ser enquanto Ser (humano). (Gamboa et al., 2013; 2018)

 

    Este desejo (como referido) resulta da constatação de que a Educação Física se situa em grande medida no primeiro paradigma – paradigma da ideologia de mercado – timbrado com o selo tecnocrático, funcional e instrumental da corporeidade e da motricidade. Este fato tem levado a uma práxis reducionista, dualista e fragmentado do ato pedagógico elevando a metáfora do “homem-máquina” como reprodutor de um comportamento já programado. Esse sentido, deverá ser mitigado, sob pena da Educação Física não cumprir a sua missão – a construção do homem na sua totalidade.

 

A ética protestante como metáfora da liberdade com responsabilidade 

 

    Perante o exposto, e o defendido anteriormente, esse ensaio toma a liberdade de fazer um exercício de abstração teórica/metafórica: a ideia de liberdade com responsabilidade que tem na “ética protestante” um dos seus fundamentos.

Assim, no sentido dos acontecimentos históricos, Silva (2011) constata que a Reforma Protestante contribuiu para novas concepções e novas práticas ao apelar à consciência de cada um:

  • A ética protestante rejeita a autoridade dogmática e fechada. A máxima protestante, pelo contrário vai dizer: cada um escolhe o seu caminho, com responsabilidade, liberdade, trabalho e rigor. Cada um pensa a sua obra e faz (ação) a sua obra.

  • A ética protestante diz que a autoridade está expressa nas Escrituras Sagradas e a salvação dá-se unicamente pela fé, e pela ação prática, rejeitando a tradição na qual a salvação pressupunha o cumprimento de regras fixas, o medo (o inferno), a culpa, o castigo, a coerção.

  • A ética protestante diz que a fé individual e a graça dizem a ideia de um novo homem – o Homem/Eu Singular – atuante (homem de ação), produtivo, independente, livre, autônomo, reforçando a ideia de uma identidade individual (o Eu individual) e só depois social - o Eu Social.

  • A ética protestante, ao fazer o elogio a uma identidade individual, acaba por ser o núcleo do pensamento humanista do Séculos XVIII e XIX da lógica e a base para o pensamento liberal e democrático. Por outro lado, a noção de individuo produtivo enfatiza o homem como ser de trabalho. O trabalho é um sinal de graça, de libertação, uma forma de honrar Deus. Este fato corta, por exemplo, com a noção helênica do trabalho, que o considerava alienador da liberdade – o que hoje também é evidente na crítica ao capitalismo, como fonte de exploração do homem e do trabalho.

    Perante o exposto, não se pretende ser uns Lutero(s) ou Calvino(s) (linha mais dura) da Educação Física/Desportiva, mas, (por analogia) e pegando na máxima “é à consciência e à ação de cada um”, enfatizar o seguinte:

  1. A Educação Física/ Desportiva deve apelar não (não apenas) à autoridade do Estado, da Escola e do Currículo. O currículo não é uma escritura sagrada com leituras (práxis) dogmáticas. O mesmo acontece com a autoridade da indústria cultural, a autoridade do clube, a autoridade da associação ou do ginásio.

  2. A Educação Física/Desportiva deverá mitigar o paradigma da ideologia de mercado – timbrado com o selo tecnocrático, funcional e instrumental da corporeidade e da motricidade. Pois, esta realidade, leva a uma práxis reducionista, dualista e fragmentado do ato pedagógico, elevando a metáfora do “homem-máquina” como reprodutor de um comportamento já programado.

  3. A autoridade da escola e do currículo, legitimadas pela função de democratização (igualdade de acesso/sucesso), oferece matérias nucleares (estas próximas da tradição) e matérias alternativas (estas próximas da consciência de cada um), mas, na prática, só alguns se salvam - aqueles que estão mais próximos das matérias nucleares, onde o aluno parece ser pertença dessas matérias - desportivistas.

  4. Quando esse ensaio coloca – é à consciência e à ação de cada um - está a ser mais protestante, está a se referirão homem singular, atuante, produtivo, independente, autônomo - próximo da tradição, da Psicomotricidade, da Aprendizagem Motora, das Habilidades Motoras, e até da perspectiva do Voluntariado dos países como a Dinamarca, Suécia e Noruega. Está a fazer o elogio ao sentido ecológico do homem e do Deus natureza (lógica helênica e Espinosiana) e à Educação Desportiva como encontrada nos países como Inglaterra, Escócia, Irlanda.

Conclusões em aberto 

 

    Perante o exposto e para que isso seja possível – é à consciência e à ação de cada um - é preciso, em primeiro lugar, um forte investimento na formação de base e na estruturação de currículos condizentes – no livre brincar e no se-movimentar. A formação de base, neste sentido, trata-se do investimento na Educação Física e Educação Desportiva no pré-escolar e no primeiro ciclo. É aqui, pegando nos empréstimos de Paulo Freire (Freire, 1999) que se faz a verdadeira consciencialização (corporal) ela passagem de uma eventual “opressão” motora para uma “libertação” motora. Por outro lado, é preciso investir na formação de professores para estes ciclos.

 

    É à consciência e à ação de cada um, que estrutura a máxima protestante, que se encontram (logo nos anos iniciais) os caminhos da imaginação, das subjetividades, do sujeito, das práticas de significação. A este propósito, o professor Agostinho da Silva - nas conversas com Mendanha (2002) - afirmou que a imaginação (no seu sentido racional) está para além da filosofia (ortodoxa) e da ciência.

    A filosofia tem um perigo terrível, que é o de cada homem, por esse pensamento filosófico, acabar de construir uma verdade e achar que é o senhor da verdade e, portanto, ter quase á mão uma inquisição pronta a agir. Quanto à ciência é a mesma coisa. Quanto à ciência, também o perigo de pensarmos que o universo é inteiramente matemático, que tudo está dentro de uma determinação de lógica matemática quando, hoje, a própria Física Quântica está a chegar a ponto de ter de concordar que a vida tem mais de imaginação do que matemática. Foram bons instrumentos (Filosofia e a Ciência) para subirmos, como são os degraus da escada e o corrimão, mas talvez não um patamar em que fiquemos, nem num terraço para contemplarmos o verdadeiro céu.” (p. 83-84).

    É à consciência e à ação de cada um, que novos paradigmas de Educação Física escolar podem emergir superando e trazendo novas formas de entender o corpo e o movimento. Um corpo e um movimento não só inscrito num paradigma tradicional, com todos os constrangimentos a ele associado- da produção, da eficácia e do mercado, da ideologia – mas, e sobretudo, paradigmas onde a expressão corporal encimem sentidos de liberdade, de criação (de cada um, ao seu modo) sem esquecer um bem maior - o bem comum – o social, o histórico e o cultural.

 

    Esta “à consciência e à ação de cada um” vai, por fim, possuir graus de universalidade, quase como um imperativo categórico “à maneira Kantiana” de uma Educação Física Universal (uma máxima universal) e a sua capacidade de elevar a transformação individual e social mais humanizada.

 

    É à consciência, à racionalidade, à responsabilidade e à imaginação de cada um!

 

Referências 

 

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