Megaeventos esportivos e filosofia: análise dos desalojamentos
na Copa do Mundo 2014 e Jogos Olímpicos 2016
Sports mega events and philosophy: analysis of
evictions in the 2014 World Cup and 2016 Olympic Games
Megaeventos deportivos y filosofía: análisis de los desalojos
en la Copa del Mundo 2014 y en los Juegos Olímpicos 2016
Juliano Oliveira Pizarro*
jopizarro@hotmail.com
Carmen Silvia de Moraes Rial**
rial@cfh.ufsc.br
Luiz Carlos Rigo***
rigoluizcarlos@gmail.com
*Doutorando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar
em Ciências Humanas. Universidade Federal de Santa Catarina
**Professora do Departamento de Antropologia e do Programa
de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas
Universidade Federal de Santa Catarina
***Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Física
Universidade Federal de Pelotas
(Brasil)
Recepção: 09/03/2018 - Aceitação: 29/09/2018
1ª Revisão: 26/08/2018 - 2ª Revisão: 28/09/2018
Resumo
Tendo os megaeventos esportivos na atualidade uma grande importância no cenário político internacional, o presente trabalho visa analisar os impactos sociais que as obras de um megaevento possuem, focando na questão dos desalojamentos forçados de cidadãos pelo governo brasileiro na Copa do Mundo de 2014 e nos Jogos Olímpicos Rio 2016. Busca-se entender os motivos pelos quais o governo muitas vezes fere o direito de moradia adequada de pessoas de seu próprio país no intuito de visibilidade política no cenário internacional, fazendo uma analogia com a ausência de moralidade que o príncipe deve ter no pensamento de Maquiavel.
Unitermos: Megaeventos esportivos. Filosofia. Desalojamentos. Copa do Mundo 2014. Rio 2016.
Abstract
With sports mega events nowadays having a great importance in the international political scene, the present research aims to analyze the social impacts that the constructions for a mega event have, focusing on the issue of forced evictions of citizens by the Brazilian government in the 2014 World Cup and the Rio 2016 Olympic Games. It seeks to understand the reasons why the government often hurts the right of adequate housing of people of their own country with the aim of political visibility on the international scene, making an analogy with the absence of morality that the prince should have in Machiavelli's thought.
Keywords: Mega events. Philosophy. Evictions. World Cup 2014. Rio 2016.
Resumen
Teniendo los megaeventos deportivos en la actualidad una gran importancia en el escenario político internacional, el presente trabajo busca analizar los impactos sociales que las obras de un megaevento poseen, enfocándose en la cuestión de los desalojos forzados de ciudadanos por el gobierno brasileño en la Copa del Mundo de 2014 y en los Juegos Olímpicos Río 2016. Se busca entender los motivos por los que el gobierno a menudo vulnera el derecho de vivienda adecuada de personas de su propio país con el propósito de tener visibilidad política en el escenario internacional, haciendo una analogía con la ausencia de moralidad que un príncipe debe tener según el pensamiento de Maquiavelo.
Palabras clave: Megaeventos deportivos. Filosofía. Desalojos. Copa del Mundo 2014. Río 2016.
Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 23, Núm. 244, Sep. (2018)
Introdução
Através de um breve diálogo sobre a temática das relações internacionais, passando pelo pensamento de Hobbes e seu estado de natureza, assim como pela teoria dos cosmopolitismos, o presente trabalho visa entender a moralidade no pensamento de Maquiavel nos desalojamentos para as obras dos megaeventos que ocorreram no Brasil, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos Rio 2016. Para o autor, que tem como “O Príncipe” uma de suas maiores obras, a questão da carência de moralidade que o príncipe deve ter em suas ações para sua manutenção no poder é recorrente.
O príncipe deve ter a virtú para alcançar a fortuna, devendo fazer o que é necessário para conquistar seus objetivos. Ainda mais nesse cenário internacional, considerado por muitos como um estado de natureza hobbesiano, o príncipe deve estar sempre atento e deixar a moralidade de lado para fazer o que deve ser feito, de acordo com seus interesses.
Tendo os megaeventos esportivos na atualidade uma grande importância no cenário político internacional, o presente trabalho visa analisar os impactos sociais que as obras de um megaevento possuem, focando na questão dos desalojamentos forçados de cidadãos pelo governo. Busca-se entender os motivos pelos quais o governo muitas vezes fere o direito de moradia adequada de pessoas de seu próprio país no intuito de visibilidade política no cenário internacional, fazendo uma analogia com a ausência de moralidade que o príncipe deve ter no pensamento de Maquiavel.
Justificativa
A justificativa para o presente trabalho é a importância internacional da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016 em face aos problemas sociais. O trabalho visa discorrer sobre alguns motivos das decisões políticas tomadas na atualidade. Através de um breve entendimento das relações internacionais e políticas, juntamente com o fato da necessidade de uma carência de moralidade exigida para um governante, sendo considerada como algo positivo para certos pensadores, deve-se fazer uma leitura crítica de fatos atuais.
O Brasil é um país que tem aparecido constantemente no cenário internacional. Seja por suas riquezas naturais, seja por sua economia, seja por problemas que possui. Ocorre que, principalmente, o Brasil foi visto como a sede de grandes eventos esportivos mundiais. Os chamados megaeventos ocorreram no Brasil em 2014 com a Copa do Mundo FIFA de Futebol e em 2016 com os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro.
Ao longo do último século, diversos países sediaram esses grandes eventos. É uma grande oportunidade para a política externa, pois serve como uma “propaganda” do país no cenário internacional, de mostrar a grandeza de seu poder, sua organização, sua estrutura para sediar um evento de grande porte, que tem consequências econômicas com incremento do turismo e com a possibilidade de trocas comerciais.
Os megaeventos são grandes negócios, autores enxergam a “indústria olímpica” como a neoliberalização dos jogos (Horne; Whannel, 2012). Porém, a maioria dos argumentos a favor da comercialização dos megaeventos citam os legados que permanecerão em virtude da realização do evento. No que tange a política e as relações internacionais, tais temas oferecem uma grande área de trabalho e pesquisas que devem ser desenvolvidas, com as quais deve-se ganhar uma compreensão mais clara de como o Estado interage com o esporte (Grix, 2013).
No entanto, existe também um outro lado dos megaeventos que nem sempre ganha destaque nas grandes mídias. Nem sempre o país tem a estrutura ou organização necessária para que consiga sediar um megaevento sem sanar seus problemas internos. Além do conflito de interesse entre órgãos do governo federal, estadual e municipal, existem também interesses da iniciativa privada em jogo. E, além disso, as entidades organizadoras dos eventos (FIFA no caso da Copa do Mundo e Comitê Olímpico Internacional no caso dos Jogos Olímpicos) são entidades não governamentais, com grande atuação política no cenário internacional e exigem eficiência do país sede nas obras, as quais têm muitas vezes consequências graves.
O caso mais emblemático é dos desalojamentos forçados de pessoas de suas residências em virtude das obras dos megaeventos. Em matéria veiculada em 2013, constatou-se que:
Um mapeamento divulgado na Suíça pela Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop) em parceria com a ONG Conectas no final de maio calcula que 250 mil pessoas correm o risco de serem despejadas de suas casas por causa de obras para os preparativos da Copa em todo o Brasil. A articulação reúne comitês nas 12 cidades-sede da Copa, que por sua vez agregam movimentos sociais, universidades e entidades de sociedade civil que lutam contra as violação de direitos humanos decorrentes da realização da Copa e da Olimpíada do Rio de Janeiro, em 2016. Não existe uma estimativa oficial sobre o número de despejados por causa do mundial. Uma estimativa anterior contabilizava 170 mil pessoas que corriam o risco de ter de deixar suas casas.
Através dos dados disponibilizados pelo governo brasileiro, a estimativa é de 35.653 pessoas foram atingidas por deslocamentos (Carvalho, 2014) no que tange as obras para a Copa do Mundo de 2014 no Brasil. A relatora da ONU sobre moradia adequada, em questões exatamente que tangem os desalojamentos forçados de cidadãos e o direito à moradia, questiona os dados e diz que o próprio governo teve enorme dificuldade de “descobrir” quantos foram os removidos por obras relacionadas à Copa, e que isso demonstra a forma como são tratadas as remoções relacionadas a obras públicas no Brasil: um assunto irrelevante, não “contabilizado”, atravessado por obscuridades e violência. Ela ainda afirma que o destino das pessoas removidas é tão ou mais importante do que os aeroportos e vias que as deslocaram. E sobretudo, é assunto de Estado. Este balanço, portanto, deveria ter sido feito antes mesmo de as obras serem iniciadas (Rolnik, 2014).
Nesse tipo de situação o mais comum acontecer é a falta de transparência e diálogo com os moradores que foram afetados em processos de desalojamentos. É a falta de democracia em determinadas atitudes do governo que geram instabilidade para moradores de áreas afetadas nas obras para os megaeventos. Em relação ao caso dos megaeventos no Brasil:
Eu reconheço que os megaeventos esportivos podem ser uma oportunidade para melhorar o acesso à moradia adequada, por exemplo, através da melhoria de sistemas de transporte e melhorias ambientais nas cidades-sede. No entanto, a experiência passada mostrou que esses eventos resultam muitas vezes em remoções forçadas, despejos, operações de ‘limpeza’ contra a população sem-teto e um aumento geral dos preços da habitação. (...) A situação, infelizmente, não é diferente no Brasil atualmente (Rolnik, 2013).
No relatório feito por ela para a ONU pode-se notar os impactos das obras dos megaeventos. Muitas dessas famílias foram alojadas em outros locais, no entanto, muitas dessas famílias são de posseiros, não possuindo título aquisitivo das propriedades, sendo essas apenas desalojadas.
A história da Vila Autódromo simboliza todo um legado de remoções e desapropriações deixado pela organização dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Apenas entre 2009 e 2013, 20.299 famílias (cerca de 67.000 pessoas) foram removidas - e indenizadas ou reassentadas - de suas casas pela Prefeitura devido as recentes intervenções urbanas ou ao argumento de que moram em zonas de risco, segundo os dados da Secretaria Municipal de Habitação (SMH) apresentados no livro SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro Olímpico, do arquiteto e pesquisador da UFRJ Lucas Faulhaber e da jornalista Lena Azevedo. Outras milhares - não se sabe o número exato - foram desapropriadas por decreto (quando a família possui a propriedade legal do imóvel).
Muitas dessas famílias removidas se sentem enganadas. Moradores foram retirados da Vila Autódromo e realocadas em conjuntos habitacionais, contudo, relatam diversos problemas:
O sentimento geral de quem mora no Parque Carioca, complexo localizado na zona oeste da cidade, é de que eles foram enganados. A maioria dos moradores do bloco 3 foram os primeiros a sair e quem mais perdeu na Vila Autódromo, favela que ficava ao lado do atual Parque Olímpico. A prefeitura demoliu o local, alegando precisar do terreno para a competição. A comunidade de 3.000 habitantes, com barracões e várias casas diante da lagoa de Jacarepaguá, ficou famosa pela resistência que resultou em 20 vizinhos conquistando o direito de se manterem no local. O bairro da Barra da Tijuca está em franco desenvolvimento e o metro quadrado na região chega a valer 3.000 dólares, contrastando com a simplicidade da Vila. No entanto, 200 famílias foram esquecidas. Iran Oliveira, taxista de 41 anos, chegou à Vila Autódromo quando recém tinha conquistado à maioridade e faz parte desse grupo. Sem escolhas Iran mostra seu apartamento no Parque Carioca: as rachaduras atravessam a cozinha, várias paredes sofrem com mofo, uma porta está solta no corredor e quase todos azulejos do banheiro caíram. "Não tivemos muita escolha porque a prefeitura chegou com a equipe dela lá fazendo bastante pressão, até ameaçando que se a gente não saísse do apartamento poderiam derrubar com a gente dentro, sem direito a nada", lamentou Ivan, que é pai de quatro filos (Rêgo, 2017).
Há uma estimativa de que o Rio deslocou 22,1 mil famílias (com 3,5 pessoas cada uma em média) em 2015, 20,2 mil famílias em 2014, 19,2 mil famílias em 2013 e mais de 10 mil antes delas (Faulhaber; Azevedo, 2015). Os dados vão ao encontro do Dossiê do Comitê Popular da Copa e Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro que se chama "Olimpíada Rio 2016, os jogos da exclusão", que afirma que 22.059 famílias foram removidas na Cidade do Rio de Janeiro (Mantelli et al., 2015).
O guia “Violações de Direito na Cidade Olímpica” traz que:
Desde a preparação para os Jogos Panamericanos (2007), foi dado início ao maior processo de remoções da história do Rio de Janeiro. Em 2009, quando a cidade foi anunciada como sede dos Jogos Olímpicos, o processo se intensificou. Apenas entre 2009 e 2015, 77.206 pessoas foram removidas de suas casas pela Prefeitura, segundo os dados da própria administração pública. As remoções seguem um padrão claro de expulsão de negros e pobres de áreas que passam por grandes valorizações imobiliárias e também estão incluídas nos projetos dos megaeventos. No livro “SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro Olímpico” (Mórula Editorial), o arquiteto e pesquisador da UFRJ Lucas Faulhaber e a jornalista e pesquisadora da Justiça Global Lena Azevedo mostram em mapa como as remoções levaram moradores de áreas com melhor infraestrutura e mais valorizadas para regiões periféricas. Para completar o cenário, foram milhares de casas destruídas em uma cidade que tem um déficit habitacional de 220.774 unidades, segundo dados da Fundação João Pinheiro (Fichino; Marinho; Campagnani, 2016).
É o momento em que a lei, através das desigualdades do sistema, é usada contra o cidadão. Contudo, constata-se que são apenas “pequenos” problemas do Estado para resolver em meio a um megaevento, o qual é de extrema importância econômica e política para o país no contexto internacional e que, logo após os jogos, o assunto dos desalojamentos foi esquecido pela mídia.
Metodologia
A metodologia utilizada no presente trabalho foi revisão bibliográfica de abordagem qualitativa. Teve-se como critérios a utilização de literatura clássica, artigos, estudos e noticiários publicados com a problemática dos desalojamentos para as obras dos megaeventos esportivos que ocorreram no Brasil nos últimos anos, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.
Resultados e discussões
Relações internacionais e o estado de natureza hobbesiano
Em um mundo globalizado, onde o neoliberalismo ganha cada vez mais poder, se tem ainda a soberania do Estado como o principal instrumento de estrutura e ordem. É reconhecida e legitimada em uma conotação política e jurídica pelos próprios cidadãos. Traz uma questão de homogeneidade étnica e cultural de determinado grupo de pessoas, tendo como base a ideia de Estado moderno.
Com a noção de Estado, surge o contexto das relações internacionais. Visam ao estudo sistemático das relações políticas, econômicas e sociais entre diferentes países cujos reflexos transcendam as fronteiras de um Estado, tendo como foco o sistema internacional. John Rawls, em sua obra “O Direito dos Povos” traça alguns princípios gerais na tentativa de regulamentar essas relações internacionais. O filósofo chama de “Sociedade dos Povos” a relação entre povos e Estados que respeitam e participam como conduta o Direito dos Povos, visando, sobretudo, a defesa aos direitos humanos (Rawls, 2004).
Contudo, existem muitos atores no campo das relações internacionais, como os Estados, empresas transnacionais, organizações internacionais e organizações não governamentais. Em razão disso, John Rawls apresenta uma visão original dessa lógica das relações internacionais, trazendo a figura dos povos (não os Estados) como elemento essencial, devendo ser considerados na avaliação de uma proposta de justiça global.
Porém, uma proposta alternativa a esta, chamada de cosmopolitismo, apresenta a ideia de que o elemento fundamental da ordem internacional deve ser a pessoa humana, o cidadão, desprezando as fronteiras geográficas impostas pela sociedade. Nesse sentido, enxerga os homens como formadores de uma única nação, avaliando o mundo como uma pátria.
Um dos principais pensadores do cosmopolitismo é Kant. Apesar de reconhecer que há um conflito permanente entre as disposições humanas e aquelas impostas pela natureza, o filósofo acredita que a proposta de um Direito cosmopolita fornece subsídios capazes de regulamentar os problemas que afetam o planeta (abuso aos direitos humanos, imigração ilegal, etc.).
O pensamento kantiano diz que para que haja um efetivo estado de paz, deve se estabelecer uma relação de confiança entre os Estados, que deve ser observada até mesmo em tempos de guerra. E isso só será garantido com a aceitação de normas que direcionariam para a paz, em um tratado metafórico de paz perpétua, através de um princípio para regular a humanidade, onde se substitua a moral do combate (Kant, 2009).
Esse pensamento de Kant em relação à paz perpétua é a tentativa de se contrapor ao estado de natureza hobbesiano. Para Thomas Hobbes, o "estado de natureza", ou também chamado de “estado natural”, é qualquer situação em que não há um governo que estabeleça a ordem. O "estado de natureza" é sempre um estado de guerra, de alerta, que mesmo que não esteja ocorrendo, pode ocorrer a qualquer momento e sem causa aparente.
Dado que a condição do homem é uma condição de guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um governado por sua própria razão, não havendo nada de que possa lançar mão, que não possa lhe servir de ajuda para a preservação de sua vida contra seus inimigos, segue-se que em tal condição todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros. Ora, enquanto perdurar esse direito não poderá haver para nenhum homem – por mais forte e sábio que seja – a segurança de viver todo o tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver. (...) todo homem deve se esforçar pela paz na medida em que tenha esperança de consegui-la. Se não conseguir, pode procurar e usar toda a ajuda e vantagem da guerra (Hobbes, 2006).
John Locke, que sucede Hobbes, afirma que os homens não vivem necessariamente em conflito no "estado de natureza". Para o filósofo, os homens sempre viveram em sociedade, usando o exemplo dos indígenas, que são sociedades em estado de natureza e vivem harmoniosamente. E devido à evolução das sociedades que surgiu um estágio que Locke chama de "estado de guerra", a partir do surgimento do dinheiro e da competitividade. E assim, a construção da figura do Estado torna-se necessária para sair desse estágio (Locke, 2006).
Contudo, após o surgimento do Estado moderno e do surgimento das chamadas relações internacionais, ainda não há efetivamente nenhum organismo supra estatal acima da figura do Estado com poder sancionador. Apesar de vários atores no cenário das relações internacionais, da tentativa que se tem até hoje de se criar uma “governança global”, do surgimento de organizações internacionais para esse fim e da criação do próprio Direito Internacional, ainda alguns autores trabalham com a ideia de que há um “estado de natureza hobbesiano” no contexto das relações internacionais.
Maquiavel e a noção de (i)moralidade
Nicolau Maquiavel tinha um pensamento semelhante ao de Thomas Hobbes no que tange a maldade da natureza humana. Maquiavel não conseguiu ter um diálogo diretamente com Hobbes. Contudo, pode-se analisar suas obras e seus pensamentos, atentando para o momento e realidade vivida por cada um.
Maquiavel tinha como um de seus maiores objetivos a unificação da Itália, pois vivia em um tempo de diversas guerras e, em meio a sua grande obra “O Príncipe” entendia que um povo só poderia ser feliz e próspero se estivesse unido. Mas principalmente defendia uma Itália unificada para a própria defesa da nação contra outras grandes potências europeias, ou seja, antes mesmo do termo “estado de natureza” que viria a surgir com Hobbes cerca de um século depois, Maquiavel já se atentava para os perigos da guerra no cenário internacional.
Tanto Maquiavel como Hobbes defenderam, de maneiras distintas, um Estado forte. Em uma das maiores obras da ciência política, "O Príncipe", oferece um manual para a atuação política de um governante, ensinando como é possível conquistar, exercer e manter o poder. Na obra, afirma que o príncipe deve fazer tudo que for necessário para sua manutenção no poder (Maquiavel, 1972).
Nicolau Maquiavel afirma que a moral e a justiça resultam em obediência às condições e exigências do Estado. Ambos são subprodutos sociais, que visam a conservação e a manutenção da ordem social. O fundamento do pensamento de Maquiavel nesse sentido consistia em:
As normas éticas, como também as leis positivas, a educação e a religião, são meios a que recorre o Estado para instaurar coercitivamente bons costumes na sociedade, para dirigir no sentido do bem comum o egoísmo individual ou para dar forma de moralidade e justiça à fundamental amoralidade da maioria (Amaral, 2012).
Para um melhor entendimento, debe-se observar a diferença entre "ação virtuosa" e "ação moral" para Maquiavel. A “virtú” consiste em saber aproveitar a ocasião proporcionada pela "fortuna" (na sua concepção maquiaveliana), avaliando a situação e as possibilidades de ação, para, a seguir, escolher os meios mais adequados para transformar em realidade sua decisão.
O conceito maquiaveliano de virtú prescinde, de modo absoluto, de qualquer critério moral de avaliação do comportamento humano. O que importa para ele é observar se determinada ação era adequada à situação dada e se ela alcançou a finalidade desejada. Em última instância, a virtú pode ser considerada como a capacidade pessoal de afirmar nossa liberdade frente à fortuna, frente ao destino (Amaral, 2012).
Em virtude da não aceitação da moral cristã da época, a concepção de moralidade de Maquiavel não admite a existência de um “bem” ou um “mal”, mas sim a existência de atos bons ou maus conforme observem ou não o bem da coletividade. Em razão disso, a moral é integralmente absorvida pela política.
Conclusões
Diante do exposto na justificativa do trabalho, em diversas situações fica claro a falta de preocupação do governo para com os seus cidadãos. Seja em diversas áreas, como na saúde, na educação, no transporte público... O direito adequado a moradia muitas vezes acaba sendo mais um descaso do poder público. Contudo, para o governo e a mídia, são “pequenas” situações que devem ser resolvidos sem o conhecimento da esfera pública, haja visto, sob suas óticas, a importância dos megaeventos para a imagem do Brasil no exterior.
A perspectiva da “Microfísica do Poder” traz a ideia de como os mecanismos de poder são exercidos fora, abaixo e ao lado do aparelho do Estado. Além disso, trouxe a questão das relações de poder e saber na sociedade, e na criação de “verdades” e seus interesses econômicos e políticos por trás das mesmas (Foucault, 1979).
A ideia que a grande mídia e o Estado trazem sobre os megaeventos e o fato do Brasil sediá-los é altamente positiva. O mainstream foca o acontecimento de um megaevento como sendo algo histórico, trazendo as questões positivas nos aspectos econômicos e políticos sobre o mesmo, principalmente sob o ponto de vista internacional, assim como o legado que ficou para o país sede posteriormente ao acontecimento dos jogos.
Porém deve-se atentar para o outro lado dos megaeventos, principalmente no que tange ao desrespeito aos direitos humanos, como no caso dos desalojamentos forçados, tendo em vista a prioridade do Estado na execução conforme o padrão exigido pelas entidades organizadoras dos megaeventos. O quadro publicado pelo governo estima que 35.653 pessoas foram atingidas por deslocamentos, forçados ou não, em virtude das obras da Copa do Mundo de 2014, assunto esquecido por grande parte da mídia.
A partir disso, pode-se tentar entender os motivos que levam o Estado a agir de determinada forma contra o interesse de sua própria população. A carência de moralidade que Maquiavel falava no século XVI está presente nos dias de hoje, onde o Estado age como o príncipe deveria agir na perspectiva maquiaveliana, atentando contra os direitos humanos dos seus cidadãos para atingir seus objetivos políticos e econômicos no cenário internacional.
Referências
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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 23, Núm. 244, Sep. (2018)