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ISSN 1514-3465

 

A roda de conversa como atividade 

formativa no futebol de base da Chapecoense

The Conversation Wheel as a Formative Activity in the Soccer of Chapecoense

La ronda de conversación como actividad formativa en el fútbol base del Chapecoense

 

Marineiva Moro Campos de Oliveira

marineivamoro.oliveira@gmail.com

 

Pós-doutoranda em Educação

pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC)

Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG)

Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) 

Licenciada em pedagogia pelo Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN) 

Acadêmica do Curso de Graduação em Letras-Libras na UNIASSELVI

Especialista em Práticas Pedagógicas Interdisciplinar

com ênfase em Educação Infantil, Série Iniciais e Finais

do Ensino Fundamental e Médio pelo Centro de Ensino Formação (CEF)

Especialista em Gestão de Recursos Humanos

pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC-Chapecó)

Especialista em Psicopedagogia pela Escola Superior Aberta do Brasil (ESAB)

Especialista em Gestão Escolar pela Universidade Federal da Fronteira Sul

Especialista em Tradução, Interpretação e Docência em Libras

pela Universidade de Tuiuti do Paraná

Especialista em Formação de Professores e Tutores

para Atuar no Ensino pela UNOESC/Chapecó

Assistente Técnica Pedagógica no municipal de Xaxim/SC

atuando na Secretaria Municipal de Educação e Cultura

como coordenadora pedagógica do setor de Educação Inclusiva

Pedagoga da ACF Chapecoense, intérprete de Libras e professora na UNOESC

Coordenadora do Núcleo de Acessibilidade e Inclusão (NAI) da UNOESC/Chapecó

(Brasil)

 

Recepção: 09/05/2021 - Aceitação: 21/10/2021

1ª Revisão: 18/07/2021 - 2ª Revisão: 21/10/2021

 

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Citação sugerida: Oliveira, M.M.C. de (2021). A roda de conversa como atividade formativa no futebol de base da Chapecoense. Lecturas: Educación Física y Deportes, 26(283), 2-17. https://doi.org/10.46642/efd.v26i283.3016

 

Resumo

    A linguagem ocupa lugar de destaque na humanização do sujeito por propulsionar aspectos de desenvolvimento humano específicos e constitutivos da consciência. Possibilita o dialogismo que tem como característica principal conceber a unidade do mundo nas múltiplas vozes, as quais participam do diálogo da vida, bem como emprega sentido às diferentes marcas dialógicas que se evidenciam por meio de enunciados. Enunciados que se entrecruzam em rodas de conversa. Com base nessas premissas, esta pesquisa tem o objetivo de discutir os aspectos formativos das práticas pedagógicas com a linguagem verbal, nas rodas de conversa, entre a pedagoga e os atletas das categorias de base da Associação Chapecoense de Futebol (ACF). De caráter qualitativo e cunho etnográfico, a pesquisa foi desenvolvida mediante leitura de bibliografia da área e análise de três rodas de conversa realizadas com os atletas das categorias Sub 15 e Sub 17 da ACF. Com base no diálogo entre estudos sobre a psicologia histórico-cultural, de Vygotski e a perspectiva dialógica da linguagem de Bakhtin, estabeleceram-se reflexões sobre as possibilidades de expressão dos atletas e o modo como as vozes desses sujeitos se situam no processo formativo da roda de conversa, objeto desta pesquisa. Por fim, ressaltou-se o conceito basilar de interação verbal, pelo qual se dão as apropriações culturais e a constitutividade da linguagem, como condições de humanização de elementos fundamentais, na Educação Não Formal, como se nomea o espaço de alojamento dos atletas, espaços estes vinculados à importância de se ouvir o sujeito, para permitir o encontro das vozes dissonantes na roda e considerar a formação integral desses atletas.

    Unitermos: Dialogismo. Roda de conversa. Futebol de base.

 

Abstract

    Language occupies a prominent place in the humanization of the subject, as it promotes specific aspects of human development that are constitutive of consciousness. It enables dialogism whose main characteristic is to conceive the unity of the world in multiple voices, which participate in the dialogue of life, as well as employing meaning to the different dialogical marks that are evidenced through statements. Statements that intersect in circles of conversation. Based on these premises, this research aims to discuss the formative aspects of pedagogical practices with verbal language, in conversation circles, between the pedagogue and athletes from the base categories of Associação Chapecoense de Futebol (ACF). Qualitative and ethnographic in nature, the research was developed by reading the bibliography in the area and analyzing three rounds of conversation held with athletes from the ACF's Sub 15 and Sub 17 categories. Based on the dialogue between studies on cultural-historical psychology, by Vygotski and the dialogic perspective of language by Bakhtin, reflections were established on the possibilities of expression of athletes and the way in which these subjects' voices are situated in the formative process of the conversation circle, object of this research. Finally, the basic concept of verbal interaction was emphasized, by which cultural appropriations and the constitutiveness of language are given, as conditions for the humanization of fundamental elements, in Non-Formal Education, as the athletes' accommodation space is named, spaces these linked to the importance of listening to the subject, to allow the meeting of dissonant voices in the circle and to consider the integral formation of these athletes.

    Keywords: Dialogism. Conversation wheel. Base soccer.

 

Resumen

    El lenguaje ocupa un lugar destacado en la humanización del sujeto, ya que promueve aspectos específicos del desarrollo humano que son constitutivos de la conciencia. Permite un dialogismo cuya característica principal es concebir la unidad del mundo en múltiples voces, que participan en el diálogo de la vida, así como dar sentido a las diferentes marcas dialógicas que se evidencian a través de los enunciados. Enunciados que se entrecruzan en rondas de conversación. Basado en estas premisas, esta investigación tiene como objetivo discutir los aspectos formativos de las prácticas pedagógicas con lenguaje verbal, en rondas de conversación, entre el pedagogo y los jugadores de fútbol base de la Asociación Chapecoense de Futebol (ACF). De carácter cualitativo y etnográfico, la investigación se desarrolló mediante la lectura de la bibliografía del área y el análisis de tres ruedas de conversación mantenidas con deportistas de las categorías Sub 15 y Sub 17 de la ACF. A partir del diálogo entre los estudios sobre psicología histórico-cultural, de Vygotski y la perspectiva dialógica del lenguaje de Bakhtin, se establecieron reflexiones sobre las posibilidades de expresión de los deportistas y la forma en que las voces de estos sujetos se sitúan en el proceso formativo de ruedas de conversación, objeto de esta investigación. Finalmente, se enfatizó el concepto básico de interacción verbal, por el cual se dan las apropiaciones culturales y la constitutividad del lenguaje, como condiciones para la humanización de elementos fundamentales, en la Educación No Formal, como se denomina el espacio de alojamiento de los deportistas, espacios estos vinculados a la importancia de la escucha del sujeto, para permitir el encuentro de voces disonantes en la rueda y considerar la formación integral de estos deportistas.

    Palabras clave: Dialogismo. Ronda de conversación. Fútbol base.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 26, Núm. 283, Dic. (2021)


 

Introdução 

 

    O debate do presente estudo é acerca do trabalho pedagógico realizado no alojamento das categorias de base da Associação Chapecoense de Futebol (ACF). A ACF possui categorias de base Sub 12, Sub 13, Sub 15, Sub 17 e Sub 20. O alojamento é o espaço no qual 70% dos atletas1 das categorias Sub 15, 17 e 20 ficam hospedados, os demais ficam com suas famílias ou em famílias2 acolhedoras. No alojamento, os atletas recebem acompanhamento biopsicossocial – com profissionais da área da saúde–, social e educacional. Nesta pesquisa, debate-se a Educação Não Formal, no trabalho na área educacional.

 

Imagem 1. Escudo da Associação Chapecoense de Futebol

Imagem 1. Escudo da Associação Chapecoense de Futebol

Fonte: Chapecoense.com

 

    Considera-se que a atuação pedagógica, neste contexto, o alojamento, caracteriza-se como uma atuação em espaço de Educação Não Formal. Compreende-se que a Educação Não Formal não tem o caráter sistematizado dos processos escolares. Ela atua com outra lógica nas categorias espaço e tempo, dada pelo fato de não ter um currículo definido a priori, quer quanto aos conteúdos, quer quanto aos temas ou habilidades a serem trabalhadas. (Gohn, 2012)

 

    Aoyama (2008) ressalta que a Educação Não Formal representa uma importante possibilidade de aprendizagem num espaço diferenciado, com uma proposta pedagógica também diferenciada, que envolve atividades não participativas do currículo escolarizado. Na Educação Não Formal, no espaço real em que se dialoga, o currículo é elaborado coletivamente, organizado por tema e materializado nos discursos.

 

    Ainda em conformidade com a autora, os processos dialógicos de aprendizagens elaboradas neste espaço são coletivos, participativos, nos quais a aprendizagem não é gerada em estruturas formais de ensino escolar, mas, sim, no campo da Educação Não Formal. E falar acerca da aprendizagem fora das escolas do sistema regular de ensino implica participar do amplo debate epistemológico sobre a produção de conhecimento no mundo contemporâneo. Esse debate, no campo dos estudos sobre os processos participativos civis, traduz-se frequentemente no reconhecimento dessas ações coletivas como produtoras de conhecimento.

 

    Com o objetivo de discutir os aspectos formativos das práticas pedagógicas, com a linguagem verbal, nas rodas de conversa na categoria de base da ACF,analisaram-se três rodas de conversa realizadas com os atletas das categorias Sub 15 e Sub 17 do futebol de base da ACF. Com base no diálogo entre estudos sobre a psicologia histórico-cultural, de Vygotski (2001) e a perspectiva dialógica da linguagem, de Bakhtin (1926), este trabalho estabelece reflexões sobre as possibilidades de expressão dos atletas e o modo como suas vozes se situam no processo formativo da roda de conversa, objeto desta pesquisa.

 

    O papel da dimensão dialógica, nos momentos das atividades pedagógicas formativas, na categoria de base da Chapecoense, organiza-se na objetividade da formação para cidadania como consequência do processo de elaboração e socialização de conhecimentos interdisciplinares, para além do currículo escolar.Nesse sentido, para atender ao objetivo proposto, este texto está organizado em três seções. Na primeira, conceitua-se a importância dos movimentos dialógicos, e apresenta-se a roda de conversa como instrumento didático para o dialogismo, nos espaços de Educação Não Formal. Evidencia-se que é por meio do dialogismo que se constitui o sujeito dentro da sociedade, sujeito em permanente construção, e que só existe na presença de elementos históricos, sociais e outros, que fazem parte de um contexto complexo interativo (Bakhtin, 1926). O dialogismo tem como característica principal conceber a unidade do mundo nas múltiplas vozes, que participam do diálogo da vida, e empregar sentido às diferentes marcas dialógicas que se evidenciam por meio de enunciados.

 

    Na segunda seção, destaca-se o lugar que a linguagem ocupa na humanização do sujeito, por propulsionar aspectos de desenvolvimento humano específicos e constitutivos da consciência, e pela organização dos processos psíquicos superiores, mediante interações verbais (Bakhtin, 1926). Na terceira, evidencia-se de que forma as rodas de conversa possibilitam aos atletas da base produzirem sentidos que extrapolem a dimensão verbal. Os enunciados que são possibilitados nas rodas também são frutos das experiências que trazem de outros espaços sociais e, portanto, constituem a enunciação e possibilitam um diálogo vivo potencializador da formação para além e/ou complementar do currículo da Educação Formal. (Bakhtin, 1926)

 

    Essas seções organizam este trabalho cujo objetivo é discutir os aspectos formativos das práticas pedagógicas com a linguagem verbal nas rodas de conversa entre a pedagoga e os atletas das categorias de base da Associação Chapecoense de Futebol (ACF).

 

A roda de conversa no espaço de Educação Não Formal 

 

    Compreende-se criança e adolescente, na perspectiva histórico-cultural, como autores das transformações sociais, sujeitos autores de suas palavras, que expressam representações que têm dos espaços sociais, palavras essas adquiridas a partir dos seus espaços de socialização. A palavra não é somente um meio de substituição das coisas, é a célula do pensamento humano (Luria, 1985). E, apesar do ser humano ser um sujeito ativo na objetivação e apropriação dos elementos existentes na realidade concreta, a linguagem é externa (interpsíquica) e, posteriormente, interna (intrapsíquica). Isso significa que a elaboração da linguagem é produto das relações sociais existentes. (Vygotski, 2001)

 

    Na constituição da criança e do adolescente como sujeitos históricos, cabe destacar o papel da linguagem como elemento que caracteriza e marca o ser social e, logo, constitui o sujeito. Por meio da linguagem, ele desenvolve a interpretação da realidade em que está inserido, ao participar das interações sociais, pelas quais se concretiza um processo dialético de transformação da realidade, mas também do sujeito. Como sujeito, autor de sua palavra, expressa representações que tem dos espaços sociais.

 

    Por isso, destaca-se a importância das rodas de conversa no espaço de Educação Não Formal, neste estudo, nas atividades pedagógicas com os atletas da base da ACF, como momento em que os atletas estão em intenso desenvolvimento da apropriação de conhecimentos sobre o mundo, momento privilegiado de práticas desencadeadoras de aprendizagens. A interação, na Educação Não Formal, é um dos eixos articuladores para a construção de uma educação para a humanização.

 

    Desse modo, realizar momentos dialógicos implica assumir práticas, na Educação Não Formal, que considerem os atletas na sua concretude histórica, como sujeitos que se constroem na e pela linguagem. Afirma-se a Educação Não Formal como espaço privilegiado para a inserção de práticas linguageiras, que tenham como objetivo uma formação emancipatória para além e/ou complementar dos conteúdos dos espaços de EF.

 

    As rodas de conversa voltadas à formação humana emancipatória apresentam-se como esse espaço, que busca romper com a visão de sujeito passivo e receptor, pois o sujeito produtor de cultura dialoga sobre o conhecimento e expõe ideias. O profissional que medeia a roda de conversa não age como facilitador, mas atua como participante do diálogo, que considera e valoriza as subjetividades, como papel de transmissão democrático do saber (Bakhtin,1926). Fica, portanto, ao encargo da organização da Educação Não Formal a tarefa de considerar o papel da cultura como fonte das qualidades humanas, de extrapolar a experiência cotidiana dos sujeitos, para inseri-los nas experiências culturais complexas da espécie. Além disso, essas rodas apresentam-se como elemento da rotina da Educação Não Formal, cujo objetivo é trabalhar, de modo indissolúvel, o ensino, o cuidado e a educação, mediante relações dialógicas que promovam a apropriação cultural. (Souza, 2018)

 

    Têm sido compreendidas, no contexto de Educação Não Formal, como um espaço de exercício democrático, que privilegia o estabelecimento de diálogos, debates e troca de ideias. Essa atividade constitui-se como elemento frequente da organização didática e metodológica, como forma de subsidiar um trabalho com a linguagem oral e valorizar a produção dos sujeitos. Trata-se de instrumento regularmente utilizado no cotidiano da Educação Não Formal para o trabalho com os conteúdos extraescolares que permitem ao sujeito expressar sua singularidade. (Bertonceli, 2016)

 

    Portanto, as rodas de conversa constituem-se um mecanismo que possibilita a partilha de experiências e o desenvolvimento de reflexões sobre diversas temáticas, em um processo mediado pela interação com os pares, por meio de diálogos internos e no silêncio observador e reflexivo (Bakhtin, 1926). São um instrumento didático que possibilita explorar os significados criados pelos sujeitos e pelos grupos sociais em relação a um problema social. O sujeito é sempre um narrador em potencial (Tonet, 2005). O fato é que ele não narra sozinho, todavia reproduz vozes, discursos e memórias de outras pessoas, que se associam à sua no processo de rememoração e de socialização, e o discurso narrativo, no caso das rodas de conversa, é uma construção coletiva.

 

A roda de conversa como esfera de trabalho com a linguagem 

 

    A apropriação da linguagem marca o nascimento do ser social (Vygotski, 2001), uma vez que é a partir desse sistema de signos que se realizará mediação com o mundo. A linguagem é responsável pelo desenvolvimento das funções psíquicas de ordem superior, especificamente humanas e necessárias à evolução da espécie. Assim, as funções superiores (abstração, generalização, atenção voluntária, memória lógica, projeção, imaginação, criação) são frutos da atividade social, mas são também resultados de conversões feitas com a participação de funções elementares (herança biológica) e com o conjunto de artefatos semióticos constituídos historicamente nos espaços sociais. (Abasolo, 2015)

 

    Vale destacar que, segundo a perspectiva histórico-cultural, o que promove a aprendizagem e o desenvolvimento é o ensino objetivado. Ou seja, não são todas as atividades, ações e operações realizadas que geram esses processos. Dessa forma, a roda de conversa pode contribuir, no entanto, por si só, não é possível fazer uma relação direta de que essa gere desenvolvimento. Contudo, a diferença que singulariza a roda de conversa é a mediação semiótica nela estabelecida. (Bertonceli, 2016)

 

    Para se compreender a mediação semiótica, antes, é necessário reforçar que a linguagem,como sistema de signos, regula a atividade do homem, e a roda de conversa, na qualidade de esfera de trabalho com a linguagem verbal, consiste em uma atividade mediadora de conhecimento, por conseguinte, conduz à humanização dos sujeitos que participam da roda. (Machado et al., 2020)

 

    Para tanto, cabe elucidar o conceito de mediação semiótica, a fim de que se compreenda o papel da palavra na constituição da consciência. Vygotski (2001), profundo pesquisador da linguagem e fundador dos pressupostos histórico-culturais, fundamenta-se na filosofia marxista e elabora uma psicologia dialética que explica o desenvolvimento humano com base na mediação semiótica.

 

    Em sua perspectiva, a possibilidade de o homem operar mentalmente sobre o mundo somente ocorre por um processo de representação mental que substitui os objetos do mundo real, papel que é desempenhado pelos signos, elementos que representam os objetos, eventos e situações no plano do intelecto, do pensamento, pela mediação (Moura, e Lima, 2014). A utilização de signos, ao mesmo tempo que é humanizadora, é característica exclusivamente humana, e a palavra é o elemento que faz essa mediação com o mundo, ao permitir a reconstrução interna de uma operação externa, como a possibilidade de relacionar-se com o significado das ações e coisas, mesmo fora de seu momento de ocorrência ou de sua presença. (Malpica, 2013)

 

    Esse processo inicia com a apropriação da linguagem, pelo sujeito (Vygotski, 2001; Luria, 1985). Para Vygotski (2001), a linguagem é o sistema simbólico básico de todos os grupos humanos, e os sujeitos dela se apropriam no grupo cultural em que se desenvolvem. Com essa apropriação, esses sujeitos passam a internalizar os elementos da cultura. Para Luria (1985) e Vygotski (2001), a palavra “substitui” idealmente o objeto e tem funções de conceptualização, de generalização, com que desencadeiam atividades de análise e o “[...] introduz em um sistema de complexos enlaces e relações” (Luria, 1985, p. 36). Além disso, “executa um trabalho automático de análise do objeto que passa despercebido para o sujeito, transmitindo-lhe a experiência das gerações anteriores, experiência acumulada na história da sociedade”. (Luria, 1985, p. 37)

 

    Assim, o mundo material é representado pela palavra, como signo responsável por socializar às novas gerações a herança cultural acumulada pela humanidade. Para Bakhtin (2006), a existência da atividade mental decorre da constituição dos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais. A formação da consciência humana é fruto de um processo de mediação semiótica, e, “se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada” (Bakhtin, 2006, p. 32). Vygotski (2001) assim destaca a função da palavra na formação da consciência humana:

    Se a consciência, que sente e pensa, dispõe de diferentes modos de representação da realidade, estes representam igualmente diferentes tipos de consciência. Por isso o pensamento e a linguagem são a chave para a compreensão da natureza da consciência humana. Se a linguagem é tão antiga quanto a consciência, se a linguagem é uma consciência prática que existe para outras pessoas e, consequentemente para mim, se a maldição da matéria, a maldição das camadas móveis do espírito paira sobre a consciência pura, então é evidente que não é um simples pensamento, mas toda a consciência em seu conjunto que está vinculada em seu desenvolvimento ao desenvolvimento da palavra. (Vygotski, 2001, p. 486, destaques do autor)

    Por essa argumentação, Vygotski (2001) deixa evidente que a consciência representa a realidade pela linguagem e sua relação com o pensamento. A linguagem é o elo entre os sujeitos, e tudo que a consciência representa é propriedade da palavra. Na visão de Vygotski (2001), a palavra é o microcosmo da consciência humana, é por ela, e a partir dela, que a consciência se constitui, porque a palavra, pelo seu conteúdo, contém os significados.

 

    Conforme o autor supracitado, o significado da palavra é uma unidade indecomponível de ambos os processos, não se sabe se é um fenômeno da linguagem ou do pensamento. Ele acrescenta que a palavra desprovida de significado não é palavra, é um som vazio. Assim, o significado é elemento constitutivo da palavra, é a própria palavra vista no seu aspecto interior. Bakhtin (2006), nessa mesma direção, compreende a palavra como material semiótico, constituidor da consciência humana.

    Isso determinou o papel da palavra como material semiótico da vida interior, da consciência (discurso interior). Na verdade, a consciência não poderia se desenvolver se não dispusesse de um material flexível, vinculável pelo corpo. E a palavra constitui exatamente esse tipo de material. (Bakhtin, 2006, p. 35)

    Percebe-se que tanto Bakhtin (2006) como Vygotski (2001) situam a palavra como elemento constitutivo que funda e qualifica as funções cognitivas humanas, com o aporte dos significados culturais que carrega. A esse respeito, são pertinentes as palavras de Martins (2011, p. 133):

    A palavra é, fundamentalmente, uma forma socialmente elaborada de representação, e para que os indivíduos se apropriem dela é requerida a mediação de outros. Sua função generalizadora radica na vida social, nos intercâmbios entre os homens e os objetos pela mediação de outros homens.

    Oliveira descreve mediação como “um processo de intervenção de um elemento intermediário numa relação; essa relação deixa, então, de ser direta e passa a ser intermediada por esse elemento” (Oliveira, 1995, p. 26). Assim, as relações que o homem estabelece com o ambiente social não acontecem de maneira direta, mas são mediadas. Essas mediações ocorrem por meio de ferramentas auxiliares da atividade humana e podem ser classificadas como instrumentos e signos.

 

    Por meio dessas ferramentas, o homem desenvolve suas funções psicológicas superiores, que o tornam capaz de planejar sua própria ação e organizar seu comportamento (Lopes, Castelan, e Pestana, 2004). Considerando-se esses esclarecimentos sobre o papel da palavra na formação da consciência, as rodas de conversa podem ser compreendidas como espaço de circulação da palavra, consequentemente, esfera de movimentação de visões de mundo, de cultura e de ideologias, visto que toda palavra carrega em si um universo axiológico que implica a constituição humana. (Melo, e Cruz, 2014)

 

A roda de conversa como atividade formativa da base da Chapecoense 

 

    As atividades esportivas podem contribuir para um desenvolvimento humano harmonioso da criança e do adolescente nos diferentes períodos etários (Tusón, 2010). No futebol de base, o atleta encontra-se em fase de formação técnica e humana, por essa razão, as atividades extras aos treinos devem objetivar a construção de ações que potencializem a formação integral – técnica e humana – com base em reflexões sobre os conhecimentos, mediadas pela permanente interação com a realidade do esporte, numa perspectiva de indissociabilidade e interdisciplinaridade entre as áreas de conhecimento e formação da cidadania. (Martínez, 2010)

 

    Dessa forma, destaca-se a importância da Educação Formal e não Formal na formação do atleta. Nas categorias de base, a Educação Não Formal é realizada no contraturno do horário escolar, ou seja, no horário em que o atleta não está na Educação Formal. São desenvolvidas atividades orientadas realizadas pela equipe de multiprofissionais, como: psicólogo, assistente social, nutricionistas, técnicos de futebol e pedagogo. O foco desta pesquisa foram as rodas de conversa, realizadas por meio do trabalho pedagógico.

 

    As rodas de conversa ocorrem uma vez por semana, com duração de, aproximadamente uma hora, são de caráter obrigatório aos atletas das categorias Sub 15 e 17 que moram no alojamento; facultativo aos que não moram no alojamento; contudo falar na roda é uma opção dos atletas. A participação das demais categorias, como Sub 12, 13 e 20, é facultativa uma vez que não moram no alojamento do clube. As rodas são conduzidas pela profissional formada em Pedagogia que atua no clube há quatro anos. As temáticas das rodas objetivam articular a formação educacional e social dos atletas.

 

    Foram selecionadas três rodas com mais de 75% de participação dos atletas das categorias do Sub 15 e 17 que moram no alojamento. Trata-se de rodas realizadas de forma virtual, gravadas na plataforma virtual Google Meet. Destacam-se, neste trabalho,enunciados de seis atletas3 distintos, que foram selecionados por participar das rodas há mais de três anos e de forma assídua, além de apresentarem em seus enunciados as características da constituição da roda de conversa, a saber: debate, troca de ideia, coletividade, valores, concepções, singularidades, respeito e interações. Ou seja, evidenciaram as concepções da atividade realizada.

 

    Em umas das rodas realizadas com os atletas sobre a temática desempenho escolar, o atleta A questiona: “como é avaliado nosso desempenho, é só nota, nota, não tem um olhar para tudo que o cara faz?”. O atleta C complementa, “penso que deveriam considerar tudo, mas eles, os professores, devem seguir um documento, uma norma de avaliação. O atleta E destaca: “mas, vocês conversaram com os professores? Os caras nem falam nada como os professores, precisam conversar e trocar ideias”. Com base nesses enunciados, salienta-se que a roda de conversa pode ser compreendida, no contexto de Educação Não Formal, como um espaço de exercício democrático, que privilegia o estabelecimento de diálogos, debates e troca de ideia. (Menezes, e Machado, 2015)

    As relações dialógicas são, portanto, relações entre índices sociais de valor (...) parte inerente de todo enunciado, entendido este não como unidade da língua, mas como unidade da interação social; não como um complexo de relações entre as palavras, mas como um complexo de relações entre pessoas socialmente organizadas. (Faraco, 2003, p. 64)

    Para o atleta F, o diálogo é um ato que possibilita a resolução de problemas, ele fala que “poxa, eu sempre converso com os professores, com a direção, precisa conversar com eles quando acontecer qualquer coisa, a conversa resolve tudo, não adianta falar aqui, precisa falar com a escola, a conversa resolve tudo”. Pode-se observar que a interação social é um processo no qual as dimensões cognitiva e afetiva não podem ser dissociadas e o diálogo estabelecido entre o eu e o outro potencializa essa interação social. (Bertonceli, 2016)

 

    Na sequência, o atleta F ressalta, em sua fala, a importância do diálogo no sentido de compreender o outro a partir da interação enunciativa, para ele: “Isso resolve os problemas falando com o outro, e precisa também escutar o outro, às vezes não concordamos, mas é isso, pela conversa resolvemos, mesmo não concordando, podemos repensar o que foi dito”. Para Bakhtin (2006, p. 295), “essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, ou seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos, e reacentuamos”. Somam-se as afirmações do autor as pesquisas de Mota (2018) quando afirma que o movimento dialógico consiste na existência das diferentes vozes que possuem o mesmo grau de equivalência, que não necessariamente concordam entre si e nem possuem o mesmo sentido, porém adquirem espaço de fala de manifestações enunciativas reflexivas.

 

    O atleta B fala: “É preciso valorizar o todo, valorizar o que o professor fala, cara, eles ficam nos ajudando o tempo todo quando faltamos para irmos aos jogos”. Complementa o atleta F: “Verdade, mano, eu vejo eles sempre prontos para conversar e nos ajudar, podemos conversar, mas também nos esforçar com as atividades da escola”. E segue, ainda, o atleta D: “Não adianta não fazer a sua parte e questionar nota no final, mas concordo com você quando diz que é preciso valorizar o todo”. Para Bakhtin (2006, p. 33):

    [...] não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim um sistema de signos pode constituir-se. A consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social.

    O atleta como sujeito social traz ideias, valores, concepções próprias, mas que foram constituídas por meio das relações sociais a que tem acesso, visto que é fruto da cultura em que está inserido (Sousa, 2018). Esses apontamentos podem ser verificados nos enunciados de dois atletas. O atleta C enuncia “Cara, se meus pais descobrem que eu falei alto com algum professor, eu nunca mais jogo futebol, eles sempre me ensinaram a conversar, a ouvir, e não adianta, tem que conversar”, complementa o atleta B, que contribui falando “Isso, minha criação foi assim, preciso escutar, conversar, o que fizemos aqui com a pedagoga, conversar, discutir e resolver, eu fui ensinado assim”.

 

    Turkle (2020) afirma que o ser humano passa o tempo todo conversando, sozinho ou com alguém, a conversa é uma necessidade humana porque possibilita a comunicação. Nesse contexto, o falante constitui sua subjetividade considerando o outro, e, com isso, orienta sua fala a partir do interlocutor. Diz atleta D “Eu penso antes de falar com quem estou falando, sempre minha avó diz isso, respeite a todos e converse com todos, veja com quem está falando porque às vezes a pessoa não entende”.

 

    Para Ribeiro et al. (2020), esse processo funciona como um espelho no qual se busca refletir acerca dos enunciados do eu e do outro no contexto da conversa, a existência da palavra está ligada à realidade social, portanto, fora do contexto é destituída de sentido. A fala do atleta E também evidencia esse contexto e a atividade responsiva. No enunciado, diz ele que “Eu sempre penso, reflito sobre o que vou falar da forma com que vou falar, não quero parecer grosseiro, por isso, penso com quem estou falando para mudar as palavras, porque eu sou responsável pelo que falo”.

 

    Bakhtin (2003, p. 271) destaca que as rodas de conversa possibilitam o diálogo real em que cada um expressa suas ideias e espera do outro uma atitude responsiva ativa, “a resposta ativa ou responsividade é a compreensão plena e verdadeira de um enunciado, e é o momento em que o interlocutor transforma, recria, completa, de alguma forma, um enunciado”.

 

    Para Valsiner (2017), desse movimento responsivo decorre a exotopia, que é uma posição externa que permite ver o outro em sua totalidade, sua imagem e expressão, a qual é inacessível a ele próprio. Da mesma forma, o outro vê no sujeito o que ele mesmo não pode ver, caracterizando a relação eu-outro como fundamental no processo dialógico e dialético.

 

    Assim sendo, a partir da perspectiva histórico-cultural e da teoria dialógica da linguagem, verifica-se que os enunciados destacam a importância do diálogo, da interação mediada pela linguagem, da responsabilização dos e nos contextos enunciativos. Dessa forma, foi possível observar os posicionamentos e a importância do diálogo, por meio das rodas de conversa utilizadas nas atividades pedagógicas no futebol de base, quando se possibilita um espaço de interação e, por conseguinte, de humanização. Um espaço de voz, ou seja, de enunciações.

 

    Na roda, o atleta expõe a singularidade construída na totalidade das relações humanas, por isso, com as rodas de conversa,pode-se elucidar o papel da interação verbal e do dialogismo no processo formativo do sujeito. De acordo com Bakhtin (2003), a interação verbal é elemento determinante do desenvolvimento linguístico, pois a expressão é resultado desta interação, que tem origem sociológica produzida no processo de diálogo.

 

    Seguindo os pressupostos de Bakhtin sobre a interação verbal, Miotello (2013, p. 66) salienta que “[...] a interação é um evento dinâmico onde o que está em jogo são posições axiológicas, confrontos de valores sociais. A interação é, portanto, o diálogo ininterrupto que resulta desse confronto e que constitui a natureza da linguagem”.

 

    Merece destaque a reflexão do atleta A: “Veja, aqui estamos conversando, poderíamos fazer isso na escola também, ter esse momento de interação, sem ser somente conteúdo, daí, poderíamos falar sobre o que aprendemos e o que não aprendemos”. Após esse raciocínio, continua o atleta C: “Exatamente, gosto dessas rodas que fizemos aqui, me sinto bem à vontade de falar”.

 

    As interações verbais se definem em relações estabelecidas durante o processo dialógico desprovido de neutralidade, realizado por meio da enunciação. A enunciação se realiza no processo de interação verbal, constituindo-se por um contexto de produção de sentidos relacionados a uma situação imediata, mas também pela amplitude de vivências carregadas pelos sujeitos envolvidos na interação.

 

    É por isso que se nota, por meio das rodas de conversa, como o processo de interação envolve uma relação em que os atletas produzem sentidos que extrapolam a dimensão verbal. As respostas criadas por eles também são resultantes das experiências que trazem de outros espaços sociais. Portanto constituem a enunciação e possibilitam um diálogo vivo potencializador da formação humana.

 

Conclusões 

 

    A discussão realizada permite destacara relação entre as práticas pedagógicas e a linguagem verbal, bem como permite reflexões acercadas possibilidades de expressão dos atletas sobre o modo e como suas vozes se situam no processo formativo decorrente de suas participações em rodas de conversa, confirmando que elas são uma atividade formativa no futebol de base da Chapecoense.

 

    Os resultados expressam que as rodas são processos de interações que envolvem relações de sentidos que extrapolam a dimensão verbal e possibilitam um diálogo vivo potencializador da formação humana. Com base nas rodas analisadas, destaca-se que os atletas consideram-nas como um espaço de circulação da palavra, consequentemente, esfera de movimentação de visões de mundo, de cultura e de ideologias, ao evidenciarem que se sentem à vontade para falar nelas.

 

    Ademais, as rodas de conversa apresentam-se como um instrumento pedagógico que busca romper com a visão de sujeito passivo e receptor, pois o sujeito produtor de cultura dialoga sobre o conhecimento e expõe ideias. Além disso, atua na ação de significar o mundo, o outro e a si mesmo, efetivado no momento interativo do diálogo.

 

Notas 

  1. Somente meninos residem no alojamento.

  2. Essas famílias que acolhem os atletas são indicadas pelos familiares dos atletas ou indicados pela ACF. Essas são acompanhadas pelo Serviço Social e Psicológico do clube periodicamente.

  3. Nomeamos os seis atletas do A ao F, os atletas A, B e C são da categoria Sub 15 e os D, E e F, da categoria Sub 17.

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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 26, Núm. 283, Dic. (2021)