Lecturas: Educación Física y Deportes | http://www.efdeportes.com

ISSN 1514-3465

 

A dimensão da técnica no processo de ensino do balé clássico

The Technique Aspect in the Classical Ballet Teaching Process

La dimensión de la técnica en el proceso de enseñanza del ballet clásico

 

Leticia Junqueira da Silva Gaspar*

leticia.gaspar@unifesp.br
Rogério Cruz de Oliveira**

rogerio.cruz@unifesp.br

 

*Mestranda no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar

em Ciências da Saúde e Graduada em Educação Física

pela Universidade Federal de São Paulo - Campus Baixada Santista

Membro Estudante do Grupo de Estudo

e Pesquisa Sociocultural em Educação Física
**Doutor em Educação Física. Professor Associado

da Universidade Federal de São Paulo - Campus Baixada Santista

Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências da Saúde

Departamento de Ciências do Movimento Humano

Curso de Educação Física. Líder do Grupo de Estudo

e Pesquisa Sociocultural em Educação Física

(Brasil)

 

Recepção: 11/12/2020 - Aceitação: 04/05/2021

1ª Revisão: 20/01/2021 - 2ª Revisão: 30/03/2021

 

Level A conformance,
            W3C WAI Web Content Accessibility Guidelines 2.0
Documento acessível. Lei N° 26.653. WCAG 2.0

 

Creative Commons

Este trabalho está sob uma licença Creative Commons

Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0)

https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/deed.pt

Citação sugerida: Silva Gaspar, L.J. da S., e Oliveira, R.C. de (2021). A dimensão da técnica no processo de ensino do balé clássico. Lecturas: Educación Física y Deportes, 26(278), 58-71. https://doi.org/10.46642/efd.v26i278.2744

 

Resumo

    O estudo objetivou a análise da compreensão de professores de Balé Clássico sobre a dimensão da técnica nos processos de ensino do balé. Para isso, desenvolveu-se uma pesquisa descritiva de abordagem qualitativa, na qual participaram 5 professores de Balé Clássico. Como instrumento de coleta de dados foi utilizada a entrevista semiestruturada e a análise de dados se deu por categorias não apriorísticas. Através disso, identificaram-se conceitos sobre a técnica e o ensino, sendo caracterizados por serem aliados do Balé Clássico para melhor desenvolvimento dos bailarinos. Dessa maneira, a técnica é expressa como elemento essencial no contexto de alta exigência da modalidade.

    Unitermos: Educação. Técnica corporal. Dança. Balé clássico.

 

Abstract

    The study aimed to analyze the Classical Ballet teachers cognition about the significance of technique on Ballet teaching process. For this purpose, was developed a descriptive research of qualitative approach in which 9 Classical Ballet teachers were recruited. As an instrument of data collection, a semi-structured interview was used and the data analysis was done by non aprioristic categories. Thereby, concepts have been identified on the technique and teaching – and was characterized by being allies through the Classical Ballet for better development of the dancers. Thus, the technique is expressed as an essential element related to the context of high demand of modality.

    Keywords: Education. Body technique. Dance. Classic ballet.

 

Resumen

    El estudio tuvo como objetivo analizar la comprensión de los profesores de Ballet Clásico sobre la dimensión de la técnica en los procesos de enseñanza del ballet. Para ello, se desarrolló una investigación descriptiva con enfoque cualitativo, en la que participaron 5 profesores de Ballet Clásico. Como instrumento de recolección de datos se utilizaron entrevistas semiestructuradas y el análisis de los datos se realizó por categorías no apriorísticas. A través de este se identificaron conceptos sobre técnica y enseñanza, caracterizándose por ser aliados del Ballet Clásico para un mejor desarrollo de los bailarines. De esta forma, la técnica se expresa como un elemento esencial en el contexto de altas exigencias para el deporte.

    Palabras clave: Educación. Técnica corporal. Baile. Ballet clásico.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 26, Núm. 278, Jul. (2021)


 

Introdução 

 

    De acordo com Garaudy (1980), a dança pode ser compreendida como a vivência e a expressão, com o máximo de intensidade, da relação do ser humano com a natureza, com o futuro e com seus deuses. A amplitude desse conceito nos permite compreender a dança como forma de expressão corporal, portanto, dentro do universo da Educação Física, a qual estuda/aborda o jogo, a ginástica, a luta, o esporte e a dança. (Daolio, 1995)

 

    No que tange à dança, esta utiliza do corpo para aprendizagem de diversos movimentos, que, unidos em uma cadeia revelam uma fala, ou seja, expressam algo sem utilizar as palavras verbalizadas (Bastos, 2014). Os ritmos e músicas participam junto ao corpo como um conjunto que compõe a expressão (Fernandes, 2001). Também são utilizados diversos tipos de técnicas que têm a função de delinear as diversas ramificações e estilos que são parte de um todo que é a dança. (Geraldi, 2007)

 

    Nesse universo podemos encontrar o balé clássico, que, por sua vez, pode ser compreendido como uma expressão corporal que utiliza de técnicas definidas para contar histórias através de coreografias. Além disso, apresenta minuciosidades que o faz ainda se subdividir, sendo essa divisão as diversas técnicas que desenvolvem movimentações distintas, apesar de utilizarem dos mesmos ritmos, passos básicos e posições de pés. (Amaral, 2009)

 

    Atualmente, existem várias técnicas utilizadas nos diversos métodos de balé clássico, como Vaganova, Cecchetti, Royal Academy of Dance, Cubano, dentre outros (Castro, 2013). Dentre essa variedade de opções de métodos podem ser presentes diversas definições de técnicas que habitualmente são transmitidas do professor ao aluno.

 

    Frente ao exposto, é possível afirmar que o balé se desenvolve a partir de diferentes escolas e que a técnica é elemento central da prática, sendo necessário, portanto, o seu estudo por diversas óticas, no caso dessa pesquisa, a de seu processo de ensino.

 

    Assim, partindo da concepção de técnica presente em Mauss (2003), que consiste na forma como os seres humanos sabem servir-se de seus corpos, o objetivo do estudo consiste em analisar a compreensão de professores de Balé Clássico sobre a dimensão da técnica nos processos de ensino do balé.

 

Método 

 

    Trata-se de uma pesquisa descritiva com abordagem qualitativa. Para Gil (2002), a pesquisa descritiva tem como objetivo o estabelecimento de relação entre variáveis ou a descrição de características de uma população ou fenômeno. Dessa maneira, nesse estudo, pormenorizamos a concepção da técnica e seus aspectos correlacionados no contexto de ensino do Balé Clássico. O estudo foi submetido e aprovado por um Comitê de Ética e Pesquisa (CAAE 77099717.0.0000.5505) e todos os voluntários assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

    Participaram do estudo 5 professores de bale clássico, de ambos os sexos, com faixa etária entre 22 e 46 anos. Como critério de inclusão, tornava-se necessário que os voluntários fossem professores e atuassem em escolas de Balé Clássico há, no mínimo, 1 (um) ano (Quadro 1).

 

Quadro 1. Perfil dos professores

Pseudônimo

Idade

Formação

Experiência como professor (a)

Paula

46

Teatro Municipal de Santos

31 anos

Fernanda

32

Teatro Municipal de Santos

15 anos

Joana

36

Teatro Municipal de Santos

21 anos

Giovana

24

Balé Jovem de São Vicente

6 anos

Joaquim

22

Balé Jovem de São Vicente

1 ano

Fonte: Dados da pesquisa

 

    Como instrumento de coleta de dados foi utilizado uma entrevista semiestruturada. Para Triviños (2008), a entrevista semiestruturada é um dos principais meios de coleta de dados em pesquisa qualitativa, a qual parte de certos questionamentos básicos que interessam à pesquisa. O roteiro de entrevista abordou a concepção de técnica, o papel da técnica no processo de ensino do balé clássico e a relação entre a experiência prévia do aluno e o aprendizado da técnica na modalidade.

 

    A análise de dados se deu por categorias não apriorísticas, que, para Campos (2004), emerge totalmente do contexto das respostas.

 

Resultados 

 

    No que se refere à concepção de técnica, obtivemos duas categorias de análise, a saber:

  • Fazer correto (3 voluntários);

  • Fazer o que aprendeu e/ou consegue (2 voluntários).

    Em relação à primeira categoria, 3 voluntários apresentaram uma concepção de que a técnica é um modelo de gesto perfeito em que os alunos devem se espelhar para aprender, de modo que o movimento idêntico ao modelo seria considerado como a melhor expressão técnica do indivíduo. Aquele que domina a técnica fará o movimento perfeitamente como proposto:

    “[...] é impor o que é certo e errado e a maneira de como fazer”. (Giovana)

 

    “[...] uma regra. Um caminho”. (Paula)

 

    “[...] a técnica é a parte mecânica. É a parte que você trabalha e que você constrói para você poder ter esse prazer de dançar. Só a partir do momento que você consegue dominar a parte técnica que você consegue colocar para fora a sua expressão, seu sentimento...”. (Fernanda)

    Já a categoria “Fazer o que aprendeu e/ou consegue”, 2 voluntários entenderam a técnica consiste em conseguir executar o que assimilou das informações passadas pelo professor, não exigindo do aluno um nivelamento com o que se entende por ideal e impecável, pois cada um tem suas restrições de modo que compreende e coloca em prática de maneiras diferentes.

    “Acho que é assim: não a perfeição, mas como executar o passo”. (Joaquim)

 

    “Como o bailarino consegue colocar, passar para o corpo [...]. É a forma com que a pessoa consegue executar dentro das suas limitações físicas [...]”. (Joana)

    Em relação ao papel da técnica no processo de ensino do Balé Clássico obtivemos 6 categorias de análise, quais são:

  • Base de tudo (3 voluntários);

  • Caminho para realização dos movimentos (2 voluntários);

  • Ajuste para o correto (3 voluntários);

  • Construção do bailarino (2 voluntários);

  • Evitar lesões (2 voluntários);

  • Consciência corporal (1 voluntário).

    A categoria “Base de tudo” foi expressa por 3 voluntários e já era esperada, salientando que como presente no discurso dos professores, é difícil desassociar o fazer correto do ensino do Balé Clássico. Sendo assim, a mesma está presente em todo o desenvolvimento do aluno e do profissional.

    “[...] é uma coisa que eu acredito que você tem que ter. Se você não tiver, não vai conseguir realizar”. (Paula)

 

    “[...] na verdade, deveria ser a primeira coisa [...]”. (Joana)

 

    “Eu acho que a emoção só começa a aparecer a partir desse domínio técnico [...]”. (Fernanda)

    Já em relação à segunda categoria (“Caminho para realização dos movimentos”), 2 voluntários se pronunciaram na direção de que a técnica proporciona aos praticantes do Balé Clássico uma direção para se ter conhecimento do processo de progressão e desenvolvimento de cada indivíduo a fim de que obtenha o pleno desempenho dentro de suas limitações.

    “[...] é fundamental [...] que o professor [...] consiga passar para o aluno a forma como ele deve fazer”. (Joana)

 

    “É super importante, porque se não, a pessoa não tem como fazer. Não tem um caminho. Então a técnica é o caminho pra você realizar aquilo”. (Paula)

    A respeito da categoria “Ajuste para o correto”, 2 voluntários apontam que um movimento é considerado correto e apropriado para o balé desde que seja equiparado aos parâmetros tradicionais desse tipo de dança. Portanto, aliada ao trabalho do professor, teoricamente o modelo técnico leva os praticantes a alcançarem o máximo de destreza para a dança.

    “[...] e mostrar como é o correto”. (Joaquim)

 

    “[...] acho que é trazer a limpeza e a clareza dos movimentos [...]”. (Giovana)

 

    “A partir do momento que você aprende a executar corretamente o movimento, até esteticamente fica mais bonito [...]”. (Fernanda)

    Na categoria “Construção do bailarino”, 2 voluntários indicaram que, com o passar do tempo, prática e treinos, se atinge o auge de possibilidades de movimentos aprimorados e bem executados, sendo essa a construção do bailarino a qual os professores se referem como mais um dos papéis da técnica.

    “[...] o papel fundamental acho que é esse: conseguir instruir o bailarino para que, dentro do corpo dele, ele consiga executar o movimento da melhor forma possível”. (Joana)

 

   [...] a técnica é isso; ela começa, tem o seu início e você vai adquirindo [...] aos poucos até você criar o seu auge, a sua plenitude [...]”. (Paula)

    Acerca da categoria “Evitar lesões”, dois voluntários afirmam que um gesto não eficaz é um fator que pode levar o praticante a se lesionar.

    “Acho que a técnica é importante para você poder ter essa parte de expressão. Além disso, ela é importante pra evitar lesões”. (Fernanda)

 

    “[...] que o professor, na verdade, consiga passar para o aluno a forma como ele deve fazer, principalmente a parte teórica, para que ele consiga executar de uma forma melhor para não se machucar, não se lesionar [...]”. (Joana)

    Em relação à categoria “Consciência Corporal” a voluntária Giovana relatou que a técnica do balé proporciona consciência corporal.

 

    “[...] a técnica é mais para se achar Ela conhecer o corpo [...]”. (Giovana)

 

    No que se refere à relação entre a experiência prévia do aluno e a aprendizagem do balé clássico, obtivemos 3 categorias, sendo que Joaquim revelou que acredita ser um ponto positivo, porém não caracterizou a relação. Dessa maneira, temos:

  • Percepção corporal (3 voluntários),

  • Tempo de aprendizagem (2 voluntários),

  • Disciplina/concentração (1 voluntário).

    Em relação à categoria “Percepção corporal”, 3 voluntários apontaram que uma experiência corporal com outras modalidades pode auxiliar a aprendizagem do Balé Clássico, sendo um instrumento facilitador por oferecer previamente ao aluno uma vivência que, assim como o Balé, utiliza do corpo como ferramenta.

    “[...] uma das dificuldades que a gente encontra para hoje, na verdade, [é] que antigamente era mais fácil que as pessoas brincavam. Então elas tinham esse outro lado. Hoje em dia elas só ficam no celular. Então elas perderam, por exemplo: em muitas turmas mais velhas a gente vê que a pessoa não sabe o que é direita e esquerda, frente e trás. Então a dificuldade motora hoje dificulta um pouco mais”. (Joana)

 

    “Tanto é que aqui, por exemplo, no balé adulto, tem gente que é fisioterapeuta [...] tem pessoas que já [...] tem formação ou que estão estudando. Então é muito mais fácil de você conhecer o seu corpo”. (Fernanda)

 

    “Eu acho super importante que o aluno já tenha uma percepção maior do seu corpo [...]”. (Paula)

    A experiência corporal antecedendo o contato com o Balé Clássico ainda proporciona como consequência da maior percepção corporal, uma redução do tempo de aprendizagem a qual foi apontada por dois voluntários da seguinte maneira:

    “Então, quem já vem cru, às vezes com físico, não evolui tanto como alguém que já tem conhecimento de musculatura, de corpo, de tendão, até onde eu posso ir pra não me machucar...”. (Fernanda)

 

    “Se ele tiver essa sensibilidade e vier com isso mais aflorado já é um ponto positivo e sai na frente dos outros que não tenham essa noção, que vão trabalhar isso para adquirir o que querem, o que estão buscando e é um trabalho maior. Então eu acho que quando a criança já tem isso, é válido”. (Paula)

    A disciplina e concentração foram citadas como fatores que podem ser aprimorados em outras modalidades e quando se pratica o Balé Clássico, podem ser utilizados, facilitando a aprendizagem, assim como a percepção corporal.

    “Se a criança faz outra modalidade, por exemplo, karatê, ela vai entender que ela precisa de uma disciplina para ela poder aprender melhor e entender o que o mestre, nissei, sensei, que ele impõe para fazer, para ensinar. E uma criança que já faz outra atividade que exige uma concentração maior, quando ela vem para o balé, ela já vem com uma concentração maior, consegue se concentrar [...]”. (Giovana)

    Apesar de ser relatada na maior parte dos discursos a ação benéfica de uma experiência prévia, podendo a mesma ser corporal ou de conhecimento científico, Joana aponta que, em casos específicos, a experiência prévia dificulta o aprendizado do Balé Clássico.

    “Mas eu acho que é muito mais fácil para a gente, por exemplo, ensinar quando a pessoa não sabe nada do que quando ela tem uma bagagem anterior. Nem que seja de conhecimento de outras escolas ou de outras metodologias [...]”. (Joana)

    Outro ainda apontou que o efeito benéfico da experiência pode não ser uma regra aplicada a todos os praticantes, demonstrando que outros fatores como o talento e a aptidão própria podem ser mais significativos que a experiência prévia quando questionado se realmente havia uma relação da mesma ao aprimoramento.

    “[...] Sim, dependendo da modalidade sim. [...]outras nem tanto. É aptidão própria”. (Joaquim)

Discussão 

 

    Partindo do pressuposto que a perpetuação do Balé Clássico o caracteriza como uma modalidade de dança que possui técnica específica e com sistematização de ensino e nomenclaturas próprias, é possível verificar individualidades em sua composição (Caminada, 1999). Nesse sentido, existe uma alta exigência técnica, física e estética para os bailarinos (Anjos, Oliveira, e Velardi, 2015) o que os leva em busca cada vez mais do aperfeiçoamento e aprimoramento dos movimentos e do seu desempenho, almejando o padrão de perfeição técnica, a qual é considerada a melhor performance possível.

 

    De prontidão, os achados do estudo nos mostram que a técnica é elemento imprescindível no processo de ensino do balé clássico, haja vista o discurso comum dos professores de que não é possível realizar o balé sem a técnica e nem mesmo separar a técnica da dança.Nesse sentido, três professores apontam a preocupação em passar aos bailarinos o modo como se deve movimentar a fim de lapidar o indivíduo e torná-lo especializado e considerado bom no que executa. Talvez pelo entendimento de que isso seja essencial ao espetáculo. Dessa maneira, se corrobora a constatação de Heller (2006), em que afirma que a técnica no contexto da dança ainda é vista como ação eficaz.

 

    Vislumbramos que a definição de técnica norteada pela concepção do gesto executado da maneira correta também é recorrente para esses professores. Para Daolio, e Velozo (2008), essa noção reflete o movimento técnico perfeito. Verifica-se que a técnica é tida como o modo que se deve realizar um movimento, no caso do Balé Clássico, a fim de que ele seja correto e feito com a maior perfeição praticável. Nessa perspectiva, os achados indicam que há uma forma correta imposta pela tradição que carrega o Balé Clássico e que deve ser o objetivo do bailarino ao longo de sua formação dominá-la, o que é fruto da cultura de entretenimento em que a modalidade está inserida e na qual se exige uma “técnica perfeita” a fim de obter resultados esteticamente agradáveis. (Costa, e Teixeira, 2019)

 

    Nesse âmbito, a técnica encontra-se em uma redoma limitada, embora para Almeida, e Assis (2017), existam na modalidade alguns trabalhos específicos como as posições de pés criadas no início da história dessa dança. Além disso,há o treinamento da força, resistência, postura, equilíbrio, alongamento, flexibilidade, graciosidade e elegância (Moreira, 2014). Segundo Almeida, e Assis (2017), essas são características imputadas ao longo do desenvolvimento dessa técnica e se referem apenas ao caráter físico do bailarino.

 

    Pensando estritamente sobre o somatotipo há influência por questões inatas (como o formato, comprimentos dos membros e habilidades com maior facilidade de desenvolvimento) e também adquiridas próprias ao treinamento, de maneira que o bailarino pode ter aspectos facilitadores ou limitadores de acordo com suas singularidades.Por outro lado, vislumbrando o indivíduo global, para além do corpo físico, as limitações aumentam, visto que o próprio histórico do Balé revela que o mesmo sofreu influência (em seus movimentos) pela sociedade da época (Elias, 1993), tendo como intuito principal manter a tradição de etiqueta da corte nas gerações seguintes. (Albizu, 2017)

 

    Uma vez que assumimos a individualidade de cada bailarino em sua perspectiva global e encontramos no discurso dos professores a noção de que cada um pode executar dentro de suas próprias possibilidades, é corroborado o fato de que a técnica, em uma perspectiva que transcende a especialização do gesto, pode se aliar à singularidade de quem dança. (Marques et al., 2017)

 

    Levando em conta que numa aula de Balé Clássico o professor carrega uma figura de autoridade (Abreu, 2017), quando se espera do aluno que “faça o que aprendeu”, podemos indicar para a imitação prestigiosa de Mauss (2003), em que o professor, ser prestigiado pelos alunos, apresenta o “como”.Vemos que o ensino da dança frequentemente funciona nesse modelo de imitação que pode ser acompanhado de explicações verbais (Olarte, 2006-2007), nessa direção, se apresenta o modo como deve ser feito e em seguida os alunos praticam de maneira que chegue o mais próximo possível da perfeição. Em contrapartida, no estudo de Abreu (2017), realizado com professoras de Balé Clássico, vemos que as mesmas não consideram essencial que o profissional domine a técnica perfeitamente. A autora ainda aponta que “Alude-se à figura da mãe, que ensina e educa. Ainda que não necessariamente faça o que diz, desdobra-se para que seus filhos assim o façam” (p. 206).

 

    O formato de ensino do Balé foi influenciado por Feuillet1, que em uma proposta de metodologia de ensino dessa dança impõe um modelo matemático (ao qual já foram tecidas muitas críticas desde sua criação por distanciar da tradição) que utiliza como principais critérios a ordem e a medida. A medida “reúne as aspirações mais puras da extensão” e a ordem uma progressão para desenvolvimento passando do mais simples ao mais complexo (Albizu, 2017, p. 259). Para os voluntários, esse é um dos papéis da técnica: construir o bailarino de forma gradual. Semelhante ao que acontece com outros esportes como o basquetebol o qual se passa por diversas fases de desenvolvimento como atleta e se associa a técnica com as estratégias de ensino, a vivência e o treinamento (Galatti et al., 2012), no Balé Clássico também se proporciona especialização dos movimentos com metodologia semelhante.

 

    Nessa esteira, ainda é atribuído à técnica o papel de dar consciência corporal. Fischer, e Cavasin (2003) afirmam que além da consciência corporal, outros fatores como a criatividade e a percepção de aprimoramento são melhorados na prática de dança, o que pode nos dar indícios de que seja uma possível evidência que corrobore essa afirmação.

 

    Ainda sobre as atribuições da técnica, fala-se da prevenção de lesões. De fato, Monteiro, e Grego (2003), apontam para um alto índice de bailarinos lesionados, condição decorrente de uma técnica inadequada e pobre. No entanto, não pode também a execução consecutiva e exaustiva de gestos levarem o bailarino a se lesionar? Consideramos que sim. E todos os gestos que não se adéquam ao padrão levam o indivíduo a se lesionar? Acreditamos que não. Portanto, tanto a técnica inadequada como o treinamento excessivo para dominá-la podem ser, junto com outros fatores, o gatilho para uma lesão.

 

    Em outra perspectiva do ensino, as experiências prévias dos bailarinos foram questionadas e é majoritariamente positiva quando são relativas às vivências corporais. Abreu, Pereira, e Kessler (2008) dizem que outras vivências anteriores podem auxiliar o aprendizado sendo um exemplo a prática da dança de salão, na qual é possível aprimorar sua percepção espacial, ritmo e coordenação motora, o que para um iniciante no Balé Clássico é aspecto facilitador.Sendo assim, é perceptível que há um aprimoramento dos movimentos quando houve algum tipo de prática anteriormente, mostrando que há uma memória corporal e ainda uma educação e cultura envolvida no aprendizado. Mauss (2003) quando afirma que há uma diferença no andar de humanos de origens diferentes, mostra que o corpo é capaz de aprender e adaptar-se ao que lhe é colocado, o que nos leva a pensar que há, para além das questões biológicas e inatas, diferença na consciência corporal quando em gerações diferentes, origens, contexto.

 

    Enquanto para alguns a técnica rígida e padronizada, para outros a técnica pode ser o que o aluno assimila e consegue executar dentro da sua realidade. Nesse ponto, portanto, há um enfoque importante: a construção da concepção de técnica para os professores também poderá variar de acordo com sua vivência e aprendizado da dança, revelando que muito se influencia pelas escolas e seus modelos e ainda da própria metodologia utilizada por cada professor como estratégia para melhor aprendizagem de seus alunos. Ainda é possível encontrar no discurso dos professores aspectos que abordam a arte atrelada à técnica no ensino da modalidade.

 

    No estudo de Abreu (2017), as professoras com suas particularidades também demonstravam formas diferentes para o ensino do Balé Clássico, no entanto, as falas delas indicam que havia intenção de homogeneizar o padrão de profissionais rígidas e exigentes. Dessa forma, pensamos que a pluralidade permite um melhor desenvolvimento dessa modalidade, visto que se evita perder a tradição pelos mais “clássicos” e ao mesmo tempo se pensa em novas alternativas pelos mais “flexíveis”.

 

    Entretanto, se compreendermos a técnica na direção de Mauss (2003) - a maneira pela qual os seres humanos sabem servir-se de seus corpos -, perceberemos que as respostas obtidas no estudo são incomuns a essa esteira. Para os professores, o conceito de técnica está em torno do ser humano como um corpo que deverá executar movimentos que devem ser aprimorados até que cheguem no patamar do modelo. Esse fato destaca a tradição do Balé Clássico, a qual apesar do enaltecimento do artístico deixa-se em segundo plano o humano e predomina o corpo que faz com uma finalidade que é a de dançar com louvor. Além dos problemas em desprezar o humano como uma totalidade, visto que o corpo nesses cenários é tratado como o corpo treinado e à parte ao corpo cultural (Traple, 2016), exigir do indivíduo um alto padrão de treinamento e desempenho, implica em prejuízos psicológicos e físicos (Epiphanio, 2002; Costa, e Teixeira, 2019; Traple, 2016), o que não auxilia em nada o desenvolvimento na modalidade.

 

    Contrapondo o usual, poderíamos ter o Balé sendo dançado com as técnicas dos vários corpos que adentram as salas de aula com suas histórias e significados. Ainda assim, compreendemos como Olarte (2006-2007) que é um desafio olhar o indivíduo como um ser integral, apesar disso, também consideramos como Traple (2016) que tratar o corpo como uma máquina biológica e produtiva, eximindo suas particularidades também traz prejuízos. Consideramos que as mudanças em favor do desenvolvimento auxiliam na oportunidade de experiência com as modalidades. Afinal, seria mais acessível dar a cada indivíduo um Balé que lhe sirva e contemple ou manter caixas de um Balé rígido e imutável aguardando seres que se adéquem ao padrão exato exigido?

 

Conclusão 

 

    É consenso entre os entrevistados que técnica é realmente de extrema importância para a modalidade do Balé Clássico e fundamental para seu ensino. No entanto, a concepção da dimensão de técnica para os voluntários do estudo é ampla e diversificada e se encaminha em direções diferentes em relação às concepções dos autores utilizados para embasamento do estudo, haja vista que, o ensino da modalidade em seu modelo tradicional se demonstra exigir de uma solidez e melhor alcance de performance.

 

    Dessa maneira, apesar de haver concordância em alguns aspectos, o que predomina é o formato que se procura ser replicado nos corpos. Entretanto, é possível compreender que existe também, por parte de alguns voluntários do estudo, uma preocupação com seus alunos no cotidiano da modalidade, bem como com suas limitações.

 

    Noutra esteira, há uma relevância à observação de que os apontamentos dos professores são ligeiramente distintos, mas são marcados expressivamente pela tradição. Isso porque existe um distanciamento no tempo de experiência, porém demonstra-se não influente para os discursos, já que para a compreensão essencial da técnica e do seu papel no ensino da modalidade as noções encontram-se aproximadas no âmbito de alcançar a melhor performance através da técnica que propõe a maneira de fazer corretamente.

 

    A técnica está presente em praticamente todas as exigências feitas aos bailarinos, de modo que quando se fala da dança, do artístico, do próprio bailarino ou da aprendizagem, é possível abordá-la. Quando mencionada, existem conceitos pré-estabelecidos que norteiam os parâmetros de exigência do professor. Sendo assim, seu domínio é um fator fundamental que leva o bailarino a formar-se profissional.

 

    Para o ensino, refere-se necessária a atenção para a expressão e a “anatomia”, além da técnica, as quais perpassam a construção do que se relata como “essência” do bailarino e o tornam aprimorado. A técnica, no entanto, pode ser o ponto de partida para definir o modelo metodológico a ser utilizado pelo professor ao ensino visto ser considerado fator fundamental e influente para a prática em diversos aspectos.

 

    Verifica-se, portanto, que de um mesmo referencial podem ser obtidos diversas perspectivas que podem influenciar ou não na prática do Balé Clássico, concluindo que as convergências predominantes são fruto da tradição que domina a modalidade. Dessa maneira, acreditamos que o aprimoramento técnico deve ser aliado à pedagogia e ao método de ensino do professor, de modo a auxiliar o aluno para melhora no seu desempenho, respeitando suas limitações físicas e respeitando seus corpos.

 

    Além disso, é necessária uma contextualização e coerência com a proposta do ensino dessa dança deve ser um parâmetro para desenvolvimento do planejamento de aulas para os bailarinos, considerando os objetivos que cada um traz com a prática, sem abdicar do que se pondera fundamental para caracterizar a modalidade.

 

Nota 

  1. Raoul-Auger Feuillet foi um bailarino, coreógrafo e teórico da dança na França, que participou do desenvolvimento de um método de escrita do movimento para o Balé Clássico, além da contribuição na significação de outros termos presentes nesse contexto.

Referências 

 

Abreu, E.V., Pereira, L.T.Z., e Kessler, E.J. (2008). Timidez e motivação em indivíduos praticantes de Dança de Salão. Conexões, 6(especial), 21-33. https://doi.org/10.20396/conex.v6i0.8637865

 

Abreu, F. (2017). Corpos que ensinam: uma etnografia de professoras de balé clássico. Revista Fragmentos de Cultura - Revista Interdisciplinar de Ciências Humanas, 27(2), 202-215. http://dx.doi.org/10.18224/frag.v27i2.5230

 

Albizu, I. (2017). La impronta matemática del ballet: entre el cuerpo artístico y el cuerpo deportivo. Bajo Palabra Revista de Filosofía, 2(16), 93-102. https://revistas.uam.es/bajopalabra/article/view/9012

 

Almeida, H.S., e Assis, M.R. (2017). Sentidos do uso da técnica do Balé Clássico sob a ótica de diretores de escolas técnicas particulares de dança do Rio de Janeiro. Pensar a prática, 20(4), 734-745. https://doi.org/10.5216/rpp.v20i4.42980

 

Amaral, J. (2009). Das Danças Rituais ao Ballet Clássico. Revista Ensaio Geral, 1(1), 1-6. https://docplayer.com.br/21040614-Das-dancas-rituais-ao-ballet-classico-jaime-amaral.html

 

Anjos, K.S.S., Oliveira, R.C., e Velardi, M. (2015). A construção do corpo ideal no balé clássico: uma investigação fenomenológica. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, 29(3), 439-452. https://doi.org/10.1590/1807-55092015000300439

 

Bastos, M.H.F.A. (2014). Corpoestados: singularidades da cognição em dança. Revista Brasileira de Estudos da Presença, 4(1), 138-147. https://doi.org/10.1590/2237-266037894

 

Caminada, E. (1999). História da dança: evolução cultural. Editora Sprint.

 

Campos, C.J.G. (2004). Método de análise de conteúdo: ferramenta para a análise de dados qualitativos no campo da saúde. Revista Brasileira de Enfermagem, 5(7), 611-614. https://doi.org/10.1590/S0034-71672004000500019

 

Castro, C. (2013, outubro). Linguagens em diálogos:sobre os métodos de ensino de balé. Anais do Encontro Nacional de Grupos de Pesquisa em Dança, Recife, PE, 4. https://docplayer.com.br/23459956-Linguagens-em-dialogos-sobre-os-metodos-de-ensino-de-bale.html

 

Cavasin, C.R. (2003). A dança na aprendizagem. Instituto Catarinense de Pós-Graduacao. https://docplayer.com.br/7525931-A-danca-na-aprendizagem.html

 

Costa, C., e Teixeira, Z. (2019). A experiência da dor em bailarinas clássicas: significados emergentes num estudo qualitativo. Ciência & Saúde Coletiva, 24(5), 1657-1667. https://doi.org/10.1590/1413-81232018245.04302019

 

Daolio, J. (1995). Da cultura do corpo. Papirus Editora.

 

Daolio, J., e Velozo, E.L. (2008). A técnica esportiva como construção cultural: implicações para a pedagogia do esporte. Pensar a Prática,11(1), 9-16. https://doi.org/10.5216/rpp.v11i1.1794

 

Elias, N. (1993). O processo civilizador: formação do estado e civilização (R. Jungmann, Trad.). Jorge Zahar Editora. (Obra original publicada em 1939).

 

Epiphanio, E.H. (2002). Conflitos vivenciados por atletas quanto à manutenção da prática esportiva de alto rendimento. Estudos de Psicologia (Campinas), 19(1), 15-22. https://doi.org/10.1590/S0103-166X2002000100002

 

Fernandes, C. (2001). Esculturas líquidas: a pré-expressividade e a forma fluida na dança educativa (pós) moderna. Cadernos CEDES21(53), 7-29. https://doi.org/10.1590/S0101-32622001000100002

 

Galatti, L.R., Serrano, P., Seoane, A.M., e Paes, R.R. (2012). Pedagogia do esporte e basquetebol: aspectos metodológicos para o desenvolvimento motor e técnico do atleta em formação. Arquivos em Movimento, 8(2), 79-93. https://revistas.ufrj.br/index.php/am/article/view/9207

 

Garaudy, D. (1980). Dançar a vida (4ª ed.). Editora Nova Fronteira.

 

Geraldi, S. (2007). Representações sobre técnicas para dançar. In: S. Nora (Org.). Húmus. Lorigraf Gráfica e Editora.

 

Gil, A.C. (2002). Como elaborar projetos de pesquisa. Editora Atlas.

 

Heller, A.A. (2006). Fenomenologia da expressão musical. Editora Letras Contemporâneas.

 

Marques, D.P.A., Assis, M.D.P., Surdi, A., Lluch, A.C., e Kunz, E. (2017). Dança e técnica: uma aproximação com a fenomenologia. Pensar a Prática, 20(4), 864-872. https://doi.org/10.5216/rpp.v20i4.44171

 

Mauss, M. (2003). Sociologia e antropologia. Editorial Cosac Naify.

 

Monteiro, H.L., e Grego, L.G. (2003). As lesões na dança: conceitos, sintomas, causa situacional e tratamento. Motriz, 9(2), 63-71. http://www.rc.unesp.br/ib/efisica/motriz/09n2/Monteiro.pdf

 

Moreira, R. (2014). Balé clássico: um dos métodos de formação e preparo de artistas de dança expressiva cênica na contemporaneidade. In: Instituto Festival de Dança de Joinville (Orgs.), A Dança Clássica: dobras e extensões (pp. 85-90). Editora Nova Letra.

 

Olarte, R.B. (2006-2007). El eterno aprendizaje del soma: análisis de la educación somática y la comunicación del movimiento en la danza. Revista Javeriana, 3(1), 105-159. https://revistas.javeriana.edu.co/index.php/cma/article/view/6442

 

Traple, C.B. (2016). O corpo no âmbito esportivo. Lecturas: Educación Física y Deportes, 21(216). https://www.efdeportes.com/efd216/o-corpo-no-ambito-esportivo.htm

 

Triviños, A.N.S. (2008). Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa qualitativa em educação (16ª reimp.). Editora Atlas.


Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 26, Núm. 278, Jul. (2021)