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ISSN 1514-3465

 

Educação Física e o mundo do trabalho no âmbito das adequações produtivas do capital

Physical Education and the World of Work within the Scope of Productive Adjustments of Capital

Educación Física y el mundo del trabajo en el ámbito de los ajustes productivos del capital

 

Gislei José Scapin*

gjscapin@gmail.com

Maristela da Silva Souza**

maristeladasilvasouza@yahoo.com.br

 

*Licenciado e Mestre em Educação Física

Especialista em Educação Física Escolar

Doutorando em Educação e Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa

sobre Trabalho, Educação e Políticas Educacionais - KAIRÓS (UFSM)

Professor de Educação Física (SMEC Panambi/RS)

**Doutora em Ciência do Movimento Humano (UFSM)

Professora Titular do Departamento de Desportos Individuais

do Centro de Educação Física e Desportos (CEFD/UFSM)

(Brasil)

 

Recepção: 14/08/2021 - Aceitação: 01/02/2022

1ª Revisão: 16/11/2021 - 2ª Revisão: 17/01/2022

 

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Citação sugerida: Scapin, G.J., e Souza, M. da S. (2022). Educação Física e o mundo do trabalho no âmbito das adequações produtivas do capital. Lecturas: Educación Física y Deportes, 27(287), 2-15. https://doi.org/10.46642/efd.v27i287.3164

 

Resumo

    Objetiva-se compreender a função que o Conhecimento em Educação Física assumiu no movimento histórico de (re)produção do capital a partir das mudanças no Mundo do Trabalho. Foi realizada uma investigação bibliográfica, de base Marxista. Teoricamente: apresenta-se a organização da Escola Capitalista; e situa-se o lugar do Conhecimento em Educação Física, compreendendo sua função pedagógica no processo de formação básica dos educandos para dar continuidade à (re)produção do capital. Se compreende, enfim, que a função do Conhecimento (escolarizado) em Educação Física esteve atrelada ao projeto histórico de sociedade burguesa, na qual demandou demasiado cuidado com a educação dos corpos.

    Unitermos: Mundo do trabalho. Conhecimento. Educação Física. Capital.

 

Abstract

    The objective is to understand the role that Knowledge in Physical Education has assumed in the historical movement of (re) production of capital based on changes in the World of Work. A bibliographical research was carried out, based on Marxism. Theoretically: the organization of the Capitalist School is presented; and the place of Knowledge in Physical Education is located, understanding its pedagogical function in the process of basic education of students to continue the (re) production of capital. It is understood, finally, that the role of Knowledge (schooled) in Physical Education was linked to the historical project of bourgeois society, in which it demanded too much care with the education of bodies.

    Keywords: World of work. Knowledge. Physical Education. Capital.

 

Resumen

    El objetivo es comprender el papel que asumió el Conocimiento en Educación Física en el movimiento histórico de (re)producción del capital a partir de los cambios en el Mundo del Trabajo. Se realizó una investigación bibliográfica, con base marxista. Teóricamente: se presenta la organización de la Escuela Capitalista; y se ubica el lugar del Conocimiento en la Educación Física, comprendiendo su función pedagógica en el proceso de formación básica de los estudiantes para continuar la (re)producción del capital. Se entiende, finalmente, que la función del Conocimiento (escolarizado) en Educación Física estuvo ligado al proyecto histórico de la sociedad burguesa, que demandaba demasiado cuidado con la educación de los cuerpos.

    Palabras clave: Mundo del trabajo. Conocimiento. Educación Física. Capital.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 27, Núm. 287, Abr. (2022)


 

Introdução 

 

    O presente artigo1 possui como plano de fundo as transformações do Mundo do Trabalho, traçando um diálogo entre escola pública, em sua forma capitalista, e a função do Conhecimento (escolarizado) em Educação Física, pautando algumas discussões e análises no que tange ao processo de Formação Básica dos sujeitos que constituem um modelo de sociedade, a saber, a sociedade capitalista, assim como a área da Educação Física busca produzir sua existência no quadro escolar diante das transformações do mundo produtivo. (Souza, e Ramos, 2017; Souza, Ribas, e Calheiros, 2015)

 

    De antemão, é mister refletir sobre a instituição escolar, sobretudo a escola pública. De acordo com Saviani (2013) ao justificar a existência da escola como local (tempo/espaço) para tornar público os instrumentos e o saber historicamente elaborado e preservado pela humanidade, dispondo de uma sistematização e organização curricular que proporcione às novas gerações o acesso a tal acervo da cultura.

 

    O autor deixa evidente a especificidade do conhecimento que é tratado no ambiente escolar. Trata-se de um saber sistematizado, ou seja, não é qualquer saber ou saberes de opinião e/ou do campo empírico sincrético. Para Saviani (2013, p. 14) é justamente “[...] a exigência da apropriação do conhecimento sistematizado por parte das novas gerações que torna necessária a existência da escola [...]”.

 

    Pelo fato de manusear um conhecimento sistematizado/organizado, produzido exterior a ela, buscando socializá-los e objetivá-los de modo a propiciar aos educandos o acesso à produção socio-cultural humana, a escola torna-se um lócus “privilegiado”. Ao ter acesso ao lócus privilegiado da educação, com o saber elaborado e a cultura erudita, é usual associá-lo (o acesso) a uma alavanca para uma vida futura, ou seja, frequentar a escola seria sinônimo de boa formação, equalização social e deter melhores condições de existência. Esse pensamento também percorreu o movimento das teorias pedagógicas da educação no Brasil, na qual era atributo da escola sanar/atenuar os problemas de marginalidade, corrigir as distorções sociais (Saviani, 2012) e, ademais, encaminhar os sujeitos para uma ação profissional, considerando a relação educação-trabalho-sociedade.

 

    Contudo, na prática, a teoria da escola pública de qualidade, não se sustenta. É, nesse sentido, necessário entender o contexto atual da escola pública em uma sociedade capitalista2, não a tratando como um simples local de transmissão de conhecimento, mas como um lócus que se constitui por uma complexidade de fenômenos que seguem interesses econômicos e políticos que se apresentam de modo implícito e “naturalizado” na prática pedagógica. Como apresenta Frigotto (2010a), a escola não é anacrônica, pelo contrário: ela acompanha as modificações e transformações de seu tempo e da sociedade, nos moldes que é exigido.

 

    Nos argumentos de Venancio, e Darido (2012, p. 97), a escola é um local de disputas ideológicas, responsável pela formação de uma sociedade desigual, sendo apresentada como um local “[...] complexo e contraditório, permeado por questões que remetem à reprodução das desigualdades e conhecimentos baseados em princípios e interesses burgueses”.

 

    Partindo dessas premissas, objetiva-se compreender a função que o Conhecimento em Educação Física assumiu no movimento histórico de (re)produção do capital na sociedade brasileira a partir das mudanças no Mundo do Trabalho. De maneira específica, o objetivo é apresentar a função e conjuntura da escola publica brasileira no movimento histórico, situando o lugar da Educação Física nessa conjuntura e compreendendo sua função do trato pedagógico do conhecimento da Cultura Corporal no processo de formação básica dos sujeitos.

 

Método 

 

    Para atender os objetivos propostos, traça-se um caminho metodológico que seguiu uma investigação teórica, de base descritiva e bibliográfica em referenciais específicos (Quadro 1) que apresentam os pressupostos teóricos, históricos e pedagógicos, políticos, sociais e econômicos que constituíram a totalidade da sociedade capitalista, no âmbito concreto-real como sendo a síntese de múltiplas determinações e, ademais, que tratam sobre o movimento histórico de transformação/adequação da sociedade, da educação e da escola pública a esse modo de produção material da existência humana, assim como o trato com o Conhecimento, em especial em Educação Física, na formação básica dos sujeitos que reproduzem as bases materiais dessa sociedade.

 

Quadro 1. Identificação da bibliografia utilizada para pesquisa

Categorias

Autores

Obras/Bibliografia

Escola Pública Capitalista & Formação Básica

Dermeval Saviani

- Escola e Democracia (2012).

- História das Ideias Pedagógicas no Brasil (2013b).

Gaudêncio Frigotto

- A Produtividade da Escola Improdutiva (2010).

- Educação e Crise do Capitalismo Real (2010b).

Educação Física Escolar & Formação Básica

Carmem Lúcia Soares

- Educação Física: raízes europeias e Brasil (2012).

Lino Castellani Filho

- Educação Física no Brasil: a história que não se conta (2008).

Fonte: Autores

 

    A investigação segue a Filosofia Marxista – Materialismo Histórico –, pois para o processo de produção de conhecimento nessa perspectiva considera-se a historicidade dos processos sociais e dos conceitos, bem como as condições socioeconômicas de produção e as contradições sociais que emergem das práticas sociais (Gomes, e Minayo, 2007). Através da filosofia marxista, a sociedade capitalista é analisada a partir das bases materiais de produção da existência humana em sociedade, situando nessa conjuntura o trato e a função do Conhecimento em Educação Física. Para isso, são utilizadas as seguintes categorias: totalidade, como sendo um conjunto de determinações econômicas, sociais e jurídicas que se relacionam; mediação, que abrange a interação das dimensões citadas anteriormente, sempre mediada por uma terceira dimensão; contradição, relações antagônicas que se estabelecem no interior dos fenômenos. (Castanho, 2010)

 

    Por fim, seguiu-se o método Dialético de análise e investigação. Para Gil (2008, p. 13), este método apresenta “[...] as bases para uma interpretação dinâmica e totalizante da realidade, já que estabelece que os fatos sociais não possam ser entendidos quando considerados isoladamente, abstraídos de suas influências políticas, econômicas, culturais, etc.”. À título de análise descritiva, elenca-se as seguintes categorias: Escola Capitalista; Educação Física Escolar; Formação Básica.

 

Resultados e discussões 

 

    Escola Capitalista: as bases Neoprodutivistas da Educação Brasileira 

 

    Para situar a conjuntura e a função da Escola Capitalista no Brasil, o ponto de partida foram as reformas político-econômicas em âmbito internacional que pautaram as novas bases para se pensar a educação. A partir da metade do século XX erigiu-se a preocupação com os novos caminhos da produção material da existência social que andava a passos largos para uma nova característica pautada pelos avanços da tecnologia e informática (Saviani, 2013b). Ademais, com o processo de desenvolvimento e eliminação das desigualdades via investimento em educação, buscando a concretização de uma guinada e reestruturação econômica. (Frigotto, 2010b)

 

    Nesse sentido, entra em ação a teoria do capital humano, que teve sua gênese a partir dos anos 1950, nos Estados Unidos, no grupo de estudos sobre ‘desenvolvimento’ (das sociedades) coordenado por Theodore Schultz. Nos estudos do grupo, o objetivo era descobrir e explicitar as variações no desenvolvimento e subdesenvolvimento entre os países na tentativa de realizar um processo de equalização social e instaurar um ‘milagre econômico’. Para isso, a ideia central era um acréscimo na instrução e educação para, desse modo, gerar um acréscimo na produção, ou seja,

    [...] a ideia de capital humano é uma “quantidade” ou um grau de educação e de qualificação, tomado como indicativo de um determinado volume de conhecimentos, habilidades e atitudes adquiridas, que funcionam como potencializadoras da capacidade de trabalho e de produção. Desta suposição deriva-se que o investimento em capital humano é um dos mais rentáveis, tanto no plano geral de desenvolvimento das nações, quanto no plano da mobilidade individual. (Frigotto, 2010b, p. 44)

    A manifestação dessa teoria, principalmente nos países da América-Latina e terceiro mundo, deu-se por meio dos diferentes documentos dos grandes centros internacionais e nacionais que pensavam e reproduziam ideologicamente os interesses do grande capital. No Brasil, essa teoria inicia sua trajetória nos anos 1960 e 1970, período em que a educação se transferiu de uma esfera de prática social que desenvolvia conhecimentos, habilidades e valores – que estavam articulados com as necessidades das classes – para um reducionismo de caráter economicista e fator de produção, ou seja, a educação passou a possuir uma tarefa técnica de preparar recursos humanos para o processo de produção. Nesta lógica, a educação passou a ser pensada, sistematizada e integrada no/pelo viés econômico com foco no desenvolvimento e na capacidade produtora de trabalho. (Frigotto, 2010b)

 

    Para Dermeval Saviani (2013b), os motivos que levaram a uma reestruturação socioeconômica e pensar novas formas de organização e produção capitalista foi a partir da crise de 1970, levando a uma reconfiguração das bases técnicas de produção, conduzindo a substituição do fordismo pelo toyotismo, ou seja, desprendendo do modo de produção que seguia uma tecnologia pesada de base fixa e de produção em larga escala, com acumulo e padronização de produtos, para uma forma de produção que seguiu uma tecnologia leve, com base em uma microeletrônica flexível, produtora em pequena escala e diversificada.

 

    Ao pensar na relação educação-trabalho, no âmbito do Mundo do Trabalho e a Formação Básica, as características do modo toyotista de produção exigiu um novo perfil de trabalhador, o que demandou uma reconfiguração da escola e do trato pedagógico. Entende-se, a partir de Saviani (2013b), que as novas demandas do mercado foram reiterando a importância da Escola Capitalista, forjando uma escolarização nos moldes da ‘flexibilização’ e da ‘polivalência’ com domínio nas formas gerais e abstratas de conceitos, contribuindo para um processo econômico-produtivo característico da teoria do capital humano. O autor menciona a relação da teoria com a educação do seguinte modo:

    [...] a versão originária da teoria do capital humano entendia a educação como tendo por função preparar as pessoas para atuar num mercado em expansão que exigia força de trabalho educada. À escola cabia formar a mão de obra que progressivamente seria incorporada pelo mercado, tendo em vista assegurar a competividade das empresas e o incremento da riqueza social e da renda individual. (Saviani, 2013b, p. 429)

    Porém, a partir da elaboração dessa teoria (capital humano), que pautaria a educação pelo viés econômico, servindo para aumentar a produção capitalista no interior de seu modo de produção, acabou por transformar a educação e a força de trabalho em “capital”. Com isso, a formação dessa força de trabalho passou a ser empreendida na forma pragmática e utilitarista, seguindo o caminho da razão instrumental. (Antunes, e Pinto, 2017)

 

    Os autores concluem que as novas roupagens da educação do capital humano carregaram consigo, “[...] uma escola (e uma “educação”) flexibilizada para atender as exigências e aos imperativos empresariais; uma formação volátil, superficial e adestrada para suprir as necessidades do mercado de trabalho ‘polivalente’, ‘multifuncional’ e flexível”. (Antunes, e Pinto, 2017, p. 104)

 

    A partir dos anos 1990, no governo de Fernando Henrique Cardoso, representando uma bandeira de centro-direita e visando construir/efetivar um projeto hegemônico de longo prazo, subordinado às ordens da mundialização do capital, iniciou-se uma reforma na estrutura do Estado Brasileiro para deixar o país mais suscetível às ordens do mercado, pautada pela doutrina dos mecanismos internacionais, em especial pelo ‘Consenso de Washington’. (Frigotto, 2005)

 

    O ‘Consenso de Washington’ designou uma série de reformas para os países da América Latina que implicava:

    [...] em primeiro lugar, um programa de rigoroso equilíbrio fiscal a ser conseguido por meio de reformas administrativas, trabalhista e previdenciárias tendo como vetor um corte profundo nos gastos públicos. Em segundo lugar, impunha-se uma rígida política monetária visando à estabilização. Em terceiro lugar, a desregulação dos mercados tanto financeiro como do trabalho, privatização radical e abertura comercial. Essas políticas que inicialmente tiveram de ser, de algum modo, impostas pelas agências internacionais de financiamento mediante as chamadas condicionalidades, em seguida perdem o caráter de imposição, pois são assumidas pelas próprias elites econômicas e políticas dos países latino-americanos. (Saviani, 2013b, p. 428)

    Com a propensão de minimizar a iniciativa do Estado e com a intenção de dar mais mobilidade ao mercado - aspecto característico do modelo neoliberal - a lógica econômica que estava centrada no coletivo passou a dar ênfase ao privado, ao particular e ao sujeito. Isso, consequentemente, interferiu no processo educativo dos futuros trabalhadores. O Estado e os serviços sociais deslocam-se para segundo plano no processo de formação básica/escolarização e o indivíduo passa a assumir as responsabilidades na busca pelo conhecimento indispensável à sua qualificação para o mercado de trabalho. (Saviani, 2013b)

 

    Essa nova organização sócio-econômica, centrada no sujeito, apresenta um mercado de trabalho instável e flexível, na qual segue os pressupostos da lógica toyotista de produção e que, desta vez, impõe ao sujeito autônomo - empresário de si mesmo – uma busca por conhecimentos e formação que possibilitem estar preparado para ingressar na máquina produtiva. Entretanto, o mercado de trabalho apresenta uma esfera de emprego vulnerável e suscetível a drásticas mudanças, portanto o trabalhador deverá estar preparado para assumir novos postos e novas tarefas/atividades de labor. Desse modo, a Escola Capitalista – por meio dos parâmetros e diretrizes curriculares – acabou sendo condicionada a assumir duas novas propostas pedagógicas com intenção de preparar o novo trabalhador, que por sua vez servirá ao capital na concepção produtivista e empresarial (Frigotto, 2005), a saber: pedagogias do “aprender a aprender” e pedagogia das competências.

 

    Ao evidenciar as novas demandas e organização das relações de trabalho traçadas pela flexibilidade, instabilidade/incerteza e centralização no sujeito, houve a necessidade de pensar uma educação que construísse um indivíduo que tivesse a capacidade de estar sempre se atualizando e possuindo liberdade, autonomia e iniciativa, forjado por uma escola flexível (Laval, 2004). O autor detectou que a pretensão dos empregadores é trabalhadores/assalariados que detenham a capacidade de estarem “aptos a se formar” (Laval, 2004, p. 16). Deste modo, a escola deveria contribuir tanto para o desenvolvimento do aluno/trabalhador quanto para a empresa:

    Para produzir esses assalariados adaptáveis, a escola em si, a reboque do mercado de trabalho, deveria ser uma organização flexível, em permanente inovação, respondendo tanto os desejos muito diferenciados e variáveis das empresas quanto as necessidades diversas dos indivíduos. [...] Não se trata apenas de aumentar os níveis de competência dos assalariados, é necessário, ainda, que toda a educação recebida tenda a levar melhor em conta o ‘destinatário do serviço’, a saber, a empresa. Em uma sociedade de mais em mais marcada pela instabilidade das oposições, sejam elas profissionais, sociais ou familiares, o sistema educativo deveria preparar para situações de ‘incerteza’ crescente. (Laval, 2004, p. 16)

    As incertezas mencionadas se referem às mudanças na sociedade e no Mundo do Trabalho, sempre em grande dinâmica e instabilidade. Essas novas situações levam a estabelecer um “aprender a aprender” que se manifesta na forma de “[...] aprender a estudar, a buscar conhecimentos [...]” (Saviani, 2013b, p. 431). O “aprender a aprender” da versão neoescolanovista, “[...] liga-se à necessidade de constante atualização exigida pela necessidade de ampliar a esfera da empregabilidade [...]” (Saviani, 2013b, p. 432), ou seja, a escola deveria capacitar o aluno para aprender a vida toda, mas não seria um processo de aprendizagem com caráter de atualização de conhecimentos específicos que estariam ultrapassados levando em consideração a provisoriedade do conhecimento. Contrariamente, seria um aprendizado de algo novo a cada instante de mudança e instabilidade social/produtiva/econômica, sempre na tentativa de estar preparado para pleitear as mais variadas e imprevisíveis formas de emprego.

 

    Na direção do mercado flexível, em decorrência das pedagogias do “aprender a aprender”, emerge a “pedagogia das competências” com ligação direta ao mercado de trabalho e aos atributos indispensáveis para a funcionalidade da empresa. Saviani (2013b) entende que a “pedagogia das competências” é outra face das pedagogias do “aprender a aprender”, tendo como tarefa “[...] dotar os indivíduos comportamentos flexíveis que lhes permitam ajustar-se às condições de uma sociedade em que as próprias necessidades de sobrevivência não estão garantidas.” (p. 437)

Gilberto Souza explica que competência não é sinônimo de conhecimento, esse torna-se apenas um instrumento para aquisição da primeira. Assim expressa o autor:

    Se a ciência – o saber do aprender a aprender – não é mais o centro da atividade escolar, devendo os programas – leia-se os conteúdos – serem reduzidos; a escola deve formar ou desenvolver no aluno as competências, sendo o conhecimento apenas um instrumento para tal fim. (Souza, 2017, p. 79)

    Seguindo nas palavras do autor, “[...] a escola deve formar por competências, não para conhecimentos; formar para competências implica formar por competências, uma vez que competência não é conhecimento – sic!” (Souza, 2017, p. 80). Como consequência, há um esvaziamento de conhecimento que poderia ser o horizonte da transformação e superação da realidade social, mas possui a finalidade de servir para formação de sujeitos “[...] dóceis e conformados com sua condição, sempre dispostos a aprender a aceitar novas maneiras e métodos de exploração de seu próprio trabalho pelos detentores do capital.” (Souza, 2017, p. 81). Por fim, define o autor, “[...] a escola tornou-se o lugar privilegiado para formação do exército industrial de reserva, deixando de ser o lugar para socialização do conhecimento e da cultura universais” (Souza, 2017, p. 81). Como a Educação Física está/esteve situada nesse bojo? Qual sua intencionalidade pedagógica no âmbito da formação da força de trabalho do capital?

 

O Conhecimento em Educação Física na Escola Capitalista e a (re)produção do Capital 

 

    Vejamos, a partir do movimento histórico, como o Conhecimento em Educação Física foi sendo tratado no contexto escolar – pela lógica biologicista e no viés da aptidão física – para produzir e forjar o perfil de sujeito/trabalhador adequado ao modelo de sociedade competitiva e indispensável à máquina produtiva do capital.

 

    Carmem Lucia Soares (2012) realiza uma ampla sistematização do movimento de elaboração da Educação Física no Brasil. Tendo como ponto de partida uma vertente teórico-epistemológica da Educação Física proveniente de outros países (Europa), a autora, na obra Educação Física: raízes europeias e Brasil, demarca o caminho dos pressupostos da área advindos do cenário europeu guiados pelo ideal burguês do século XVIII e que se inseriram nas escolas brasileiras no século XIX. A autora elucida as influências da corrente filosófica positivista no modo de pensar e executar a Educação Física e como essa perspectiva foi fundamental para forjar nos educandos os elementos indispensáveis para o bom funcionamento da sociedade dita capitalista.

 

    Castellani Filho (2008), por sua vez, com a obra Educação Física no Brasil: a história que não se conta, contextualiza o cenário social e educacional da história da Educação Física que esteve escondida nos panos de fundo do palco brasileiro. O autor se preocupou em reinterpretar a Educação Física brasileira como forma de dar um tom de criticidade para a área e denunciar que ela nem sempre esteve sendo utilizada como um instrumento para conquistar as melhores condições de existência e democracia social, política e econômica, mas, por outro lado, esteve servindo para concretização de projetos ideológicos e de manipulação para dar sequência nos rumos da impotência e alienação dos sujeitos sociais, impossibilitando, pois, as verdadeiras transformações sociais.

 

    A preocupação burguesa com a formação de uma força produtiva que viesse a ampliar seu excedente na produção de mais valia emerge no século XIX – na Europa, em especial na França – com a efervescência da industrialização que estava exigindo um trabalhador que desempenhasse o melhor de sua capacidade física. Nesse sentido, passou-se a buscar formas de elaborar conceitos básicos sobre o corpo e sua utilização. (Soares, 2012)

 

    É nesse cenário que a Educação Física moderna inicia sua trajetória histórica pautada pelos interesses burgueses e preocupada com a saúde da classe trabalhadora. Essa demanda projetou, portanto, um caminho e os pressupostos para formar um ‘homem novo’ que contribuísse para o curso da hegemonia dos donos dos meios de produção. Sobre isso, Soares (2012, p. 3) argumenta que:

    Para manter a sua hegemonia, a burguesia necessita, então, investir na construção de um homem novo, um homem que possa suportar a nova ordem política, econômica e social, um novo modo de reproduzir a vida sob novas bases. A construção deste homem novo, portanto, será integral, ela “cuidará” igualmente dos aspectos mentais, intelectuais, culturais e físicos.

    A autora, nesse contexto, explica como foi o comportamento imposto e assumido pela Educação Física na construção do “homem novo” e quais suas finalidades para corroborar com este ideal de homem necessário à sociedade do capital:

    É nessa perspectiva que se pode entender a Educação Física como a disciplina necessária a ser viabilizada em todas as instâncias, de todas as formas, em todos os espaços onde poderia ser efetivada a construção desse homem novo: no campo, na fábrica, na família, na escola. A Educação Física será a própria expressão física da sociedade do capital. Ela encarna e expressa os gestos automatizados, disciplinados, e se faz protagonista de um corpo “saudável”; torna-se receita e remédio para curar os homens de sua letargia, indolência, preguiça, imoralidade, e, desse modo, passa a integrar o discurso médico, pedagógico...familiar. (Soares, 2012, p. 3)

    Nesse panorama social e ideológico, a Educação Física passou a ser pensada – majoritariamente pelo viés biológico e positivista – para promover a saúde do homem novo, o novo trabalhador, que desempenharia uma função fundamental no manuseio das ferramentas produtivas. Deste modo, fomentando, a partir da execução de sua força de trabalho, a consolidação do modo de produção capitalista. Vale ressaltar que esse quadro ampliou as discussões acerca da saúde pública e coletiva no Brasil, sobretudo nas formas de compreender as contribuições da área da Educação Física para melhoria da saúde do trabalhador. (Carvalho, Prado, e Alonso, 2013)

 

    Esse homem novo, recebendo uma atenção voltada para sua saúde física e laboral, desempenharia uma função de reproduzir a ordem estabelecida pela revolução burguesa seguindo os rumos da nova sociedade, a saber, a sociedade do livre mercado e da livre compra de força de trabalho, por ora recebendo os cuidados básicos para seu desempenho e eficiência. Em síntese, à Educação Física, por conseguinte, reservou-se a tarefa, a intencionalidade pedagógica, de educação dos corpos.

 

    No Brasil, conforme estudos de Carmem Lucia, a Educação Física chegará ligada aos ideais e pressupostos da eugenia preocupados com a regeneração e embranquecimento da raça, fazendo parte dos discursos médicos, pedagógicos e parlamentares (Soares, 2012). Esse pensamento higienista, que exerceu grande influência no modo de agir do povo brasileiro, recebeu apoio da vertente militarista, ou seja, o pensamento médico-higienista e o pensamento militarista – pautados pela concepção de Educação Física europeia – estiveram a frente de nossa educação corporal3, educação do corpo.

 

    A Educação Física se insere na Escola Capitalista na forma de ginástica4. As escolas de ginástica eram oriundas dos seguintes países: Alemanha, Suécia, França e Inglaterra. Cada escola de ginástica possuía sua especificidade, todas com a intenção de desempenhar funções importantes na sociedade industrial. Apesar de serem de países distintos, suas finalidades se convergiam: “regenerar a raça”; “promover a saúde”; “desenvolver a vontade, a coragem, a força, a energia de viver” e “desenvolver a moral”. (Soares, 2012, p. 43)

 

    Na intenção de proporcionar uma compreensão mais detalhada e objetiva, as escolas de ginásticas desenvolveram métodos ginásticos específicos. Os métodos se constituíram – devido influência das bases biologicistas e positivistas da ciência – a partir do conhecimento de anatomia, fisiologia e biologia, adquirindo características específicas de cada escola/país e de suas particularidades. Com o processo de sistematização dos métodos ginásticos foi possível garantir o seu acesso e desenvolvimento nos ambientes escolares, militares, civis e entre outros, e ganhando, por fim, o caráter de cientificidade. (Souza, 2009; Russi, 2014)

 

    Outro elemento da Cultura Corporal que passou a se manifestar na Educação Física Escolar na intenção de contribuir na formação da força de trabalho do capital foi o esporte (atividades físico-desportivas). O esporte, vertente da escola inglesa, toma posição de protagonista na produção da “nova mentalidade da classe trabalhadora”, pois:

    A contribuição das atividades físico-esportivas para a consecução dos objetivos enunciados por Capanema, pode ser observada na forma como o Diretor da Escola Nacional de Educação Física, Major Inácio Rolim, em 1941, se expressou ao proferir palestra denominada “Educação Física nas Classes Trabalhistas”, por ocasião do ciclo de conferência promovido pela associação Brasileira de Educação Física: “... Atividades dessa natureza (exercícios, natação, boxe, ciclismo, remo) (...) constituem oportunidades favoráveis para que o trabalhador possa levar a efeito, íntima comunhão com seus camaradas e íntima ligação com a direção da empresa. O desporto admiravelmente para realizar o supremo princípio da unidade da empresa, no sentido de uma verdadeira comunidade. Graças a esta valiosa cooperação, manifesta-se um conhecimento perfeito dos diversos elementos da mesma associação e as horas de recreação desportiva são de manifestações eloquentes de grande solidariedade”. (Rolim apud Castellani Filho, 2008, p. 97)

    A elite e seus intelectuais visualizaram na Educação Física - desta vez na forma esportiva - uma nova possibilidade de educação dos corpos, um corpo adaptável e flexível para o modelo toyotista de produção. As características do esporte, em especial dos esportes coletivos, agradava aos olhos dos donos do poder ao passo em que sua lógica coletiva de praticar, jogar e atingir os objetivos impostos pelo esporte condicionava também um novo pensamento, projetando, pois, um novo trabalhador. Desta vez, não bastava mais um corpo forte, robusto e saudável (produzido pela ginástica), necessário à indústria rígida e especializada (taylorista-fordista), mas um corpo coletivo, cooperativo, fraterno e que cooperasse para o bom funcionamento do jogo e, a posteriori, da máquina produtiva flexível e adaptável – seguir/acatar as regras do jogo seriam seguir/acatar as regras da nova lógica produtiva do capital. Ademais, as relações entre o esporte escolar e o esporte de rendimento eram estreitadas a fim de proporcionar maior produtividade ao capital por meio da lógica da distribuição e do consumo de materiais esportivos. (Souza, 2009; Russi, 2014)

 

Conclusões 

 

    À título de guisas finais, compreende-se que a função e a intencionalidade pedagógica do Conhecimento (escolarizado) em Educação Física, na formação básica dos educandos, esteve atrelada a um projeto histórico de sociedade pautado por princípios ideológicos burgueses, na qual demandou demasiada atenção no cuidado com o corpo – na educação dos corpos. As características da concepção de sujeito formado pela Educação Física permearam um caráter de corpo/sujeito forte, saudável e fisicamente preparado para enfrentar os mecanizados postos de trabalho, até chegar a um corpo/sujeito flexível e adaptável às novas demandas do capital financeiro, na qual se exigiu um trabalhador preparado para adaptar-se as constantes mudanças e imprevisibilidades do Mundo do Trabalho.

 

    Por fim, as implicações da totalidade social que atuam sobre a Escola Capitalista e no trato pedagógico com a Educação Física estabelecem limites em sua autonomia, pois instauram mediações com as forças de poder e interesse da elite econômica no interior da luta de classes, tais mediações percorrem os limites do próprio processo de produção material da existência da sociedade na ordem/lógica em que se estabelece. Nessa perspectiva, o que atribui sentido para a existência da Escola Pública e para a permanência da Educação Física nos currículos escolares, mesmo de forma secundária, é a sua capacidade de adequação a posteriori o desenvolvimento da sociedade. O que cai sobre os ombros da escola (na forma capitalista) e da Educação Física é a imprescindível tarefa de, mediatamente, produzir o capital humano indispensável para seguir com o movimento de (re)produção do capital. Reverbera, entretanto a necessidade de reivindicar uma Educação Física para outra ordem, isto é, para a formação do ser social de outra forma de sociabilidade. (Oliveira, e Gomes, 2020)

 

Notas 

  1. Este artigo se caracteriza como um recorte de uma pesquisa mais ampla do curso de pós-graduação em Educação Física Escolar do Centro de Educação Física e Desportos da Universidade Federal de Santa Maria.

  2. Por isso adota-se o uso do conceito de “Escola Capitalista”, como fica explicito no decorrer do artigo. Ver sobre o entendimento de Escola Capitalista em Scapin, e Souza (2019).

  3. A Educação Física era entendida desta forma. Educação do corpo para gerar um corpo produtivo. (Soares, 2012)

  4. Reforma Couto Ferraz em 1851 e ampliação com o Parecer de Rui Barbosa em 1882.

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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 27, Núm. 287, Abr. (2022)