ISSN 1514-3465
Casa de apoio às crianças filhas de migrantes São Geraldo: um relato de experiência
Support House to Children of Migrants São Geraldo: an Experience Report
Casa de apoyo para los hijos de migrantes São Geraldo: un informe de experiencia
Erick de Oliveira Carvalho
*rickcarvalho.t@gmail.com
Lúcio Fernandes Ferreira**
lucciofer@gmail.com
*Licenciado em Educação Física
Universidade Federal do Amazonas - UFAM, Manaus
**Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação
da Faculdade de Educação/PPGE-FACED/Universidade Federal do Amazonas
Doutor em Ciências, área de concentração Biodinâmica do Movimento Humano
pela Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo
Mestre em Educação Física, área de concentração
Biodinâmica do Movimento humano pela Universidade de São Paulo
Especialização em Ciência e Técnica da Natação
pelas Faculdades Integradas Castelo Branco
Licenciatura Plena em Educação Física pela Universidade de Taubaté
Atualmente é professor Adjunto C Nível II
da Universidade Federal do Amazonas/UFAM
líder do Grupo de Estudos em Comportamento Motor Humano (LECOMH)
da Faculdade de Educação Física e Fisioterapia/FEFF
(Brasil)
Recepção: 01/06/2020 - Aceitação: 25/12/2020
1ª Revisão: 17/09/2020 - 2ª Revisão: 27/09/2020
Documento acessível. Lei N° 26.653. WCAG 2.0
Este trabalho está sob uma licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0) https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/deed.pt |
Citação sugerida
: Carvalho, E., e Ferreira, L.F. (2021). Casa de apoio às crianças filhas de migrantes São Geraldo: um relato de experiência. Lecturas: Educación Física y Deportes, 25(274), 184-195. https://doi.org/10.46642/efd.v25i274.2307
Resumo
Este relato tem o intuito de explanar sobre o trabalho realizado na casa de apoio ao longo de dois anos, afirmando a importância do projeto para as crianças participantes, para o autor e para futuros alunos da área de educação física que possam viver essa experiência. Abordando a questão comportamental, tendo em vista que este projeto foi uma vivência mais próxima de um contexto escolar para as crianças, além das situações sociais e culturais que, por serem filhas de migrantes, apresentam hábitos e costumes diferenciados. O Programa de desenvolvimento motor para crianças de famílias migrantes teve como objetivo geral aplicar o programa de desenvolvimento motor em crianças da primeira infância e seus objetivos específicos: (a) Melhorar os padrões motores nas habilidades de locomoção; (b) Melhorar os padrões motores nas habilidades de estabilização e (c) Melhorar os padrões motores nas habilidades de manipulação. Foi estimulado o desenvolvimento das habilidades motoras básicas das crianças de 2 a 4 anos de idade. Habilidades motoras que foram abordadas: (1) manipulação; (2) estabilização; e (3) locomoção, com frequência semanal de três sessões, com duração de até 50 minutos. Os materiais utilizados foram brinquedos e equipamentos pertencentes à casa de apoio, materiais recicláveis também foram aproveitados. O método observacional foi utilizado para averiguar o desenvolvimento das crianças no decorrer do projeto, tendo entre seus resultados obtidos, por meio das atividades, o desenvolvimento apresentado pelas crianças participantes do programa, desde as melhoras no quesito motor, melhoras no ganho de autonomia, nas atividades da vida diária e socialização.
Unitermos:
Desenvolvimento motor. Criança. Saúde. Educação inclusiva.
Abstract
This report aims to explain about the work done in the support house over two years, affirming the importance of the project for the participating children, for the author and for future students of physical education who can live this experience. Addressing the behavioral issue, considering that this project was a closer experience of a school context for the children, in addition to the social and cultural situations that, because they are daughters of migrants, have different habits and customs. The Program of motor development for children of migrant families had as its general objective to be applied to early childhood children and its specific objectives: (a) To improve motor patterns in mobility skills; (b) Improve motor patterns in stabilization skills and (c) Improve motor patterns in manipulation skills. The development of the basic motor skills of children from 2 to 4 years old was stimulated. Three motor skill classes were addressed: (1) manipulation; (2) stabilization; and (3) mobility, with weekly frequency of three sessions, lasting up to 50 minutes. The materials used were toys and equipment belonging to the support house, recyclable materials were also used. The observational method was used to verify the development of children during the project, and among its results obtained through the activities offered, the development presented by the children participating in the program, from improvements in motor skills, improvements in autonomy gain, in activities of daily living and socialization.
Keywords
: Motor development. Children. Health. Inclusive education.
Resumen
Este informe tiene como objetivo explicar el trabajo realizado en una casa de apoyo durante dos años, afirmando la importancia del proyecto para los niños participantes, para el autor y para los futuros estudiantes de educación física que puedan vivir esta experiencia. Abordar el tema conductual, teniendo en cuenta que este proyecto fue una experiencia más cercana al contexto escolar de los niños, además de situaciones sociales y culturales que, al ser hijos e hijas de migrantes, tienen diferentes costumbres. El programa general de desarrollo motor para niños de familias migrantes tenía como objetivo aplicarlo a los niños de la primera infancia, y sus objetivos específicos: (a) Mejorar patrones motores en habilidades de locomoción; (b) Mejorar patrones motores en habilidades de equilibrio y (c) Mejorar patrones motores en habilidades de manipulación. Se estimuló el desarrollo de habilidades motoras básicas de los niños de 2 a 4 años. Se abordaron tres tipos de habilidades motoras: (1) manipulación; (2) equilibrio; y (3) locomoción, con una frecuencia semanal de tres sesiones, con una duración de hasta 50 minutos. Los materiales utilizados fueron juguetes y materiales pertenecientes a la casa de apoyo, y también se utilizaron reciclables. Se utilizó el método observacional para conocer el desarrollo de los niños, teniendo entre sus resultados obtenidos, a través de las actividades ofrecidas, el desarrollo presentado por los niños participantes en el programa, a partir de las mejoras en el aspecto motor, mejoras en el logro de autonomía, en actividades de la vida diaria y socialización.
Palabras clave:
Desarrollo motor. Niña y niño. Salud. Educación inclusiva.
Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 25, Núm. 274, Mar. (2021)
Introdução
A casa de apoio às crianças filhas de migrantes São Geraldo teve sua inauguração em Junho de 2013, com a finalidade de oferecer um espaço onde os pais possam deixar seus filhos e irem trabalhar, surgindo devido ao déficit de creches na cidade de Manaus, AM. Atendendo na época do projeto um total, por ano, de até 24 crianças filhas de migrantes com nacionalidades variadas, entre estas haviam haitianos, colombianos, venezuelanos, equatorianos, peruanos, dentre outros, com idades aproximadas entre 6 meses e 4 anos.
A casa não fornece uma proposta pedagógica como a alfabetização, pois apresenta como sua principal função cuidar das crianças, oferecendo uma alimentação balanceada, além dos cuidados com a higiene básica, atividades educativas e brincadeiras. O ambiente disponibiliza de um grupo de funcionários e voluntários, os quais são responsáveis por cuidar das crianças.
O Brasil apresentou um aumento na taxa de migração de até 20% na população de migrantes entre os anos de 2010 e 2015, segundo os dados World Migration Report, disponibilizados pela Organização Internacional para as Migrações - OIM. (McAuliffe, e Ruhs, 2017)
Por consequência desta alta demanda migratória, em maio de 2017, foi sancionada uma nova lei de migração, a lei de nº 13.445/2017, a qual dispõe sobre os direitos e deveres do migrante, regulando a entrada e estadia no país, sendo considerado imigrante a “pessoa nacional de outro país ou apátrida que trabalha ou reside e se estabelece temporária ou definitivamente no Brasil”. Abordando no seu Art. 3º princípios e diretrizes que à regem, como a universalidade, individualidade e interdependência dos direitos humanos, repudiando e prevenindo a xenofobia, racismo ou qualquer outra forma de discriminação, além de garantir o direito à educação pública. (Brasil, 2017)
As crianças participantes do programa passam por esse processo de migração ainda durante sua fase de infância. Durante este período que creches e pré-escolas são ambientes apropriados para estimular o movimento e exercício corporal. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) são responsáveis por averiguar e guiar creches e pré-escolas, adotando a definição de educação infantil (EI) como primeira etapa da educação básica. As creches e pré-escolas, caracterizados como espaços institucionais que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em jornada integral ou parcial, regulados e supervisionados por órgão competente do sistema de ensino e submetidos a controle social (Brasil, 2010). Esses espaços devem proporcionar às crianças, um ambiente adequado para o desenvolvimento como um todo.
O estágio da infância apresenta grande influência ao longo da vida da criança, pois é através das primeiras experiências vividas que aprende mais sobre si, sobre os outros e sobre o mundo ao seu redor, determinando aquilo que ela irá se tornar quando adulta. Assim, torna-se indispensável oportunizar de conhecimento, como auxílio para o desenvolvimento humano. (Dias, 2013)
O desenvolvimento Humano, de acordo com Papalia, e Feldman (2013), trata-se dos processos de transformações e estabilidade ao longo da vida, sendo um estudo científico com o objetivo de descrever, explicar, prever e intervir em tais processos. Possui como três dos seus principais domínios o desenvolvimento cognitivo, o psicossocial e o físico.
O desenvolvimento cognitivo diz respeito às habilidades mentais, como pensamento, memória, criatividade, linguagem, entre outros. O desenvolvimento psicossocial, refere-se às mudanças emocionais, na formação de personalidade e nas relações sociais. O desenvolvimento físico aborda o crescimento do corpo como um todo, incluindo as mudanças nas capacidades sensoriais, habilidades motoras e saúde (Boyd, e Bee, 2011; Papalia, e Feldman, 2013). Devido a tal desenvolvimento humano que ocorre durante a infância, o período torna-se propício para o desenvolvimento das habilidades motoras básicas.
Desenvolvimento motor é a mudança contínua do comportamento motor ao longo do ciclo da vida provocada pela interação entre as exigências da tarefa motora, a biologia do indivíduo e as condições do ambiente. O período inicial da infância, de 2 a 5 anos, é uma das fases mais importantes para o desenvolvimento integral do indivíduo. (Gallahue, Ozmun, e Goodway, 2013)
Exibindo resultados obtidos por meio das atividades oferecidas, como o desenvolvimento apresentado pelas crianças participantes do programa, desde as melhoras no quesito motor até o ganho de autonomia nas atividades da vida diária e socialização. Sendo assim, de que forma as atividades propostas no programa de desenvolvimento motor para crianças de famílias migrantes podem contribuir na vida diária das crianças que frequentam a casa de apoio?
A partir do que foi exposto acima, o presente projeto teve como objetivo aplicar o programa de desenvolvimento motor em crianças da primeira infância e seus objetivos específicos, que são: (a) Melhorar os padrões motores nas habilidades de locomoção; (b) Melhorar os padrões motores nas habilidades de estabilização e (c) Melhorar os padrões motores nas habilidades de manipulação.
Metodologia
O programa de desenvolvimento motor para crianças de famílias migrantes, caracterizado como um projeto de extensão, aprovado pela Pró-reitoria de Extensão (PROEXT) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). O projeto foi executado na Casa de apoio às crianças filhas de migrantes São Geraldo, localizada na quadra da Paróquia São Geraldo, na avenida Constantino Nery, Bairro São Geraldo, zona centro-sul de Manaus.
O projeto teve início em março de 2016 e término em fevereiro de 2018, possuindo duração total de 2 anos, atendendo 1 turma em cada ano. A primeira turma era composta por, no máximo, oito crianças com 2 a 4 anos de idade. A segunda turma era composta por até dezesseis crianças, também com faixa etária de 2 a 4 anos de idade.
As aulas tinham a frequência semanal de três sessões, ocorrendo nas segundas, quartas e sextas-feiras, com duração de até 50 minutos cada,partindo do princípio do que as crianças já sabiam e o que precisavam aprender, apresentando níveis de dificuldades que partiam de atividades mais simples até complexas, respeitando sempre a individualidade da criança.
A realização das aulas ocorria na própria quadra onde a casa de apoio encontra-se, no entanto, por motivos alheios ao nosso controle, algumas aulas necessitaram ser ministradas dentro da sala onde as crianças passavam o dia. Como materiais, foram utilizados brinquedos e equipamentos pertencentes à casa de apoio, bolas grandes, médias e pequenas, bambolês, cordas, mesas e cadeiras, materiais recicláveis também foram aproveitados. Tais materiais eram utilizados também para as tarefas diárias das crianças e/ou funcionários da casa de apoio.
O programa desenvolveu atividades voltadas para o desenvolvimento de habilidades motoras que compõem as três classes de habilidades motoras fundamentais: manipulação, estabilização e locomoção. De acordo com Gallahue, Ozmun, e Goodway (2013), as habilidades de manipulação são um subconjunto de habilidades que envolvem a manipulação ou o controle de objetos, tendo como exemplo arremessar, pegar, chutar, rebater, e outros.
As habilidades de locomoção consistem em um grupo de habilidades motoras que permitem ao indivíduo deslocar-se pelo espaço ou movimentar o corpo de um ponto a outro, apresentando exemplos como correr galopar, saltitar em um só pé, saltar, passo longo, etc. As habilidades motoras de equilíbrio são aquelas nas quais o corpo permanece no lugar, mas se move ao redor do eixo horizontal ou vertical. Há tarefas de equilíbrio estático (estacionário) e de equilíbrio dinâmico (de movimento), onde o objetivo é manter ou obter o equilíbrio contra a força da gravidade.
Apresentando como objetivo geral aplicar o programa de desenvolvimento motor em crianças da primeira infância. Seus objetivos específicos: (a) Melhorar os padrões motores nas habilidades de locomoção; (b) Melhorar os padrões motores nas habilidades de estabilização; e (c) Melhorar os padrões motores nas habilidades de manipulação.
A metodologia observacional foi adotada para averiguar o desenvolvimento motor apresentado pelas crianças participantes do projeto. Sendo a metodologia observacional, de acordo com Pasquali (1996), o estudo realizado em situação natural, onde “só é possível estudar diretamente as circunstâncias que se referem a ambiente, organismo e comportamento, na medida em que puderem ser observadas sem o auxílio de instrumentos ou de contato físico com o organismo estudado”. Todas as aulas eram fotografadas para análises posteriores, além de registrar os acontecimentos ocorridos durante as aulas e a presença dos alunos.
Visita inicial à casa de apoio
Antecedendo o início das aulas, foi realizada uma visita à casa de apoio com intuito de conhecer um pouco do ambiente onde as aulas seriam aplicadas e, também, as crianças participantes do projeto. Durante esta visita, foi possível averiguar alguns pontos sobre o local, materiais e rotina das crianças. Tais pontos, os quais estavam sujeitos a mudanças durante o decorrer do projeto.
As crianças passavam seus dias dentro de uma pequena sala, saindo apenas para realizar suas refeições e tarefas diárias de higiene. Logo o brincar, na grande maioria das vezes, ocorria dentro deste pequeno espaço, gerando um acúmulo de energia nestas crianças, facilmente perceptível quando saiam para a quadra. Ferreira, Santos, e Ravazzani (2017), apontam a infância como uma fase com alta demanda energética pela criança, devido ao rápido crescimento e desenvolvimento.
Início do projeto
Após feita a visita à casa de apoio, o plano de ensino foi elaborado de forma trimestral, a partir do qual foram preparados os planos de aula. As aulas ocorriam nas segundas, quartas e sextas-feiras, possuindo duração de até 50 minutos cada, sendo divididas em sequências de duas aulas para cada habilidade motora básica trabalhada, ou seja, duas aulas de locomoção, depois duas aulas de manipulação, duas aulas de estabilização e, então, repetia-se o ciclo.
Os planos de aula eram baseados no modelo apresentado por Freire (2009), abordando o formato de planos de aula para a educação infantil, sendo divididos em 3 partes: (1) Inicial, (2) Desenvolvimento e (3) Final. Todas as aulas eram planejadas levando em consideração o que foi ministrado nas aulas anteriores, como as crianças lidaram com as atividades e os materiais disponíveis.
As aulas tiveram início dia 28 de fevereiro de 2016. O ambiente onde estas eram ministradas era organizado para que os materiais utilizados no dia em questão ficassem amostra, mas não ao alcance das crianças. Onde com o decorrer do projeto, no começo de cada aula era perguntado para as crianças quais materiais seriam utilizados na aula e de que forma elas acreditavam que eles seriam utilizados.
A parte inicial das aulas era quando recepcionava todas as crianças e as reunia sentadas. Neste momento conversávamos sobre como elas estavam e eram informadas previamente as atividades que seriam realizadas naquele dia. Em seguida ocorria o desenvolver das atividades planejadas. Quando havia necessidade era feita uma pausa entre as atividades para a montagem da seguinte. Ao fim, as crianças eram novamente reunidas e dispostas sentadas, onde conversávamos sobre as atividades realizadas. Perguntava ainda, quais atividades elas tinham feito, quais mais gostaram e quais não gostaram, sempre incentivando a participação nas aulas.
De princípio, para a aplicação das aulas, foi recebida ajuda da funcionária que cuidava da turma trabalhada, a qual ficou responsável pela organização dos alunos durante as atividades, tornando a adaptação um pouco mais “fácil”. No entanto, esta ajuda durou pouco no primeiro ano de projeto, e logo se teve que ministrar aulas para esta turma tão ativa sem auxílio. Já no segundo ano de projeto, a ajuda da cuidadora responsável pela turma permaneceu pelo ano inteiro.
Devido à falta de conhecimento de um âmbito escolar por parte das crianças unida à energia acumulada, houve influência direta nas aulas, necessitando de uma adaptação tanto por parte das crianças quanto minha. Segundo Dia (1996), é uma obrigação para a criança adaptar-se ao mundo social dos mais velhos e ao mundo físico, o qual ela ainda mal compreende, necessitando de uma motivação, para que ocorra a assimilação da criança a este “novo” mundo.
Talvez a maior dificuldade encontrada para realizar a adaptação necessária tenha sido manter o foco das crianças nas atividades planejadas, uma vez que, quando na quadra, as crianças buscavam liberdade para correr, pular e brincar do que tivessem vontade. Tal adaptação ocorreu por meio de um acordo com os alunos, onde caso se comportassem e participassem das aulas, lhes seria fornecido um tempo extra após as aulas para que brincassem livremente. Esta adaptação foi lenta e exigiu paciência tanto por parte das crianças, quanto minha e das funcionárias da casa de apoio.
As atividades eram pensadas considerando a individualidade de cada criança, seja por suas facilidades, dificuldades, medos ou curiosidades. Um dos alunos, por exemplo,apresentou medo de balões, ocasionando em um trabalho para que ele perdesse seu receio e pudesse então participar normalmente das aulas que utilizavam tal material.
Inicialmente, as crianças demonstraram dificuldades para realizar atividades consideradas simples, como engatinhar sob a mesa ou no manuseio de uma bola, porém estas dificuldades eram facilmente aceitas levando em consideração tudo que foi explicado sobre as dificuldades iniciais. Sendo assim, foi necessário que as atividades se tornassem mais compreensíveis e escaladas de forma a facilitar o aprendizado. Tendo em vista que, de acordo com Paim (2003), a fase pré-escolar é a época de aquisição de habilidades motoras básicas, possuindo seu núcleo nos movimentos fundamentais, relacionado a diversos fatores. Sendo assim, este era o primeiro contato destas crianças para com esta fase pré-escolar.
Além das dificuldades motoras apresentadas pelas crianças na realização de atividades consideradas simples, no começo, a comunicação e entendimento eram outros fatores implicantes deste processo. Fazer com que crianças de até 4 anos de idade compreendessem, por meio de palavras, as atividades que deveriam realizar não era uma tarefa fácil, ainda mais levando em consideração que, por serem crianças filhas de migrantes, algumas delas mal compreendiam a língua portuguesa. Logo, a demonstração unia-se à verbalização, tornando as atividades mais compreensíveis. Após vencidos estes obstáculos as aulas tornaram-se mais fáceis para serem ministradas, aumentando assim, o número de possíveis atividades a serem realizadas com a turma.
Fatores intervenientes
Pelo fato das aulas serem realizadas na quadra da paróquia São Geraldo houveram alguns imprevistos que necessitaram de alterações nos planos de aula. Para manter a casa de apoio em funcionamento a igreja necessita de renda, a qual consegue através de eventos, doações, aluguel da quadra, e outros. Desta forma, a quadra era alugada durante a noite, era utilizada como local de eventos, também já foi usada como estacionamento, dentre outros.
Outro fator deu-se por conta de iniciativas que a casa de apoio possuía com o intuito de arrecadar doações. Uma dessas tratava-se de um “café da manhã”, onde estudantes do curso de Pedagogia visitavam a casa para conhecer o projeto e as crianças. No entanto, o horário coincidia com o das aulas, as quais acabavam prejudicadas por conta de tornar o ambiente extremamente barulhento. Essa iniciativa foi cancelada ainda no primeiro ano de projeto por prejudicar os horários preestabelecidos para as tarefas diárias.
Infelizmente, a casa de apoio não possuía aceitação por alguns membros que frequentavam a paróquia São Geraldo, pois estes acreditavam que a casa deveria atender aos filhos de todos que necessitassem, sem dar preferência à família de migrantes. Havendo casos onde pais levavam seus filhos para visitar a casa e, ao ver uma atividade montada, acreditavam estar num “parque de diversões”, gerando situações que necessitavam de interrupções durante as aulas.
A questão familiar mostrou-se bem presente durante os anos do projeto pois, por estarem a procura de melhores oportunidades, não era incomum que o pai ou a mãe de alguma das crianças viajassem para outros estados ou até mesmo países em busca destas oportunidades. Em alguns desses casos, as crianças iam junto, o que fez com que o número de crianças que iniciavam no projeto fosse maior do que o número das que se encontravam ao fim do mesmo.
Alguns desses fatores, como a influência da família e a questão financeira, são abordados por Antoniacomi (2013), onde estuda o papel do pedagogo dentro da gestão na educação infantil, sendo a gestão a atividade pela qual são utilizados meios e procedimentos para alcançar os objetivos da escola. No artigo em questão, foi apontado como uma das maiores barreiras no Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) a necessidade de contornar a situação financeira e aproximar a família da escola, necessitando de estratégias para superar tais situações, realizando eventos periódicos com o intuito de arrecadar verbas e, também, uma oportunidade de trazer a família para a escola.
Por fim, referente a planejar e ministrar aulas, os materiais utilizados, por serem pertencentes à casa de apoio e usados para as tarefas diárias, nem sempre se encontravam disponíveis para o uso nas aulas planejadas. Não havendo um local adequado e próprio para armazenar tais materiais, por vezes acabavam molhados pela chuva, danificados por uso indevido durante os momentos que a quadra era alugada, além de estarem sujeitos à poluição por conta da exposição.
Atividades realizadas e resultados
As atividades motoras eram exploradas desde os fundamentos mais básicos até os mais complexos, sendo que este aumento gradual de dificuldade ocorria somente se as crianças respondessem, conforme recursos próprios, positivamente às tarefas anteriores.
Esta progressão, ocorria levando em consideração a sequência de desenvolvimento abordada por Gallahue, Ozmun, e Goodway (2013), onde refere-se às habilidades motoras com foco no movimento ou na visão do movimento de forma qualitativa, decorrendo o avanço de forma progressiva, de menos eficientes para mais eficientes, sem regredir e nem pular etapas.
Ao acompanhar alguns dos problemas diários enfrentados pelas funcionárias da casa de apoio, referente às crianças e, a pedido de algumas funcionárias, atividades específicas foram elaboradas para trabalhar áreas que auxiliariam nas tarefas e vivências diárias das crianças dentro e fora da casa, como as de higiene e alimentação, no entanto, o objetivo do desenvolvimento motor sempre era mantido durante estas aulas.
Além destas, foram realizadas atividades em que a própria criança tinha a liberdade para montar e explicar como uma brincadeira ocorreria, assim, os objetos e brinquedos oferecidos para montar a brincadeira foram escolhidos de forma que a tarefa motora estivesse sempre presente. As atividades eram planejadas visando maior participação e imersão das crianças, voltadas também para auxiliá-las na prática de atividades motoras na vida diária, realizadas de forma lúdica, por meio de brincadeiras e jogos.
A cultura lúdica, abordada por Brougère (1998), permite tornar o jogo possível por meios de um conjunto de procedimentos, atribuindo aos significados de vida comum um outro sentido ao remeter a ideia do faz-de-conta, iniciando uma brincadeira ao fugir do cotidiano, permitindo exploração do mundo e suas possibilidades, além de facilitar a prática e o processo de ensino, sendo realizados de forma prazerosa.
Por meio da observação, juntamente com registros dos acontecimentos das aulas, além de fotos e vídeos, foi possível notar algumas mudanças apresentadas pelas crianças participantes do projeto. Desta forma, tornou-se viável fazer com que as atividades fossem reguladas, aumentando gradativamente a sua dificuldade e, assim, fornecendo maior estímulo para as crianças.
Os resultados obtidos no projeto mostraram uma melhora perceptível nas habilidades motoras das crianças, que conseguiram realizar atividades nas quais antes demonstravam dificuldades ou, até mesmo, não conseguiam desempenhar. Também apresentaram maior facilidade na realização das atividades, a cada vez que estas eram repetidas ou pouco modificadas onde, por exemplo,a aluna não conseguia realizar o zigue-zague entre as cadeiras, então apenas corria lateralmente em relação às mesmas e, posteriormente, a mesma aluna realizou o zigue-zague.
Também foi notável o crescimento da autonomia dos alunos, os quais foram aos poucos se adaptando com as aulas, exibindo cada vez mais segurança para executar tarefas nas quais antes sentiam-se incapazes ou possuíam medo, principalmente nas tarefas de manipulação e estabilização. Tal autonomia permitiu que estas crianças não só executassem tais atividades, mas também as realizassem sozinhas, sem auxílio direto. Além destas mudanças motoras, as funcionárias da casa de apoio relataram a melhora no comportamento social e educacional das crianças participantes do projeto.
Conclusões
O projeto proporcionou uma variedade de experiências que se mostraram importantes para minha formação pessoal, acadêmica e profissional, onde pude desenvolver maior confiança para exercer minha profissão como professor de Educação Física. Isso trouxe maior conhecimento na área ao apropriar-me de conteúdos relacionados a projetos com maior aprofundamento e experiência.
Vale ressaltar a importância deste projeto na vida acadêmica de alunos do curso de Licenciatura em Educação Física, devido à experiência oferecida pelo projeto e a aproximação do aluno com o público infantil, o qual poderá, futuramente, ser sua área de trabalho.
O fato do público alvo do projeto serem crianças filhas de migrantes, provou-se um desafio muito interessante pois, apesar de crianças, estas encontravam-se expostas a problemas familiares e à distinção de culturas, considerando que a criança filha de migrante encontra-se no centro de duas culturas diferenciadas, onde em casa recebem o ensino de uma e fora desta, o da outra cultura, o que influenciava seu comportamento durante as aulas.
Cada dificuldade encontrada pelo caminho, revelou-se como uma grande oportunidade de aprendizagem, expondo-me a uma nova cultura e novas possibilidades para o planejamento de uma aula.Sendo assim, o projeto propiciou uma série de oportunidades de aprendizagem e aperfeiçoamento, além de ter tido êxito ao alcançar o objetivo do mesmo no desenvolvimento motor das crianças participantes.
Referencias
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Brougère, G. (1998). A criança e a cultura lúdica. Revista da Faculdade de Educação, 24(2), 103-116.
Dias, I.S., Correia, S., e Marcelino, P. (2013). Desenvolvimento na primeira infância: características valorizadas pelos futuros educadores de infância. Revista Eletrônica de Educação, 7(3), 9-24. http://dx.doi.org/10.14244/19827199483
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Ferreira, D.C., Santos, M.A.D., e Ravazzani, E.D.D.A. (2017). Avaliação do perfil nutricional de crianças de um CMEI da região de Curitiba-PR. Cadernos da Escola de Saúde, 1(9). https://portaldeperiodicos.unibrasil.com.br/index.php/cadernossaude/article/view/2332
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Paim, M.C.C. (2003). Desenvolvimento motor de crianças pré-escolares entre 5 e 6 anos. Lecturas: Educación Física y Deportes, 58. https://www.efdeportes.com/efd58/5anos.htm
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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 25, Núm. 274, Mar. (2021)