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ISSN 1514-3465

 

O Fest Verão de São Pedro da Aldeia e o currículo escolar: desafios e possibilidades

The Fest Verão of São Pedro da Aldeia and the School Curriculum: Challenges and Possibilities

El Fest de Verão de São Pedro da Aldeia y el currículo escolar: desafíos y posibilidades

 

André de Brito Oliveira*

profandre.ef@gmail.com

Renata de Sá Osborne da Costa**

rerafadeo@gmail.com

 

*Graduado em Educação Física. Esp. Treinamento Desportivo

Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO)

Especialista em Educação Especial pela UNIRIO

Mestre em Ciências da Atividade Física pela UNIVERSO

Doutorando em Ciências do Exercício e do Esporte pela UERJ

Docente do Curso de Educação Física da Unilagos/Araruama-RJ

**Doutora em Liderança Educacional pela Florida Atlantic University

Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Graduada em Licenciatura Plena em Educação Física

pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Atualmente é professora titular do Mestrado

em Ciências da Atividade Física da Universidade Salgado de Oliveira.

Leciona aulas sobre métodos qualitativos de pesquisa e relações

entre Educação Física, esportes, atividades físicas e sustentabilidade

(Brasil)

 

Recepção: 02/02/2021 - Aceitação: 18/03/2022

1ª Revisão: 23/07/2021 - 2ª Revisão: 03/03/2022

 

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Citação sugerida: Oliveira, A.B., e Osborne, R. (2022). O Fest Verão de São Pedro da Aldeia e o currículo escolar: desafios e possibilidades. Lecturas: Educación Física y Deportes, 27(288), 43-62. https://doi.org/10.46642/efd.v27i288.2840

 

Resumo

    O Fest Verão é um evento cultural e esportivo de praia, realizado no município de São Pedro da Aldeia, RJ, há 50 anos. Trata-se do maior evento esportivo de massa do interior do Estado do Rio de Janeiro e um dos mais antigos do Brasil. Apesar de praticado desde 1969, forjado na cultura local e nos princípios do lazer, praticado por homens e mulheres adultos, além de crianças e adolescentes, as práticas corporais de praia ainda não fazem parte do currículo escolar, distanciando-se do habitus instituído. Este estudo tem como objetivo verificar/discutir a relação das práticas culturais do Fest Verão na categoria de base (sub-11 a sub-17) com os conteúdos abordados pelo currículo da Educação Física, desenvolvidos na escola local. Para tanto, sob a perspectiva da pesquisa qualitativa, três diferentes fontes foram trianguladas para que se chegasse à interpretação dos dados: I) análise do currículo escolar local; II) entrevista semiestruturada aplicada a um técnico de equipe; III) entrevista semiestruturada aplicada a atletas de uma equipe sub-17. Apesar da existência do megaevento cultural aldeiense em torno dos esportes de praia, percebe-se que a escola local continua reproduzindo massivamente o ensino das práticas hegemônicas corporais nacionais (futsal, voleibol, basquetebol, handebol). Este distanciamento entre currículo escolar e práticas culturais impede a existência de um protagonismo comunitário reflexivo e consciente, nascido da apropriação de um saber acumulado historicamente e vivo na cultura local.

    Unitermos: Eventos esportivos. Beach soccer. Currículo.

 

Abstract

    The Fest Verão is a cultural and sporting beach event, held in the city of São Pedro da Aldeia, RJ, for 50 years. It is the largest mass sporting event in the interior of the State of Rio de Janeiro and one of the oldest in Brazil. Despite being practiced since 1969, forged in the local culture and in the principles of leisure, practiced by adult men and women, as well as children and teenagers, beach corporal practices are still not part of the school curriculum, distancing themselves from the established habitus. This study aims to verify/discuss the relationship of the cultural practices of the Fest Verão in the base category (sub-11 to sub-17) with the contents covered by the Physical Education curriculum, developed in the local school. Therefore, from the perspective of qualitative research, three different sources were triangulated in order to arrive at the interpretation of the data: I) analysis of the local school curriculum; II) semi-structured interview applied to a team technician; III) semi-structured interview applied to athletes from an sub-17 team. Despite the existence of the local cultural mega-event around beach sports, it is clear that the local school continues to massively reproduce teaching of national hegemonic corporal practices (futsal, volleyball, basketball, handball). This distance between the school curriculum and cultural practices prevents the existence of a reflexive and conscious community role, born from the appropriation of historically accumulated knowledge that is alive in the local culture.

    Keywords: Sports events. Beach soccer. Curriculum.

 

Resumen

    El Fest Verão es un evento cultural y deportivo en la playa, realizado en el municipio de São Pedro da Aldeia, RJ, desde hace 50 años. Es el mayor evento deportivo masivo del interior del Estado de Río de Janeiro y uno de los más antiguos de Brasil. Iniciadas en 1969, forjadas en la cultura local y en los principios de la recreación, practicadas por hombres y mujeres adultos, además de niños y adolescentes, las prácticas corporales en la playa aún no forman parte del currículo escolar, alejándose del habitus establecido. Este estudio tiene como objetivo verificar/discutir la relación entre las prácticas culturales del Fest Verão en las categorías de base (sub-11 a sub-17 años) con los contenidos abordados por el currículo de Educación Física, desarrollado en la escuela local. Por lo tanto, desde la perspectiva de la investigación cualitativa, se triangularon tres fuentes diferentes para llegar a la interpretación de los datos: I) análisis del currículo escolar local; II) entrevista semiestructurada aplicada a un técnico de equipo; III) entrevista semiestructurada aplicada a deportistas de una selección sub-17. A pesar de la existencia del megaevento cultural local en torno a los deportes de playa, es claro que la escuela local sigue reproduciendo masivamente la enseñanza de prácticas corporales hegemónicas nacionales (futsal, voleibol, baloncesto, balonmano). Esta distancia entre el currículo escolar y las prácticas culturales impide la existencia de un protagonismo comunitario reflexivo y consciente, nacido de la apropiación de saberes históricamente acumulados y vivos en la cultura local.

    Palabras clave: Eventos deportivos. Fútbol playa. Currículo.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 27, Núm. 288, May. (2022)


 

Introdução 

 

    A prática formal e informal de diversos esportes de praia no interior do Estado do Rio de Janeiro é uma constante durante todo o ano e, junto ao atrativo e potencial turístico natural desta região como as praias, colabora para a economia das cidades, como relata o Caderno de Turismo do Estado do Rio de Janeiro (2010). Especificamente, na cidade de São Pedro da Aldeia – uma das cidades turísticas que integra a chamada Região dos Lagos-, estes esportes são reunidos todos os anos, ofertando, entre outras modalidades, o Futevôlei, o Vôlei de Praia e o Beach Soccer – carro-chefe da competição (Oliveira, 2020). Em 21 de dezembro de 1969, a Praia do Centro sediava o torneio-início dos Jogos de Verão de São Pedro da Aldeia (Imagem 3), o que viria a se tornar o maior e mais antigo evento esportivo de massa do interior do Estado do Rio de Janeiro, denominado nos dias atuais de Fest Verão.

 

Imagem 1. Time Campeão do Torneio-Início dos Jogos de Verão de São Pedro 

da Aldeia realizado em 21 de dezembro de 1969, na modalidade Futebol de Praia

Imagem 1. Time Campeão do Torneio-Início dos Jogos de Verão de São Pedro da Aldeia realizado em 21 de dezembro de 1969, na modalidade Futebol de Praia

Fonte: Arquivo do autor. Nota: Equipe Carapicu

 

    Por se tratar de um evento amador, as equipes são formadas por membros de bairro, o que propicia uma efetiva participação das comunidades nas práticas esportivas durante o evento, ao invés de serem meras expectadoras, como ocorre na maioria dos megaeventos. (Bracht, e Almeida, 2013)

 

    Na modalidade Beach Soccer – esporte que atrai maior público -, as categorias são divididas em: base, adulta e veterana. A categoria de base compreende atletas de 10 a 17 anos, oriundos, em sua maioria, de escolas públicas do município. Na categoria adulta, há a presença de mulheres e homens a partir dos 18 anos. Já a categoria veterana é composta por homens com idade igual ou superior a 40 anos. Essa subdivisão permite, nesta modalidade, maior participação e inclusão de diferentes pessoas e faixas etárias.

 

    A partir de um levantamento feito junto ao Departamento de Esportes da cidade, em 2020 – ano em que se comemorou 50 anos de existência dos jogos de praia da cidade (Imagem 2) -, o evento contou com a inscrição de 10 equipes somente na categoria de base, reunindo diretamente na competição, 480 crianças e adolescentes, distribuídos de 9 a 17 anos. Como esta categoria, por tradição, está sempre envolvida no evento, fortes indagações instigam o início deste estudo: as escolas se apropriam das práticas produzidas neste evento como conteúdos ressignificados? As crianças e adolescentes das categorias de base recebem alguma orientação escolar no sentido de protagonizar anualmente, este grande evento? Como e quem organiza e orienta estas crianças para a competição? O Beach Soccer e outras modalidades de praia são desenvolvidas no currículo da Educação Física Escolar?

 

Imagem 2. Equipe de Base Baleiense parabeniza evento por seus 50 anos

Imagem 2. Equipe de Base Baleiense parabeniza evento por seus 50 anos

Fonte: Arquivo do autor. Nota: Foto extraída do Fest Verão 2020, nos meses anteriores ao período de reclusão social devido à 

pandemia do Coronavírus. A pandemia fez com que a competição fosse suspensa no momento em que se ia disputar às semifinais

 

    Neste sentido, ao analisar o Fest Verão de São Pedro da Aldeia-RJ e seu desdobramento na cultura aldeiense, torna-se objetivo deste trabalho verificar a relação das práticas culturais deste evento na categoria de base com os conteúdos abordados pelo currículo da Educação Física, desenvolvidos na escola local.

 

O Beach Soccer e o currículo da Educação Física Escolar 

 

    Recorrendo aos aspectos culturais do currículo escolar amplamente divulgados por Saviani (2006, p. 33), encontra-se fundamentos que justificam a necessidade da construção de uma organização curricular que contemple “elementos da cultura passíveis (e desejáveis) de serem ensinados / aprendidos na Educação escolar”. Desse modo, o que se propõe é um currículo que seja consolidado por práticas pedagógicas motivantes, que tenham significado e, de certa forma, possam levá-los a uma autonomia reflexiva acerca de sua participação futura no mundo (Daolio, 1995; Perrenoud, 2005; Libâneo, 2006, Farinatti, e Ferreira, 2006). Este aluno autônomo e crítico existirá somente se o currículo permitir que o estudante se sinta parte integrante do processo de ensino, identifique-se com ele (Sacristán, 2000) e, não, como normalmente ocorre, alheio a ele.

 

    Nos últimos 20 anos, a abordagem dos Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1998) buscou ressignificar a prática docente no momento em que propôs a valorização de uma cultura viva, cheia de sentidos, pela qual o homem construiu sua história corporal e pela qual o mesmo se manifesta. Consensualmente, esta cultura de movimento é absorvida pela escola e transmitida ao aluno como promoção cultural e valorização social. Para Libâneo (2006, p. 75) a escola deve “colocar à disposição das camadas populares os conteúdos culturais mais representativos do que de melhor se acumulou, historicamente, do saber universal (...)”.

 

    Por meio da Resolução nº 4, de 13 de julho de 2010, o Conselho Nacional de Educação do Brasil definiu Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica. Em seu Artigo 9, a referida resolução aponta que para uma escola atender ao quesito de qualidade social, tendo o discente como centro do processo de ensino, faz-se necessária a “consideração sobre a inclusão, a valorização das diferenças e o atendimento à pluralidade e à diversidade cultural, resgatando e respeitando as várias manifestações de cada comunidade”. (Brasil, 2010)

 

    Na mesma direção, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) concebeu a Educação Física Escolar como componente curricular na área das linguagens e, como tal, valoriza a cultura corporal de movimento como uma forma de comunicação e expressão sociocultural, individual e coletiva. Desse modo, no que cabe à Educação Física Escolar:

    A vivência da prática é uma forma de gerar um tipo de conhecimento muito particular e insubstituível e, para que ela seja significativa, é preciso problematizar, desnaturalizar e evidenciar a multiplicidade de sentidos e significados que os grupos sociais conferem às diferentes manifestações da cultura corporal de movimento. Logo, as práticas corporais são textos culturais passíveis de leitura e produção. (Brasil, 2018, p. 210)

    Compreende-se, nesta realidade, que o ensino deve estar integrado a um contexto social significativo, necessitando romper com paradigmas hegemônicos esportivos existentes na expectativa de que os educandos sejam competentes para a vida (Perrenoud, 2005). E por falar neste assunto, a primeira dentre as dez competências estabelecidas para o ensino fundamental por meio da BNCC (Brasil, 2018, p. 219) é: “compreender a origem da cultura corporal de movimento e seus vínculos com a organização da vida coletiva e individual”.

 

    Percebe-se neste sentido, a necessidade de um estreitamento entre cultura, escola e protagonismo comunitário. Esta relação se dá por meio do currículo, que segundo Saviani (2006, p. 49) “nada mais é que uma seleção da cultura, uma filtragem do conhecimento de modo a torná-lo acessível aos diferentes grupos (...)”. Logicamente, que esta seleção se dá quase sempre sob uma relação de poder, baseado em aspectos ideológicos sociais, os quais, neste texto, não se pretende discutir.

 

    Considerando aspectos culturais como importantes na formação do cidadão, Bracht (2003) contraria a perspectiva hegemônica do esporte ao observar que:

    Se buscarmos com o esporte escolar que os indivíduos se apropriem de um elemento da cultura a ser vivenciado pelo resto da vida, a referência precisa ser o esporte praticado a partir de códigos como a saúde, a sociabilidade, o prazer, o divertimento (o esporte como atividade de lazer). Para a massa da população, o esporte normatizado e de rendimento tem pouca importância enquanto referência para a prática. (Bracht, 2003, p. 98)

    O beach soccer, em São Pedro da Aldeia, RJ, por sua tradição, é uma manifestação esportiva tipicamente ligada à cultura corporal de praia entre os aldeienses, expressamente percebida na culminância do megaevento Fest Verão1 (Oliveira et al., 2019). Os saberes acumulados historicamente a partir da realização deste evento remete-se à apropriação destes conhecimentos (Bourdieu, 2004) como conteúdos escolares ressignificados.

 

    Esta apropriação propõe ao aluno que, além de ter acesso às práticas corporais da cultura local na e pela escola, o mesmo possa estabelecer uma relação contextual sustentável onde vive (Costa, Silva, e Votre, 2011; Unesco, 2005), identificando-se de forma mais responsável com o seu meio, de maneira crítica, participativa e emancipada para toda a vida (Farinatti, e Ferreira, 2006). A não apropriação deste contexto social, segundo Darido (2012, p. 98), prospera para práticas desmotivadoras e, consequentemente, para “aumentar as chances de evasão na prática das aulas e também em situações de aprendizagem futuras”.

 

    Ao estudar, por exemplo, sobre práticas esportivas nas praias da cidade, é importante que a criança compreenda a relação que estas práticas têm não só com os fatores socioculturais e de saúde, mas também com o meio ambiente numa concepção de educação e sustentabilidade, o que remete à preservação, interação e utilização responsável desses espaços, uma vez que “o ser humano é um agente que pertence a essa teia de relações entre o social, natural e cultural”. (Costa et al., 2011, p. 2)

 

    Infelizmente, na análise de Nunes, e Rocha (2019), eventos esportivos em meio à natureza nem sempre levam em conta a totalidade do ambiente natural. Para os autores, “existe um fosso entre a utilização, prevenção e recuperação das áreas”. Este contexto promove o entendimento de eventos com fins em si mesmos, sem maiores reflexões e comprometimentos com o meio natural usufruído (Imagem 3). Esta é uma realidade inconcebível no atual momento e uma questão de extrema relevância a ser abordada no meio escolar.

 

Imagem 3. Lixo deixado na orla da praia após evento do Fest Verão

Imagem 3. Lixo deixado na orla da praia após evento do Fest Verão

Fonte: Arquivo do autor

 

    Chernushenko (2011), em sintonia com esta questão, diz que “o esporte é sustentável quando satisfaz as necessidades atuais da comunidade desportiva, contribuindo simultaneamente para a melhoria das futuras oportunidades esportivas para todos e para a integridade do meio ambiente natural e social do qual ele depende” (p. 21, tradução dos autores).

 

    Neste sentido de corresponsabilidade, Oliveira (2017, p. 167) questiona: “será que o Fest Verão, ao usufruir do ambiente que está inserido há quase 50 anos, atende às necessidades atuais da comunidade desportiva local?”. Na mesma direção, o próprio autor responde: “no momento em que esta comunidade se engaja em um projeto verdadeiramente de e para todos, ela passa a fazer algo que tem importância para a coletividade não só momentaneamente, mas para o futuro”. (Oliveira, 2017, p. 167)

 

Métodos 

 

    O presente estudo foi estruturado sob o método qualitativo, a partir de entrevistas semiestruturadas, análise de documentos, bem como observação participante (Thomas et al., 2012). Enquanto instrumento de pesquisa, a observação participante se deu no desenrolar do Fest Verão, entre os meses de janeiro, fevereiro e março. Os documentos considerados importantes para este estudo foram: tabelas de jogos do Fest Verão 2020 e o currículo de Educação Física do Município de São Pedro da Aldeia. As entrevistas foram direcionadas por conveniência a uma equipe de beach soccer e seu professor. Foram sabatinados: 1) professor e presidente da equipe Baleiense; 2) atletas da equipe Baleiense sub-17, envolvidos no evento 20202. Estes atletas são oriundos de escolas públicas (estaduais e municipais), localizadas em vários bairros da cidade.

 

    A escolha desta equipe se deu pelo fato de ser a mesma, a agremiação com maior vínculo sociocultural com o tradicional evento da cidade; por possuir todas as categorias envolvidas no evento, exceto o feminino; por ser o mais antigo projeto social sem fins lucrativos que atende a crianças e adolescentes de diversas idades na modalidade beach soccer; por ser o único projeto que possui um programa permanente de aulas semanais, na Praia do Centro da cidade. As entrevistas aplicadas a este grupo foram as do tipo semiestruturadas, abertas, enviadas e devolvidas por meio de grupos de uma rede social – grupos estes já existentes para o diálogo entre técnicos, responsáveis e atletas. As pesquisas realizadas com levantamento de dados a partir de recursos on-line, segundo Flick (2013) “são enviados por e-mail a destinatários previamente selecionados. O questionário é anexado a uma mensagem com a expectativa que os recipientes respondam às perguntas e devolvam o questionário anexado à sua resposta por e-mail” (p. 168).

 

    O recurso on-line, no caso desta pesquisa, foi o WhatsApp, estando o pesquisador inserido aos grupos criados e organizados por ocasião da competição do Fest Verão – 2020, sendo autorizado pela presidência da equipe, bem como pelos responsáveis dos atletas. Um questionário foi enviado a 12 alunos da categoria Sub 17, mas apenas nove deram retorno à pesquisa. A seleção desta faixa etária foi por conveniência, entendendo que se trata de adolescentes que já passaram pelo Ensino Fundamental e estão iniciando ou terminando o Ensino Médio.

 

    Este corte é relevante pelo fato de serem alunos que têm condições de opinar de forma crítica e consciente sobre as perguntas direcionadas, baseando-se em suas vivências discentes ao longo da vida acadêmica. O teor das perguntas realizadas aos alunos gira em torno da compreensão sobre a motivação em participar do evento; se há ensinamento da modalidade em suas aulas de Educação Física Escolar; como se dá o aprendizado da modalidade para que eles participem da competição, entre outras questões afins.

 

    No que se refere à análise do currículo de Educação Física Escolar do município, objetivou-se verificar a presença de esportes de praia – ao menos o Beach Soccer – listados como conteúdos em algum ano de escolaridade, considerando a dimensão temporal deste projeto de praia inserido na cultura local.

 

    De acordo com o desenrolar da pesquisa, o professor/presidente/técnico desta equipe foi sabatinado com a intenção de verificar informações relevantes sobre o processo de preparação e condução de uma equipe de base dentro do Fest Verão.

 

Resultados 

 

O currículo local 

 

    O currículo de Educação Física analisado compreendeu aquele em vigência até o ano de 2018, onde se percebeu a ausência de práticas esportivas de praia, isto é, aquelas práticas que fazem parte do cotidiano dos alunos da cidade. Na verdade, o currículo analisado é composto essencialmente por práticas esportivas hegemônicas, uma vez que se percebe a constante presença dos esportes coletivos de quadra, sem nenhuma relação aos esportes de praia. Estes esportes coletivos (o vôlei, o basquete, o futsal e o handebol) aparecem de forma repetitiva durante todos os anos de escolaridade (6º ao 9º ano), sem levar em conta a realidade local e os diferentes níveis de maturação e desenvolvimento motor, próprios de cada faixa etária. Esta realidade configura o chamado quarteto fantástico (Bracht, 2010; Brandt et al., 2015) e integra o perfil hegemônico do trabalho desenvolvido no Brasil, exclusivamente em torno do esporte de rendimento. (Ferreira, 2018; Betti, 1999)

 

    A partir do processo de formação docente do município ocorrido no ano de 2019, em 2020, iniciar-se-iam por ocasião do estreitamento com as diretrizes da Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2018), práticas mais voltadas para a realidade local. Percebe-se que no novo documento municipal, há menção de habilidades3 que contemplam as manifestações locais, sobretudo os esportes de praia. No entanto, com o advento da Pandemia do Sars-Cov-2, acometendo a população mundial ao coronavírus, estes conteúdos, ainda que experimentais, não puderam ser colocados em prática, pelo menos ao longo dos anos de 2020/2021.

 

    Documentos e imagens disponíveis na Internet acerca dos jogos escolares/estudantis ocorridos no ano de 2014, na cidade, mostraram a existência da prática do Beach Soccer como modalidade competitiva entre alunos do município. Porém, naquele ano, não existia no currículo escolar, qualquer menção à conteúdos que abordassem práticas do contexto praiano. Diante destes dados, é possível questionar: como se deu a preparação dos alunos no que se refere à (in)formação acerca do Beach Soccer? Ocorreram nas escolas, aulas de Educação Física que contemplassem conhecimentos acerca desta modalidade? Os professores receberam alguma formação continuada que tivesse relação com o referido esporte de praia.

 

    Estes questionamentos não imputam à escola o dever de preparar alunos para competições, nem mesmo, responsabilizar as aulas e o professor de Educação Física para esta finalidade. No entanto, por se tratar de uma manifestação cultural local, a competição é consequência de um habitus esportivo nascido do lazer (Oliveira, 2017) e que precisa ser apropriado e ressignificado pela escola no sentido de se estreitar a relação ensino-aprendizagem.

 

A formação das equipes 

 

    Considerando a modalidade Beach Soccer, das 10 equipes da categoria de base inscritas nos jogos culturais realizados por meio do Fest Verão no início de 2020, apenas três eram regidas por profissionais de Educação Física. As equipes representam bairros, formadas a partir de projetos sociais, liderados por mão-de-obra voluntária. Desse modo, não há condições de arcar com pagamentos de profissionais. Esta é a justificativa para que a organização do Fest Verão não cobre das equipes (independente da categoria), a existência de técnicos formados em Educação Física. Se fosse exigida a presença destes profissionais em todas as equipes, não haveria condições sequer de realizar o evento devido aos custos com honorários. Deve-se lembrar que apesar de ser uma justificativa plausível, trata-se de uma ação contrária às exigências do Conselho Federal de Educação Física.

 

    A questão central a se discutir neste ponto se refere a (in)formação que o aluno/atleta recebe acerca do esporte e do evento praticado na competição. No momento em que a escola local não se apropria dos esportes de praia como conhecimentos a serem pedagogizados ao longo do ano letivo, aproximando-se da realidade discente, de fato, o voluntariado parece ser a única e última opção que o aluno possui para conhecer, ainda que minimamente, o esporte que praticará, seja como esporte de lazer ou de competição.

 

A fala do professor-treinador 

 

    Ao entrevistar o professor de Educação Física J.M.S.A. do tradicional time Baleiense, buscando informações acerca da estruturação de seu trabalho para o evento, o mesmo relatou que começa a preparar seus atletas com treinamentos específicos para a competição pelo menos dois/três meses antes do início do evento (outubro/novembro), o que se perpetua durante a competição caso a equipe siga se classificando. Fazendo uma análise temporal, os alunos ficam envolvidos diretamente com o evento por pelo menos seis meses, entre o período de preparação, início, desenvolvimento e final do mesmo. Esta preparação, segundo o professor, ocorre no próprio campo de jogo da competição – único campo mais acessível às crianças, localizado na Praia do Centro4 da cidade (Imagem 4). As aulas incluem conhecimentos sobre a regra do beach soccer, fundamentos, técnicas e táticas de jogo.

 

    Segundo o professor entrevistado, seu objetivo é participar da competição em igualdade de condições com as demais equipes, embora seu foco seja fazer com que o máximo de crianças participe direta ou indiretamente do evento.

 

Imagem 4. Professor J.M.S.A. instruindo a equipe Baleiense nos treinos que antecipam o Fest Verão, na Praia do Centro

Imagem 4. Professor J.M.S.A. instruindo a equipe Baleiense nos treinos que antecipam o Fest Verão, na Praia do Centro

Fonte: Acervo do autor. Nota: Baleiense é um projeto social sem fins lucrativos de responsabilidade

do professor J.M.S.A., que funciona ininterruptamente desde 2007 com práticas de Beach Soccer.

 

    Uma importante observação realizada pelo docente em questão é sobre a apropriação do espaço por outras atividades culturais que de certa forma, apresentam risco aos praticantes de esporte no Campo do Centro. Segundo o mesmo, nos últimos anos, o espaço tem sediado encontros, por exemplo, de motoclubes, onde são instalados, palco e área de alimentação. O professor registra que por várias vezes, após um evento desses, retirou da areia da área do campo, cacos de vidro e palitos de churrasco de pontas afiadas, deixados por consumidores não conscientes no espaço que usufruem. Esta realidade degrada o meio ambiente e põe em risco as pessoas que frequentam este meio natural tão importante para a qualidade de vida das pessoas. Satisfazer as necessidades da comunidade ao usufruir de práticas no meio natural de maneira inconsciente contrapõe aquilo que Chernushenko (2011) chamou de esporte sustentável.

 

A percepção dos alunos/atletas 

 

    A partir do acesso ao grupo destes alunos (sub-17), dos nove que responderam ao questionário virtual, todos relataram que não receberam em suas escolas, quaisquer (in)formações (teórica ou prática) da modalidade beach soccer. Há de se destacar que na cidade há escolas que ficam distantes da praia. Porém, há aquelas que estão localizadas às margens da lagoa, em comunidades pesqueiras, que também não desenvolvem atividades próprias de praia.

 

    O fato de a escola não possuir quadra de areia, materiais específicos ou ainda, estar longe da praia, não impede que os alunos recebam conteúdos e aulas acerca dos esportes praianos. Na verdade, esta pode até ser a desculpa para o não trabalho, mas o que seria da Educação Física se esse comodismo impedisse as belas práticas que ocorrem Brasil afora, desenvolvidas sem quaisquer materiais ou espaços adequados?

 

    Parafraseando Rufino, e Darido (2015) sobre o ensino de lutas, a ausência dos esportes de combate nas escolas se dá por vários motivos, dentre os quais também estão inclusos, problemas na formação acadêmica, falta de conhecimento e insegurança na dinamização das aulas. Este paralelo com os esportes de praia se faz importante para compreender que a ausência destes como conteúdo curricular, segundo os autores, dá-se não por falta apenas de espaços e materiais específicos, mas pela inabilidade docente, que tem múltiplas origens.

 

    Destes alunos entrevistados, há aqueles que participaram do evento pela primeira vez em 2020, sendo inclusive, convidados de cidades vizinhas, que comungam de espaços e atividades corporais muito semelhantes. No entanto, a grande maioria possui certa experiência no Fest Verão, variando de dois a quatro anos de participação. Quando questionados sobre a participação no evento, todos relataram gostar muito de jogar no mesmo, a ponto de competir em edições futuras, caso sejam convocados.

 

    Sobre a aula deste esporte (beach soccer) ou o ensino de outra prática de praia nas aulas de Educação Física Escolar, todos afirmaram que nunca tiveram acesso a estes conteúdos no currículo escolar, mas gostariam que a escola abordasse esses assuntos. Há alunos que relataram adquirir conhecimento sobre o esporte, por exemplo, por meio da Internet. Em relação ao ensino escolar, assim se expressou um atleta: “(...) gostaria sim, porque iria dar mais uma vantagem (...) porque quero ganhar experiência”. A ‘vantagem’ expressa aqui tem relação com o saber para fazer, com o conhecimento prévio dado pela escola, o que proporciona a aquisição de melhores resultados (evento) e difusão do protagonismo comunitário.

 

    Estranhamente, outro aluno relatou: “na minha escola não ensina, mas minha educação física é na praia”. Uma reflexão se faz necessário neste momento: se a aula de Educação Física ocorre na praia, o que é ensinado lá? Será que ocorrem naquele ambiente as mesmas práticas hegemônicas experimentadas na quadra da escola? Para a maior parte dos alunos brasileiros, o esporte jogado com os pés é futebol (Faria, 2003), não importa o local de sua prática. Como relatado por Oliveira (2017), o golzinho de praia também é jogado nas quadras da escola. Então, se na escola, o futsal – esporte também praticado com o pé – é chamado de futebol, será que na praia, o beach soccer também o é? Será que o aluno pratica o beach soccer e, ao pensar que é futebol, entende que não aprendeu ali qualquer esporte de praia ou, realmente, por conta de vários fatores, incluindo a falta de conhecimento, o professor não aborda de forma satisfatória esta modalidade?

 

    Ao visualizar o currículo municipal de Educação Física, a dinâmica do evento do Fest Verão, a organização das equipes, a orientação dos professores por equipe, a opinião dos alunos acerca dos esportes de praia e os conteúdos trabalhados, é possível triangular todas estas informações e compreender o distanciamento da escola desta realidade cultural, ainda que o município possua uma forte trajetória histórica, geração após geração, acerca dos esportes de praia.

 

Discussão 

 

    Decerto, os conteúdos da Educação Física Escolar se mantêm pautados na hegemonia esportiva, sobretudo nos esportes coletivos midiatizados, de sorte que ainda é necessário dar respostas ao questionamento feito por Paula, e Lima (2013): “como superar a hegemonia do esporte nas aulas de Educação Física?”. Ao perceber esta dimensão hegemônica ainda presente no currículo analisado, uma inquietação específica redirecionou a pesquisa para outra indagação: considerando as centenas de crianças e adolescentes que participam do Fest Verão, como eles aprendem o beach soccer se este não está presente no currículo da Educação Física escolar?

 

    As respostas são muitas, mas o que se destaca neste estudo é a desvalorização da cultura local por parte da escola e das políticas públicas de educação. A não apropriação de práticas culturais que dão sentido ao fazer pedagógico distancia o ensino da realidade do aluno, de suas vivências e experiências do cotidiano. Segundo Torres et al. (2017), o ensino deve ser baseado no contexto do aluno, em situações práticas de sua realidade, gerando o interesse e, consequentemente, a aprendizagem significativa.

 

    Neste contexto de experiências reais, o sociólogo Murad (2009) faz uma interessante análise sobre o a reprodução social a partir do conceito de habitus, gerado pelo sociólogo Pierre Bourdieu (1983).

    É um conceito básico para todos que trabalham com educação, seja escolar ou não escolar, na medida em que as matrizes e as identidades culturais que serve de referência às coletividades de um determinado local devem ser levadas em conta na hora de estabelecer objetivos, planejar, executar e avaliar os processos pedagógicos. Assim, o conceito de habitus é uma ferramenta necessária para a interação entre os planos e programas de ensino-aprendizagem e matrizes culturais. (Murad, 2009, p. 123)

    O campo, outro termo conceituado por Bourdieu (1983), é o local onde se dá o habitus. No caso do Fest Verão, a região praiana constitui o campo e, a prática dos esportes de praia, o habitus. Para Murad (2009, p. 123), “os profissionais de educação física, que trabalham com práticas diretamente ligadas àquilo que tem a ver com o conceito de habitus e que por isso são tão motivadoras, (...) têm em mãos instrumentos pedagógicos muito importantes, mais até que os dos professores de outras matérias”.

    

    Ao abordar apenas de forma hegemônica os esportes coletivos, os quais muitas vezes são descontextualizados de significado (Bracht, 2013; Darido, 2012; Betti, 1999), a escola perpetua o modelo vigente da reprodução irreflexiva presente nos currículos, confirmando ainda mais, as relações de poder existentes. (Paula, e Lima, 2013; Oliveira, e Silva, 2007; Saviani, 2006)

 

    O curioso desta questão é que alunos e alunas aldeienses passam todos os anos letivos, durante toda a vida acadêmica, ouvindo e praticando estas modalidades. No entanto, no início de cada ano, incoerentemente, participam da celebração cultural do esporte na sua cidade – o Fest Verão – praticando uma modalidade teoricamente desconhecida.

 

    Outra questão curiosa é que a Secretaria Municipal de Educação da cidade, segundo dados, ao realizar os jogos estudantis em 2014, incluiu o beach soccer no conjunto de esportes e atividades oferecidos aos alunos, mas como dito, esta modalidade esportiva não aparece na grade curricular daquele ano como proposta de ensino. Percebe-se então, a prática pela prática, descontextualizada do mundo real do aluno, apesar de fazer parte dele.

 

    Para Oliveira et al. (2019), a apropriação da realidade local – o campo praiano, bem como o contexto do Fest Verão – deve ocorrer sob uma ótica interna, isto é, de dentro, no sentido de compreender como os sujeitos culturais se apropriam destas manifestações corporais. Sob a ótica interna deste evento, os autores propõem que o Fest Verão:

    seja mantido na cultura local por meio do fomento às práticas esportivas de praia, aproximando-se mais do sujeito local, de seu cotidiano, vivificando a relação entre criador e criatura. Dessa forma, experimentá-lo, vivenciá-lo e manifestá-lo torna-se urgente, não somente por meio da oferta de práticas de lazer informal, ocorridas diariamente em contexto social, mas salvaguardá-lo como conhecimento escolar, desenvolvido como conteúdo, dinamizado como prática cultural em um currículo que valorize a identidade dos sujeitos, sua história e memória e, na medida do possível, insira os alunos neste mesmo contexto identitário através de práticas recorrentes e conscientes. (Oliveira et al., 2019, p. 126)

    No momento em que a escola se distancia da realidade local, deixa de cientificar o conhecimento discente adquirido nas experiências do cotidiano. Neste caso, o aluno passa a legitimar como verdadeiro e ideal, o trabalho desenvolvido por colaboradores comunitários, intitulados como professores (pseudoprofessores). Ainda que em contexto de competição, esta realidade dá créditos aos estudos de Bettanim et al. (2017), onde afirmam que a função de treinador no Brasil ainda não é mérito da formação acadêmica de nível superior, mas da experiência neste ofício.

    

    Pessoas envolvidas de alguma forma com o esporte municipal, inclusive com o Fest Verão, a partir de associações, igrejas, ONG’s, clubes, organizam suas equipes e as inscrevem no evento. Assim que se forma o chaveamento dos jogos por sorteio, as lideranças das equipes tentam atualizar seus atletas quanto às regras da modalidade e, de alguma forma, na prática, realizam treinamentos para a competição, disputando o único espaço viável denominado de Campo do Centro. Muitas vezes, esta atualização se dá, inicialmente, por meio de contato com árbitros do evento ou pessoal da organização, ou ainda, entre os diferentes sujeitos da cultura local.

 

    Mas, será que tal experiência dá conta da imprevisibilidade presente nos jogos, da variabilidade psicológica e emocional de crianças em diferentes faixas etárias, da exigência de pais e pressão da torcida, dos processos fisiológicos envolvidos, das estratégias, técnicas e regras, sobretudo quando se trata do Fest Verão, que desde a Categoria de Base mais pueril, o nível competitivo é acirradíssimo?

 

    Não se quer com estes questionamentos e reflexões, consolidar a ideia de que tais colaboradores comunitários não devam mais participar como responsáveis na competição, nem mesmo, que as equipes só possam participar deste megaevento cultural com professores devidamente formados. A ideia aqui, é destacar o real papel da escola neste contexto, como instituição que deve se apropriar da realidade cultural e problematizar as questões que a envolve. Em uma visão mais ampla, é preciso pensar como Saviani (2006, p. 56): “É nisto que consiste a função política da escola: socializar o conhecimento sistematizado, tornando-se um instrumento às classes populares na aquisição de conhecimentos e habilidades para a luta contra as desigualdades e para a participação no processo de transformação social”.

 

    Segundo o professor J.M.S.A., que também é praticante do futebol de praia na categoria veterano, o esporte deveria ser difundido e valorizado por meio da escola e do poder público, dada a sua importância na cultura local.

    Este trabalho deve ser inserido nas escolas por meio de um currículo que contemple a realidade local, tendo nos esportes de praia, um caminho para criar a cultura do esporte sustentável em torno deste megaevento. Neste contexto, é preciso que o poder público municipal promova um desdobramento deste grandioso evento, promovendo não só escolinhas esportivas nas areias ou águas, mas que cative comportamentos sociais para prática de atividade física consciente, disseminando hábitos saudáveis para uma vida mais ativa. (Oliveira et al., 2019, p. 129)

    Ainda que se reconheça o Fest Verão e a escola local como reais objetos deste trabalho, principalmente no que se refere à cultura específica em que estão inseridos, é possível compreender que a ausência dos esportes de praia no currículo escolar ultrapassa as fronteiras da cidade aldeiense, uma vez que alguns dos alunos entrevistados são oriundos de pelo menos, dois municípios vizinhos. Em suas escolas, segundo os mesmos, também não há aulas relacionadas aos esportes de praia.

 

    Isto leva a crer que tal como ocorre em nível nacional, o discurso da aula esportivista tradicional que forjou o chamado quarteto fantástico (Darido, e Rangel, 2005; Milani, e Darido, 2016; Brandt et al., 2015) também está consolidado nas regiões praianas. Apesar de parecer precipitada tal afirmação devido ao baixo número de alunos entrevistados, deve-se lembrar de que a visão e experiência destes representam a totalidade do universo escolar. Logo, não se trata apenas de uma opinião, mas da constatação da realidade, da memória que o aluno possui de suas aulas.

 

    Retomando a fala dos alunos sobre o desejo de que as práticas corporais de praia devam ter vez na escola como conteúdos ressignificados, compreende-se que se trata do interesse em vivificar aquilo que de fato lhes pertence, que lhes é importante, que está no cotidiano de suas práticas, no habitus instituído (Bourdieu, 2004). Ao longo de 50 anos, geração após geração, a cultura aldeiense tem experimentado a prática do futebol de praia à conta-gotas, como uma produção cultural que influencia o habitus5 local (Oliveira, 2017) e aproxima os sujeitos envolvidos nesta infinita teia de relacionamentos. (Oliveira et al., 2019; Geertz, 2011; Daolio, 2005)

 

    A apropriação dos conhecimentos produzidos na e pela cultura local dá sentido às práticas escolares, sobretudo às aulas de Educação Física, quando esta assume o papel não só de vivificar a cultura por meio do movimento, mas quando reflete sobre este movimento e como ele ocorre na comunidade. Esta realidade vai de encontro àquilo que a BNCC denomina de protagonismo comunitário (Brasil, 2018), onde o aluno coloca em prática, na comunidade, os saberes aprendidos e acumulados por meio do ensino escolar.

 

    Por falar em protagonismo comunitário, o planejamento curricular da Educação Física Escolar aldeiense, a partir de 2019, introduziu em seu corpo textual, a valorização de atividades tipicamente praticadas na região praiana. Tal inserção ocorreu em resposta às exigências e sugestões indicadas na BNCC (Brasil, 2018). Isto por si só, não sugere a garantia de ruptura com as práticas hegemônicas, mas já é um grande passo dado na direção da valorização da cultura corporal de movimento estabelecida no contexto local.

 

Conclusões 

 

    O Fest Verão é, de fato, uma produção cultural que comemorou seu meio século de existência em 2019/2020, podendo ser considerado forte candidato à patrimônio imaterial da cidade aldeiense. No entanto, como toda produção cultural, ela deve ser vivificada pelas pessoas e, não há melhor lugar para dar vez às manifestações que a escola. Infelizmente, o que se percebe é que as práticas escolares ainda estão distantes de sua realidade local, desprovidas de sentido.

 

    Em se tratando de práticas culturais como a descrita neste estudo, é importante que a Educação Física Escolar dê voz ao habitus instituído, de maneira que os alunos inseridos na realidade praiana sejam verdadeiros protagonistas comunitários de suas ações. Para tanto, a escola precisa ser um local das expressões identitárias da comunidade.

 

    Certamente, o que mais se percebe na dinâmica desta cultura é a expressão deste evento histórico como linguagem própria da comunidade, porém, não como protagonismo comunitário – aquilo que o aluno aprende na escola e põe em prática, dando sentido às suas experiências. Isto porque anualmente, muitos destes alunos celebram esta grande festa de linguagem corporal própria sem qualquer intervenção do conhecimento escolar. O entendimento desta linguagem favorece o trabalho e a dinâmica de projetos de iniciativa pública (e privada) e educacional, que possam dar sentido ao que é feito continuamente pelos sujeitos locais, valorizando, de fato, a realidade em que vivem.

 

    Neste sentido, sugere-se que tais esportes de praia, sobretudo aqueles que estão na dinâmica do Fest Verão enquanto manifestação cultural local, alcancem o espaço escolar, valorizando as experiências comunitárias e garantindo a perpetuação destas linguagens advindas das massas. Ainda nesta linha, considerando o Brasil um país de vasto litoral, onde se encontram as cidades mais populosas do país, sugere-se que os jogos e esportes praianos façam parte da dinâmica escolar, não meramente como memória e tradição, mas como apropriação do conhecimento no sentido de conservação do ambiente natural e geração de novas formas de aprendizado e práticas docentes mais significativas.

 

Notas 

  1. Fest Verão: trata-se de um grande evento com modalidades de praia que surgiu na cidade em 1969/1970 com o nome de Jogos de Verão, tornando-se uma prática contínua desde então. Por isso, com meio século de existência, é o maior e mais longo evento de praia do Estado do RJ e, atualmente, tem atraído a atenção de atletas nacionais e internacionais.

  2. Fest Verão – 2020: O evento foi interrompido nas quartas de final devido ao surgimento da Pandemia do Sars-Cov-2. Este evento tem início, oficialmente, no mês de janeiro/fevereiro e vai até abril. Pretendia-se retomar às fases restantes ainda em 2021, mas devido a protocolos de saúde, não foi possível. Então, a organização do evento deu por encerrada a o Fest Verão – 2020, premiando as equipes de base por índice técnico (melhores resultados).

  3. Habilidades: No que se refere à Base Nacional Comum Curricular na área de Educação Física, a mesma foi apresentada e organizada em seis áreas temáticas, objetos de conhecimento e habilidades. Estas habilidades poderiam ser acrescentadas pelos Estados e municípios de acordo com as suas peculiaridades socioculturais.

  4. Praia do Centro: área de lazer de grande balneabilidade turística, localizada na entrada da cidade de São Pedro da Aldeia-RJ, banhada pela Lagoa de Araruama.

  5. Teoria do habitus: Segundo Bourdieu, e Passeron (1975), o conceito de habitus refere-se ao sistema de disposições duráveis inculcados historicamente no indivíduo, como produto da interiorização dos princípios de um arbitrário cultural, que orienta as práticas individuais e coletivas enquanto esquemas de pensamento, de percepção, de apreciação e de ação.

 

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