ISSN 1514-3465
Sociologia configuracional, esporte e um modelo
de análise: apontamentos para leituras correlacionais
Configurational Sociology, Sport and an Analysis Model: Notes to Correlation Readings
Sociología configuracional, deporte y modelo de análisis: apuntes para lecturas correlacionales
Wanderley Marchi Júnior
marchijr@ufpr.br
Graduado em Educação Física e Técnico Desportivo
pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
Mestre em Educação Física e Doutor em Educação Física
pela Universidade Estadual de Campinas
Pós-doutor em Sociologia do Esporte pela West Virginia University/USA
Atualmente é Professor Titular da Universidade Federal do Paraná
Atua nos programas de pós-graduação em Educação Física e em Sociologia
Coordena o grupo de pesquisa CEPELS/Centro de Pesquisa
em Esporte, Lazer e Sociedade/UFPR
Foi presidente da Asociación Latinoamericana
de Estudios Socioculturales del Deporte/ALESDE (2014-2018)
Editor-Correspondente da International Review for the Sociology of Sport/IRSS
(Brasil)
Recepção: 15/03/2021 - Aceitação: 18/03/2022
1ª Revisão: 07/03/2022 - 2ª Revisão: 13/03/2022
Documento acessível. Lei N° 26.653. WCAG 2.0
Este trabalho está sob uma licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0) https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/deed.pt |
Citação sugerida
: Marchi Júnior, W. (2022). Sociologia configuracional, esporte e um modelo de análise: apontamentos para leituras correlacionais. Lecturas: Educación Física y Deportes, 27(289), 127-140. https://doi.org/10.46642/efd.v27i289.2913
Resumo
O esporte se tornou um objeto de estudo sociológico academicamente relevante e reconhecido a partir do final do século XX. Diante desse fato, várias frentes teóricas posicionaram-se na análise da complexidade relacional desse fenômeno, problematizando-o em torno de suas características na modernidade. Assim sendo, o presente trabalho tem por objetivo, primeiramente, refletir sobre os constructos teóricos da Sociologia Configuracional e sua contribuição para a leitura do esporte moderno e, em seguida, apresentar perspectivas futuristas em relação ao esporte e um modelo de análise relacionado às dimensões do esporte na contemporaneidade. Em síntese, o presente ensaio, destaca as contribuições das Sociologia Configuracional de Norbert Elias para a compreensão do esporte moderno e, posteriormente, são abordadas algumas incursões que têm sido construídas sobre o futuro do esporte. Por fim, um modelo de análise é apresentado para examinar o esporte na contemporaneidade.
Unitermos:
Sociologia configuracional. Esportes. Modelo de análise.
Abstract
Sport has become an object of sociological study academically relevant and recognized since the end of the twentieth century. In view of this fact, several theoretical fronts have positioned themselves in the analysis of the relational complexity of this phenomenon, problematizing it around its characteristics in modernity. The present work aims firstly at reflecting on the theoretical constructs of the Configurational Sociology and its contribution to the reading of modern sport and then, to present futuristic perspectives in relation to sport and an analysis model related to the dimensions of sport in contemporaneity. Therefore, this essay highlights the contributions of Norbert Elias' Configurational Sociology to understand modern sport and, subsequently, some incursions that have been built on the future of sport are approached. Lastly, an analysis model is presented to examine sport in contemporary times.
Keywords
: Configurational sociology. Sports. Model of analysis.
Resumen
El deporte se ha convertido en un objeto de estudio sociológico académicamente relevante y reconocido desde finales del siglo XX. Ante este hecho, varios frentes teóricos se han posicionado en el análisis de la complejidad relacional de este fenómeno, investigándolo en torno a sus características en la modernidad. Por lo tanto, el presente trabajo tiene como objetivo, primero, reflexionar sobre los constructos teóricos de la Sociología Configuracional y su contribución a la lectura del deporte moderno y, luego, presentar perspectivas futuristas en relación con el deporte y un modelo de análisis relacionado con las dimensiones del deporte en la contemporaneidad. En resumen, en este ensayo se destacan los aportes de la Sociología Configuracional de Norbert Elias para entender el deporte moderno y, posteriormente, se abordan algunas incursiones que se han construido sobre el futuro del deporte. Finalmente, se presenta un modelo de análisis para examinar el deporte en la época contemporánea.
Palabras clave
: Sociología configuracional. Deportes. Modelo de análisis.
Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 27, Núm. 289, Jun. (2022)
Introdução
Não transparece ser uma grande novidade afirmar que o esporte, principalmente a partir de meados do século XX e início do XXI, tem se configurado como um objeto de estudo que deixou de ser periférico na hierarquia acadêmica e científica, assumindo apropriada centralidade em determinados campos do conhecimento (Alabarces, 2017; Guedes, 2017; Coakley, 2021). Basta observar com um pouco mais de cuidado a agenda de estudos das ciências humanas e sociais nas últimas décadas.
Com base nesse pressuposto, é possível evidenciar, inclusive, um grande esforço teórico-analítico no sentido de dar respostas aos contextos que envolvem a complexidade do esporte na esfera histórica, política, social, cultural e econômica. Toda essa produção, de grande relevância para o próprio desenvolvimento do esporte, diga-se de passagem, invariavelmente tomou como referência as características advindas do que foi determinado como modernidade, ou seja, os estudos, em sua quase totalidade, pautaram-se por estudar o “esporte moderno”. (Moraes, Gomes, e Marchi Júnior, 2021)
A priori, não são identificados grandes problemas ou deslizes interpretativos nessa lógica de análise, pelo contrário, há sim toda uma construção científica e acadêmica que respaldou o desenvolvimento de um modus operandi para o entendimento do esporte. Nota-se, entretanto, que esse modelo de análise tem apresentado certos limites diante das características que o esporte tem assumido na contemporaneidade, e esse contexto histórico-social, pode-se considerar que não tem sido devidamente contemplado com propostas analíticas que minimamente observem e respeitem essas variáveis constitutivas no e do fenômeno esportivo.
Evidencia-se, assim, a necessidade de olhar de maneira diferenciada a dinâmica existente no esporte contemporâneo – mas sem negar as contribuições já realizadas em estudos que se debruçaram na investigação do esporte moderno. Nesse sentido, o presente trabalho tem por objetivo, primeiramente, refletir sobre os constructos teóricos da Sociologia Configuracional e sua contribuição para a leitura do esporte moderno e, em seguida, apresentar as perspectivas futuristas1 em relação ao esporte e um modelo de análise relacionado às dimensões do esporte na contemporaneidade.
Diante desses propósitos, inicia-se, a seguir, pela leitura e contribuições das Sociologia Configuracional de Norbert Elias para compreender o esporte moderno e, posteriormente, são abordadas algumas incursões que se tem construído sobre o futuro do esporte. Por fim, um modelo de análise é apresentado para examinar o esporte na contemporaneidade.
Iniciando pela Sociologia Configuracional de Norbert Elias
Considerando as possíveis leituras referentes ao esporte moderno, se encontra a de Norbert Elias - inspirada na análise do processo civilizacional da sociedade europeia ocidental, no estudo sobre o controle das emoções e sobre a constituição dos monopólios do Estado - na qual:
O desporto, tal como outras atividades de lazer, no seu quadro específico pode evocar através dos seus desígnios, um tipo especial de tensão, um excitamento agradável e, assim, autorizar os sentimentos a fluírem mais livremente. Pode contribuir para perder, talvez para libertar, tensões provenientes do stress. O quadro do desporto, como o de muitas outras atividades de lazer, destina-se a movimentar, a estimular as emoções, a evocar tensões sobre a forma de uma excitação controlada e bem equilibrada, sem riscos e tensões habitualmente relacionadas com o excitamento de outras situações da vida, uma excitação mimética que pode ser apreciada e que pode ter um efeito libertador, catártico, mesmo se a ressonância emocional ligada ao desígnio imaginário contiver, como habitualmente acontece, elementos de ansiedade, medo - ou desespero. (Elias, 1992, p. 79)
Em adição a essa linha de leitura e interpretação do esporte pode-se destacar uma citação que melhor ilustra o entendimento do sociólogo alemão em parceria com o sociólogo inglês Eric Dunning:
[...] seja ele qual for, é uma atividade de grupo organizada, centrada num confronto entre, pelo menos duas partes. Exige esforços físicos de certo tipo e é disputado de acordo com regras conhecidas, incluindo, onde se revelar apropriado, regras que definem os limites autorizados de força física. O grupo de participantes é organizado de tal maneira que em cada encontro ocorre um padrão específico de dinâmica de grupo - um padrão que é flexível, umas vezes mais, outras vezes menos, e, por isso, variável e, de preferência, não inteiramente previsível no seu curso e nos seus resultados. (Elias, e Dunning, 1995, p. 232)
Ainda buscando o entendimento do conceito de esporte para Norbert Elias, se encontra nos escritos de Alain Garrigou algumas indicações nas quais o referido objeto tem assumido a seguinte condição:
o esporte oferecia um terreno para aprofundar a teoria da civilização ao propor um complemento e, eventualmente, uma correção, quando os limites cronológicos podiam sugerir a conclusão do processo observado e descrito na Idade Média e sobretudo na era moderna. Se a gênese do esporte era concebida como uma modalidade do processo de civilização, Norbert Elias analisava também como a civilização estava e continua em ação na própria evolução dos esportes. (Garrigou, e Lacroix, 2001, p. 67)
Baseados nos excertos apresentados anteriormente, parece evidente o posicionamento do esporte nas análises eliasianas, a saber, um fenômeno social emergente no qual os processos civilizadores manifestam-se fundamentalmente em evidências miméticas da sociedade moderna. Para além desse argumento, temos que Norbert Elias, na composição da sua obra, e especificamente acompanhado de Eric Dunning, refere-se ao esporte e ao lazer como objeto de estudo passível de análise sociológica. (Elias, e Dunning, 1992)
Obviamente, não é exclusividade sociológica de Norbert Elias empreender esforços intelectuais no estudo do esporte e do lazer. Entretanto, encontra-se na sua sociologia configuracional elementos conceituais que refletem extrema pertinência teórico-metodológica para a análise de ambos.
Em sua estruturação analítica, Elias determina objetivos que devem ser explorados. Para ilustrar, seguindo a composição do seu modelo de análise da sociedade a partir do jogo competitivo, o autor vislumbra a possibilidade de dar visibilidade aos processos constitutivos das teias de interdependência em determinadas configurações sociais (Elias, 1970). Dessas teias, conceito estruturante para definir e entender a sociedade, decorre a explicitação, ou melhor, a identificação das relações de poder existentes entre os indivíduos.
Na sociologia configuracional de Elias, se identifica o direcionamento para o estudo do processo civilizacional da sociedade e, para o êxito dos seus propósitos, a análise de grupos de observação empírica foi seminal no estudo das relações humanas, na definição dos graus de interdependência e na avaliação dos chamados estágios de desenvolvimento da humanidade.
Paralelamente a esse processo constitutivo, conceitos foram estruturados com a perspectiva de fundamentar a análise. Especificamente para esse trabalho, destacam-se os conceitos de autocontrole e longa duração, sem perder de vista habitus e mimesis. O conceito de autocontrole emerge, em grande medida, das dimensões e manifestações do controle das emoções. Para Elias, a sociedade passa a se civilizar no momento em que ocorre um determinado domínio sobre suas expressões emocionais2. Trata-se de um processo de civilização das emoções e controle da violência. Nessa esteira, o conceito de longa duração apresenta-se coerentemente articulado dada a premência de uma análise dos processos civilizacionais de forma mais contínua no que se refere aos percursos histórico-sociais3.
Respeitando essa sumária apresentação da sociologia configuracional de Norbert Elias, recuperam-se algumas notas nas quais Johan Goudsblom deu destaque ao identificar o exercício de utilizar o modelo analítico do sociólogo alemão em outros campos sociais.
Segundo Goudsblom, no estudo das interdependências e das configurações sociais, as relações não se definem em parâmetros normativos, autoevidentes ou autoexplicativos; diferentemente disso, se estabelecem teias e interconexões sociais, nem sempre inteligíveis, as quais carecem de ser analisadas em seus respectivos tempos e espaço histórico. Para tanto, o autor conclama a elaboração das questões de campo, ou o que ele denominou “espectro das questões sociológicas”. Com isso, Goudsblom procura sistematizar estágios do pensamento sociológico, considerando que mudanças num determinado contexto social são mudanças que acarretam transformações do habitus e das manifestações de comportamento social. (Goudsblom, 2001; 1992)
Portanto, a grosso modo, é possível afirmar que os constructos teóricos da sociologia configuracional de Norbert Elias apresentam compatibilidade e relevância ao se estudar o que foi identificado e circunscrito nas dimensões históricas do esporte e do lazer moderno. Na próxima seção, serão evidenciadas perspectivas futuras do esporte – e como este tem sido refletido pelos agentes envolvidos em um evento específico para o debate do futuro esportivo. Além disso, é a partir dessas reflexões que emerge a necessidade de se pensar o esporte contemporâneo de maneira distinta, isto é, levando em consideração as suas características particulares de sua época.
Sobre o Futuro do Esporte
Abordando o esporte na perspectiva da modernidade, considera-se sua interpretação clássica baseada em práticas aristocráticas, fundamentalmente nas escolas públicas, na Inglaterra do século XIX (Bourdieu, 1983; 1990). Na tradição da caça à raposa, nas competições de remo ou mesmo na prática do futebol, os ingleses apresentaram novos elementos em dimensões culturais e de distinção social que foram sendo incorporados em disposições comportamentais, leia-se habitus sociais.
Historicamente essa prática foi se ressignificando e adquirindo novos contornos num contínuo processo de expansão e internacionalização. Novas modalidades esportivas surgem, em determinados casos derivando-se das práticas originais, e cresce o número de praticantes, criando-se grupos de amadores e profissionais. Organizam-se competições nacionais e internacionais, as quais em torno de suas edições potencializam um crescente contingente de aficionados pelo espetáculo esportivo que, por sua vez, acaba exigindo de específicas áreas do conhecimento sofisticadas metodologias de treinamento, de avaliação da performance esportiva, entre outras dimensões. Conjuntamente, observa-se a inserção política e econômica na organização, gestão e promoção do esporte. Essa poderia ser, se não o é, a definição ou compreensão universalizada e mais aceita do esporte na modernidade. Entretanto, existem outras variáveis existentes no conjunto dessa análise que devem ser consideradas para uma interpretação mais ampliada desse fenômeno social.
Encaminhando essas reflexões, sem desconsiderar as já reconhecidas análises desenvolvidas até o presente momento, mas sim tentando acrescentar mais subsídios no entendimento sobre o esporte, estabelecem-se a seguir algumas leituras e projeções mais recentes no intuito de uma possível contextualização deste na contemporaneidade.
Para tanto, os principais aspectos relacionados ao “futuro do esporte” são fornecidos em num estudo realizado pela organização The Future of Sports (TFS), o qual tem por objetivo fomentar e auxiliar o desenvolvimento da indústria global considerando o esporte, a medicina e a sociedade (Bronson, 2015). A TFS está subdividida em três instituições que possuem suas especificidades. São elas: a Delaware North, responsável pelo gerenciamento alimentício em eventos esportivos, complexos, parques e cassinos; a Jacobs Institute, cuidando do aprimoramento no tratamento de doenças vasculares, principalmente em Nova York; e finalmente a Attention Span Media que possui uma equipe de profissionais de tecnologia, designers e futuristas, os quais buscam uma melhor compreensão dos implementos tecnológicos e suas influências no cotidiano da sociedade. (Bronson, 2015)
A versão final do documento The Future of Sport 1.0 - editado em 2015 e disponível no site futureof.org - contou com a participação de oito profissionais4 que organizaram uma “linha do tempo” para expor suas análises5. Essa subdivisão temporal seguiu as características estabelecidas em três etapas, a saber, de 1-5 anos, dos próximos 5-10 anos e, finalmente, de 10-25 anos. No conjunto do estudo foram abordados os seguintes tópicos: 1) o estádio; 2) a radiodifusão; 3) o atleta; 4) o terceiro local (espaços públicos); 5) o patrocínio e a publicidade; 6) as equipes e as ligas; 7) e-esportes e os esportes inovadores (fantasia); 8) os torcedores; 9) esportes extremos e/ou de aventura; 10) os pagamentos e a emissão dos bilhetes; e por fim, 11) a economia baseada nos torcedores. (Bronson, 2015)
Importante advertir que os editores do TFS não colocaram suas análises e interpretações em tons proféticos a partir dos processos de globalização cultural, mas sim indícios e possíveis futuros cenários diante das evidências demonstradas no contexto de tecnologização da sociedade contemporânea. As análises tiveram como ponto de partida as modificações ocorridas nos últimos 50 anos, como as transmissões televisivas via satélite e a cabo; a intensificação do uso de cartões de créditos e dos smartsphones; dos avanços da medicina na modificação corporal; das receitas financeiras dos grandes eventos esportivos; e ainda, do interesse crescente e contínuo do consumo esportivo pelos seus expectadores movimentando uma potencial “indústria do esporte”.
Os detalhes de cada item mencionado no estudo não são expostos, entretanto, sumariamente apresentam-se alguns tópicos. Assim sendo, se destaca, por exemplo, a ampliação das experiências vividas pelos espectadores nos estádios a partir de uma infraestrutura que permeia a tecnologia portátil para recebimento de dados e informações instantâneas no evento, a identificação dos expectadores e o controle de ações violentas entre torcedores. (Bronson, 2015)
Cabe ainda neste contexto mencionar o rompimento de um paradigma conservador dos direitos de transmissão dos monopólios estabelecidos institucionalmente por conta da gratuidade de acessos digitais; as supostas normalizações diante das possíveis alterações genéticas e funcionais dos atletas; as transformações das competições em ligas franquiadas pelo mundo e seu respectivo consumo tecnológico; a popularização dos jogos eletrônicos trazendo experiências de estádios no ambiente privado; a interatividade do torcedor numa suposta participação em eventos esportivos on-line ou através de aplicativos; os desafios e riscos impostos cada vez maiores nas práticas de esportes extremos ou de aventura e a tentativa de controle dessas variáveis, inclusive, com a utilização de exoesqueletos robóticos; a chegada da moeda virtual, as compras digitalizadas e os smartwatches; e por fim, a própria reorganização dessa indústria cultural do esporte considerando a virtualidade, a tecnologia e a emoção. (Bronson, 2015)
Com base nesse estudo, além de uma série de constatações empíricas e históricas, chega-se ao ponto de visualizar possibilidades, e por que não dizer necessidades, de construir uma proposta de análise que considere essas perspectivas, sem perder de vista as devidas contextualizações, e que remeta a um olhar que interconecte essas dimensões do que se entende por contemporaneidade ou até mesmo, seguindo a lógica de estudo apresentado, as perspectivas do esporte no futuro. Para tanto, vá para o seguinte tópico.
Notas introdutórias sobre um Modelo Analítico do Esporte na contemporaneidade
Ao considerar as diversas alterações que a sociedade contemporânea vem experienciando, o esporte, por ser parte constituinte das dinâmicas sociais, não fica aquém dessas transformações. A formulação do modelo de análise teve como premissa a noção de mimetismo social. Com ela, se estabelece o diálogo entre as estruturas macro e microssociais – visto que, para Elias e Dunning (1992), a mimese se trata da definição das atividades que são reproduzidas em escala micro, mas que também se encontram em situações próximas à realidade macrossocial. Dito de outra forma, a partir do mimetismo social é possível melhor delimitar e compreender as relações de interdependências que se estabelecem entre agentes e estruturas em determinadas configurações sociais. Partindo dessa referência, visualizamos a possibilidade de entender o esporte na contemporaneidade como:
um fenômeno processual físico, social, econômico e cultural, construído dinâmica e historicamente, presente na maioria dos povos e culturas intercontinentais, independentemente da nacionalidade, língua, cor, credo, posição social, gênero ou idade, e que na contemporaneidade tem se popularizado globalmente e redimensionado seu sentido pelas lógicas contextuais dos processos de mercantilização, profissionalização e espetacularização. (Marchi Júnior, 2015, p. 59)
Tendo esses argumentos como elementos estruturantes, será apresentado resumidamente a proposta de modelo de análise do esporte na contemporaneidade, o qual denomina-se “Modelo Analítico dos 5 E's”6. O modelo tem por objetivo constituir uma referência de análise do esporte a partir de cinco dimensões localizadas no contexto macrossocial contemporâneo que permitem melhor situar, compreender e discutir o fenômeno esportivo em sua complexidade de relações.
A primeira dimensão, ou o “primeiro E”, refere-se à Emoção. Essa dimensão está associada às possibilidades do esporte remeter seus praticantes e consumidores a, por exemplo, situações inusitadas de desafios e riscos (controlados) impostos de forma primária na natureza, ou mesmo construídos tecnologicamente. De forma constante, essas práticas induzem o ser humano a um intenso nível de excitabilidade o qual tem por propósito, no limite, uma contraposição aos processos de rotinização.
Relevante observar que a preparação para uma exposição ao risco, aos desafios e aos graus de excitabilidade, manifesta a estruturação de um descontrole controlado das emoções. Em outras palavras, a excitação, os desafios e os riscos passam ao praticante uma sensação de perda de controle na ação, fato que em verdade não ocorre, pois essa exposição é controlada por aparatos tecnológicos de segurança ou mesmo por quem detém um monopólio específico de controle das emoções. Essa dimensão, por exemplo, pode ser visualizada em um dos pontos salientados nas perspectivas futuras do esporte sobre as experiências diversas que os espectadores nos estádios podem ter acesso, seja pela melhoria da infraestrutura, pelo alcance da tecnologia em relação ao recebimento de informações e/ou pelo controle cada vez maior que se intenta para o controle de ações violentas entre torcedores.
O segundo “E” trata da dimensão da Estética. Nela, a centralidade está direcionada para a recorrente associação entre o esporte e a saúde. Essa associação, invariavelmente, vem condicionada a um substancialismo interpretativo no qual toda forma de prática, exposição ou manifestação do esporte está voltada ou determina um estado de bem-estar ou de desenvolvimento biopsicofisiológico. Tal relação determinista pode ser, no limite, questionada ao se levar em conto as diversas expressões do esporte diante de sua compreensão polissêmica.
Ainda na dimensão Estética, pode-se adicionar a presença dos estereótipos e/ou dos padrões corporais impostos pela sociedade (de consumo) e perseguidos, em significativo número de casos, de maneira patológica. Essa obsessão, ou até mesmo compulsão, pelo corpo perfeito tem levado homens e mulheres a processos de vigorexia e anorexia, ou o que denominamos de uma “demanda social da corporeidade contemporânea”. Essa dimensão corrobora com a análise de algumas sinalizações realizadas sobre o esporte atual e das futuras gerações, quando trata das supostas normalizações diante das possíveis alterações genéticas e funcionais dos atletas e dos avanços da medicina na modificação corporal em busca de um corpo “padrão”, por exemplo.
A terceira dimensão aponta para a Ética. Pautando-se por interpretações tradicionais, iremos encontrar a ideia de critérios, valores, princípios e construções sociais que nos levam a determinados padrões e regras comportamentais. No presente modelo de análise, é possível discutir a Ética, ou pelo menos seus pressupostos, a partir de um conjunto de regras (explícitas ou não), valores e condutas existentes e construídas no esporte.
Especificamente pensando em condutas, é recorrente no esporte o discurso - muitas vezes apelativo - do fair play. Interessante notar que essa perspectiva não se limita ao esporte profissional; pelo contrário, perpassa e reverbera nas diversas manifestações e dimensões deste. A priori, esse “jogar limpo” de origem aristocrática remete os participantes a um incondicional respeito às regras do jogo e, sobretudo, a um código de honra estabelecido entre os mais diferentes níveis de participantes. A estruturação desse ethos esportivo primário, contudo, é sustentada numa perspectiva efêmera, principalmente quando se envolvem questões performáticas e econômicas, ou ainda, o que é mais temerário, subscreve a gênese de uma “pseudoética” esportiva. Nesse sentido, é possível pensar sobre as alterações que poderão ser visualizadas com a possível naturalização das alterações genéticas e funcionais dos atletas em prol unicamente de uma performance melhor (e não somente no cenário profissional, como já mencionado), além da interferência da tecnologia como meio de garantir o resultado justo – e não mais apenas a partir da análise humana e seu respectivo respeito às regras.
Na quarta dimensão, ou quarto “E”, se refere ao Espetáculo. Nessa análise deve-se levar em consideração que esporte-espetáculo não é sinônimo de esporte-profissional. No esporte-espetáculo, determinadas variáveis são notabilizadas como estruturantes, por exemplo: a mobilização de contextos econômicos e mercadológicos; a geração e constituição de ofertas e demandas; o apelo motivacional e emocional; a plasticidade e viabilidade midiática; a capacidade de comunicação e interferência global; uma mobilização populacional, entre outros.
Nessa dimensão, observamos que o esporte na contemporaneidade tem assumido as características de um produto globalizado e mercantilizado nas suas mais diversas possibilidades de manifestações e apelos comerciais. O show-time e o business têm condicionado e limitado a compreensão do esporte a essa dimensão, ou seja, a do espetáculo. E esse suposto condicionamento tem estruturado uma determinada disposição geracional, que é considerada um “habitus social de consumo”.
Em adição à dimensão do Espetáculo, um outro “E” possível seria o Econômico. Entretanto, nessa linha teórica de análise, há a premissa básica de superação das leituras economicistas que comumente são dadas ao esporte, ou à sociedade, em um sentido mais amplo. Por tanto, o aspecto econômico é considerado como um dos principais elementos constituintes do espetáculo, contudo, não de maneira exclusiva.
À título de exemplo, na dimensão de Espetáculo seria possível problematizar as transformações das competições em ligas franquiadas pelo mundo e seu respectivo consumo tecnológico, a popularização dos jogos eletrônicos e a interatividade do torcedor numa suposta participação em eventos esportivos on-line, além de inúmeras possibilidades decorrente do desenvolvimento tecnológico e da constante espetacularização do esporte.
Finalmente, o quinto “E”, o Educacional. Os mais críticos, ou estudiosos da pedagogia e/ou das políticas públicas do esporte, poderiam se contrapor relatando que essa perspectiva já está contemplada no texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, entretanto, não é exatamente na prescrição legislativa-normativa que considera essa dimensão analítica. É no princípio formativo.
Dessa forma, a ideia é defendida de que o Educacional deve ser a dimensão que interconecta todos os demais “E’s”, ou seja, dialoga com a Emoção, com a Estética, com a Ética e com o Espetáculo sempre numa intencionalidade formativa. Dito de outra forma, se compreende que esse processo correlacional, institucional ou informal subsidia a formação reflexiva e crítica do ser humano na sociedade contemporânea e que, portanto, deve ser desenvolvido a contento. É a partir dessa dimensão que se é possível analisar o fenômeno esportivo – e não somente ele – por meio das dimensões abordadas contidas também no cenário macrossocial. A dimensão Educacional, dessa forma, está imbricada na função não somente de ensinar a prática esportiva, mas de problematizar e refletir sobre todos os aspectos envolvidos nessa prática.
Conclusões
Para finalizar, reforça-se que o propósito desse exercício intelectual foi o de resgatar elementos analíticos em autores e estudos que subsidiassem um entendimento mais adequado, refinado e compatível do esporte com o contexto das características da sociedade contemporânea.
Assim sendo, entende-se que falar de esporte na contemporaneidade é falar de práticas e consumos sociais, ofertas e demandas de produtos, considerar atores com perfis éticos e estéticos de amadores, torcedores, espectadores e profissionais, identificar a constituição dos espetáculos; é falar em apropriações e representações sociais advindas dessa dimensão, é considerar toda potencialidade tecnológica e futurista apresentada pela TFS; é falar em emoções e mimetismo social, falar em bens culturais e poder simbólico. Em suma, é falar sobre um conjunto de valores e comportamentos que regem campos e configurações nas quais se estabelecem interdependências e inter-relações pela disputa de um maior capital econômico, social e cultural.
Nesse sentido, quando se pensa nos pressupostos da Sociologia Configuracional, encontra-se grandes contribuições para o desenvolvimento de nossas análises, contudo, circunstanciada a apenas uma das possíveis dimensões visualizadas na contemporaneidade, a da Emoção. Em Elias (1995), a análise do esporte tem como pressuposto que as sociedades revelam meios compensatórios para aliviar as tensões derivadas do autocontrole das emoções. O esporte responderia de maneira catártica e controlada à emoção mimética das relações, riscos e tensões do cotidiano. Em síntese, o que caracterizaria o esporte moderno seria o seu impulso civilizador das emoções no processo de esportivização dos passatempos lúdicos.
Destaca-se dessa compreensão eliasiana - que tem obviamente na sua teoria civilizacional o fio condutor da análise - a intensidade com a qual as emoções, e seus respectivos estágios de manifestação e mecanismos de controle, tomam espaço teórico na sua obra e evidenciam o conjunto das relações e interdependências que configuram o esporte e a sociedade.
Com a sistematização do modelo dos “5 E's”, é proposto um outro estágio para a leitura, análise, interpretação e correlações do esporte. Pretende-se estudá-lo respeitando suas características e inserções na contemporaneidade que prescrevem minimamente uma Dialética do Esporte de Consumo Social, ou seja, um movimento social no qual o “esporte consome a sociedade assim como a sociedade consome o esporte” (Marchi Júnior, 2015, p. 64). Não há nessa relação um direcionamento unilateral como alguns pesquisadores do esporte têm apresentado em suas análises. Pelo contrário, o que ocorre é um sentido (sociológico) de mão-dupla, e se há alguma distorção ou possíveis dominações simbólicas (ocultas) nessa relação, essas decorrem da ausência ou limitação da apropriação da dimensão educacional na compreensão das demais dimensões explicitadas anteriormente.
Na melhor tradição analítica bourdieusiana, se refere a um “Sentido da Prática”. E para entender esse sentido da prática no esporte, torna-se indispensável estudá-lo a partir da análise correlacional no modelo proposto; dito de outra forma, para compreender as relações estabelecidas no esporte contemporâneo não se pode deixar de considerar, relacionar e analisar as dimensões da emoção, da estética, da ética, do espetáculo e suas interfaces educacionais.
Com a apropriação desse “Sentido da Prática Esportiva”, condições serão obtidas para melhor contextualizar e correlacionar valores, manifestações e dimensões, dado esse que qualificará as leituras e interpretações do esporte na contemporaneidade. Obviamente, esse processo não deixa de ser um desafio a longo prazo no contexto da formação teórico-analítica do esporte e, por que não dizer, da sociedade. Não obstante, e em adição, serão necessárias novas incursões em teorias multiculturais, um efetivo trânsito interdisciplinar e, também, um qualificado trabalho empírico de campo.
Agradecimentos
Às professoras Jéssica Barbosa Ferreira e Letícia Cristina Lima Moraes pelas leituras e contribuições à versão final deste trabalho.
Notas
Estudo desenvolvido pela organização internacional The Future of Sports (TFS). Ver Bronson (2015).
Sobre essa relação, ver Brandão (2013).
Stephen Mennell e Johan Goudsblom alertaram sobre esta definição em várias oportunidades, especialmente em suas conferências no VI Simpósio Internacional Processo Civilizador: história, educação e cultura. Assis: Unesp, 12-14 nov. 2001.
São eles: Po Bronson (jornalista científico), Ethan Watters (jornalista), Josh McHugh (diretor executivo), Chris Cowart (designer, professor e colunista da ESPN Magazine), Kevin Roberson (designer), Lei de Tyson (diretor executivo), Joseph Reilly (fotógrafo), e Michael J. Coren (jornalista científico).
Cabe ressaltar que todo esse estudo e análise foi desenvolvido antes do início da crise pandêmica da COVID-19.
Para maior aprofundamento sobre o Modelo dos 5 E’s, consultar Marchi Júnior (2015) e Marchi Júnior, Almeida e Souza (2019).
Referências
Alabarces, P. (2017). De la clandestinidad a la intervención pública: avatares de un campo. In R. Soto Lagos, y O. Vergara, ¿Quién raya la cancha?: visiones, tensiones y nuevas perspectivas en los estudios socioculturales del deporte en Latinoamérica (pp. 25-38). CLACSO.
Bourdieu, P. (1983). Questões de sociologia. Marco Zero Editorial.
Bourdieu, P. (1990). Coisas ditas. Editora Brasiliense.
Brandão, C.F. (2013). Norbert Elias: formação, educação e emoções no processo de civilização. Editora Vozes.
Bronson, P., Watters, E., McHugh, J., Cowart, C., Roberson, K., Law, T., Reilly, J., e Coren, MJ (2015). The Future of Sports 1.0. Delaware North. https://futureof.org/sports-2015/
Coakley, J. (2021). Sociology of Sport: Growth, Diversification, and Marginalization, 1981-2021. Kinesiology Review, 10, 292-300. https://doi.org/10.1123/kr.2021-0017
Elias, N. (1970). Introdução à Sociologia. Editora Martins Fontes.
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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 27, Núm. 289, Jun. (2022)