ISSN 1514-3465
Uma análise das atividades circenses como conteúdo
da Educação Física: aportes teóricos e práticos
An Analysis of the Circus Activities as Content of
Physical Education: Theoretical and Practical Contributions
Un análisis de las actividades circenses como contenido
de la Educación Física: aportes teóricos y prácticos
Aron Martins Toledo*
toledo.amt@gmail.com
Luana Zanotto**
luanazanotto@yahoo.com.br
*Professor de Educação Física. Licenciado em Educação Física
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
**Professora Adjunta na Faculdade de Educação Física e Dança
da Universidade Federal de Goiás (UFG)
Doutora em Educação e Licenciada em Educação Física
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
(Brasil)
Recepção: 30/05/2019 - Aceitação: 11/08/2020
1ª Revisão: 15/11/2019 - 2ª Revisão: 05/07/2020
Documento acessível. Lei N° 26.653. WCAG 2.0
Este trabalho está sob uma licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0) https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/deed.pt |
Citação sugerida
: Toledo, A.M., & Zanotto, L. (2020). Uma análise das atividades circenses como conteúdo da Educação Física: aportes teóricos e práticos. Lecturas: Educación Física y Deportes, 25(268), 14-26. Recuperado de: Recuperado de: https://doi.org/10.46642/efd.v25i268.2157
Resumo
A partir da análise da produção científica sobre os temários inter-relacionais do universo circense e da Educação Física escolar, este estudo objetiva analisar as potencialidades das atividades circenses no processo de formação de alunos e professores. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, perscrutando trabalhos relevantes na área publicados nos últimos dez anos. A literatura consultada indica que o trato pedagógico destas atividades podem auxiliar no desenvolvimento dos aspectos biodinâmico, artístico, afetivo e sociais dos sujeitos, o que caracteriza o circo como um completo e complexo objeto de ensino e aprendizagem. Do mesmo modo, amplia o conhecimento docente para o ensino. No entanto, foi verificado que a ausência de formação sistematizada e, por vez, interesse docente, somada a ausência de estrutura física e escassez de materiais, torna o ensino dificultoso. Relevamos o potencial das atividades circenses no âmbito da Educação Física mediante a oportunidade de formação continuada e formação docente para proposição de conteúdo e estratégias pedagógicas diversificados.
Unitermos:
Educação Física. Escola. Circo. Formação de professores.
Abstract
From the analysis of the scientific production on the interrelationships between circus and school Physical Education, this study aims to analyze the circus activity potential in the student and teacher´s formation. It is a bibliographical research, scanning the relevant research published in the last ten years. The literature review indicates that circus as content can acts in the development of the biodynamic, artistic, affective and social subjects aspects, showing them as a complete and complex object of teaching and learning. Likewise, it expands teaching knowledge for teaching. However, it was found that the lack systematic training and the teacher's interests, makes teaching difficult, as well as the absence of physical structure and scarcity of materials. We highlight the potential of circus activities in Physical Education with the continuing education opportunity and teachers training in proposing content and diversified pedagogical strategies.
Keywords
: Physical Education. School. Circus. Teacher education.
Resumen
A partir del análisis de la producción científica acerca de los temarios inter-relacionados del universo circense y la Educación Física escolar, este estudio tiene como objetivo demostrar la potencialidad de la actividad circense para el proceso formativo de alumnos y profesores. Se trata de una investigación bibliográfica, que estudia el trabajo relevante en el área en los últimos diez años. La literatura consultada indica que el tratamiento pedagógico de estas actividades ayudan el desarrollo de los aspectos biodinámicos de los sujetos, así como en las dimensiones artísticas, afectivas y sociales, que caracterizan al circo como un objeto completo y complejo de enseñanza y aprendizaje. También expande el conocimiento docente para la enseñanza. Sin embargo, la ausencia de capacitación sistemática y, al mismo tiempo, la disposición del maestro dificultan la enseñanza, así como la ausencia de estructura física y escasez de materiales. Destacamos el potencial de estas actividades en el ámbito de la Educación Física según la oportunidad de educación continua e formación docente en proponer contenidos y estrategias pedagógicas diversificadas.
Palabras clave:
Educación Física. Escuela. Circo. Formación de docentes.
Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 25, Núm. 268, Sep. (2020)
Introdução
Quando pensamos em atividade física ou em aulas de Educação Física (EF), propriamente, logo podemos imaginar a prática de alguma modalidade esportiva ou uma série de movimentos repetitivos para fins de melhoria da aptidão e condicionamento físico. Por mais que possa haver prazer e satisfação envolvidos nestas atividades e em outras historicamente consideradas tradicionais a escola, tais como, o ensino de jogo pré-desportivo e ginástica, alguns alunos sentem-se excluídos ou não são, de fato, incluídos nas tarefas pedagógicas.
O cenário em evidência respalda-se no modelo como as aulas de EF são habitualmente configuradas, relevando metodologias técnico-tradicional do ensino somado ao fenômeno da esportivização. Explicações correlatas a este cenário sustentam-se pela falta de habilidade motora discente na execução de técnicas de modalidades esportivas, ou pela falta de afinidade para com elas e, ainda, pelo simples desinteresse pela prática, por não endossar a atribuição de sentidos e significados a ela. Estes fatores podem corroborar à ampliação dos altos índices de evasão da EF. (Aniszewski et al., 2019; Pizani et al., 2016; Tenório & Silva, 2015)
A partir da revisão de literatura levado a cabo nesta pesquisa, entre outros estudos (Tucunduva & Bortoleto, 2019; Sousa et al., 2019; Tucunduva, 2015; Alves et al., 2013, Takamori et al., 2010; Duprat & Gallardo, 2010), evidenciamos a ausência de estrutura física e de recursos materiais em muitas escolas (e demais cenários educativos) brasileiras, especialmente, quando se trata da diversidade de conteúdos e estratégias metodológicas. Tal ausência de recursos, por vezes, resulta no tradicional ensino do futsal para os meninos e voleibol para as meninas, não tendo, portanto, ampliação das ações de ensino e, por conseguinte, aprendizagens significativas.
A realidade incentiva-nos a propor a inclusão das atividades circenses como conteúdo de ensino e refletir sobre a sua presença nas escolas como um conteúdo plural e multifacetado. Destarte, ao abordar os aspectos físicos e artísticos atinentes ao circo de maneira sistematizada, o professor pode contribuir para o desenvolvimento das dimensões biofísicas dos alunos, assim como das dimensões sociais, emocionais, artísticas e afetivos. Neste sentido, o conteúdo circo, como patrimônio histórico e cultural da humanidade, pode proporcionar o aumento do interesse e inclusão discente, além de viabilizar momentos de satisfação e superação, transpondo os processos educativos adquiridos em âmbito escolar também em valores humanos necessários às relações em sociedade. (Torres, 1998)
De acordo com Dias (2009, p. 16), “os valores humanos são fundamentos morais e espirituais da consciência humana e promovem a verdadeira prosperidade do homem, da nação e do mundo”. Por isso, para Duprat & Gallardo (2010) as atividades circenses permitem a apreensão e percepção de diferentes elementos, ao trabalhar a criatividade, expressão corporal, cooperação, capacidades e habilidades como parte do processo de ensino e aprendizagem.
Inúmeras investigações relatam as experiências de inclusão do tema circo na EF escolar (Tucunduva, 2015; Camarês, 2014; Sacco & Braz, 2010; Duprat, 2007; Parma, 2007; Ferreira, 2006), demonstrando os efeitos positivados no processo de desenvolvimento da criança e do adolescente. Com base nas constatações destes estudos, o circo configura-se como um conteúdo importante a ser tratado em diversos âmbitos educativos e formativos.
Apesar da posição defendida por este lastro teórico, ao analisarmos o Material de Apoio ao Currículo do Estado de São Paulo (Brasil), no tangível ao ensino da componente nos anos finais do Ensino Fundamental, em específico, nos sextos e sétimos anos, tais atividades são abordadas apenas como complemento para o ensino da ginástica rítmica. As atividades aparecem apenas como meio para o ensino ginástica, em virtude da sua relação com o processo histórico de desenvolvimento da modalidade (São Paulo, 2015). Em linha de síntese, configura-se como meio para viabilizar o ensino de outro objeto, portanto, sem finalidades como conteúdo próprio.
Em contrapartida e, defendendo as atividades circenses como tema suficientemente completo e não apenas como aporte para o ensino da ginástica, temos que a sua ausência em um material de cunho governamental torna ainda mais difícil a inserção e incentivo para a prática entre os alunos nas escolas públicas. Na análise de materiais recentes sobre as propostas curriculares em território brasileiro, a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) (Brasil, 2017) aborda as atividades circenses apenas na Educação Infantil, ou seja, não são referidas como tema de ensino em outros níveis da Educação Básica. O seguinte trecho explicita tal consideração: “[...] apreciar e participar de apresentações de teatro, música, dança, circo, recitação de poemas e outras manifestações artísticas”. (Brasil, 2017, p. 44)
Diante do panorama apresentado, questionamos: que potencial assume as atividades circenses na formação dos alunos e nos âmbitos da formação continuado de professores? Com isso, a presente pesquisa objetiva analisar a potencialidade das atividades circenses no processo de formação de alunos e professores.
Métodos
Este estudo caracteriza-se como uma pesquisa de abordagem qualitativo-descritiva (Minayo & Costa, 2018; Creswell, 2007; Triviños, 1987; Lüdke & André, 1986) na perspectiva da pesquisa bibliográfica. Para Lima & Mioto (2007), o método tem sido utilizado com frequência em estudos exploratórios e descritivos, casos em que o objeto pode ser investigado em maior profundidade. A sua indicação para as pesquisas acadêmico-científicas relaciona-se ao fato de a aproximação com o fenômeno ser dada a partir da análise aprofundada de fontes bibliográficas.
Realizamos um estudo analítico de teses, livros e artigos sobre os temários/descritores Circo e EF escolar. Apesar de contarmos com o recente aumento de publicações sobre o tema, o campo ainda compõe pouca expressividade em território brasileiro, sobremaneira, nas discussão no ensino formal. Tendo em vista este cenário, o método empregado viabilizou o levantamento sistemático de pesquisas acadêmicas congregando mais dados, hipóteses e teorias para repensar o universo circense como conteúdo da EF escolar.
Deste modo, em acordo com os preceitos metodológicos da revisão bibliográfica, foram percorridas as seguintes etapas de seleção do material: 1) Parâmetro temático: selecionamos obras com os termos chave ‘Circo’; ‘Educação Física’ e ‘Atividades Circenses na escola’ e, para garantir a interpretação e compreensão dos dados em sua real profundidade, foi feita a seleção de alguns estudos com base em sua relevância e disseminação em âmbito nacional ao longo da última década; 2) Parâmetro linguístico: todas as referências utilizadas são de autores brasileiros, com textos publicados em língua portuguesa; 3) Principais fontes: as fontes analisadas foram: uma (01) tese de doutorado, um (01) livro, e quatro (04) artigos científicos publicados em periódicos especializados na área, conforme apresentado na tabela a seguir.
Tabela 1. Artigos científicos publicados
Tipo
do material |
Título |
Autoria |
Ano
de publicação |
Tese de doutorado |
Circo
na formação inicial em educação física: inovações docentes,
potencialidades circenses. |
Bruno Barth Pinto Tucunduva |
2015 |
Livro |
Artes
Circenses no âmbito escolar. |
Rodrigo Mallet Duprat Jorge Sergio Perez Gallardo |
2010 |
Artigo |
Circus and curricular innovation in Physical Education Teachers’
Education (PETE) in Brazil. |
Bruno Barth Pinto Tucunduva Marco Antonio Coelho Bortoleto |
2019 |
Artigo |
Limitações e formação docente para abordar a temática circense nas
aulas de educação física. |
Aureliana de Jesus Dias Sousa et al. |
2019 |
Artigo |
A
arte circense no contexto da educação física. |
Gizelle Laís da Costa Alves Thamy Saraiva Alves Fábio José da Costa Alves |
2013 |
Artigo |
Abrindo
as portas para as atividades circenses na educação física escolar: um
relato de experiência. |
Flora
Sumie Takamori et al. |
2010 |
A análise apresentada pauta-se na inter-relação entre a bibliografia consultada e as posições assumidas pelo autor sobre o tema. Com isso, foi possível perceber a importância da abordagem eleita na produção deste estudo, o que pode servir como base para futuros estudos em busca de aportes teóricos e práticos para o ensino do circo na EF e na escola.
Resultados e discussões
A discussão do corpus busca analisar e refletir criticamente o modo como as atividades circenses tratadas como conteúdo legítimo da EF e a sua potencialidade no processo de formação dos alunos. No livro de Duprat & Gallardo (2010), intitulado “Artes Circenses no âmbito escolar”, o circo é compreendido como conteúdo completo para a aprendizagem significativas ao auxiliar no desenvolvimento motor e no desenvolvimento psicossocial dos estudantes. O trabalho pedagógico neste âmbito oferece acesso a um conteúdo cultural que estimula o interesse pela arte e pela cultura. Nas palavras da autoria:
O circo constitui-se como parte integrante da população cultural e artística. Ao longo dos séculos ele influenciou modos de produzir, modos de agir e modos de fazer arte, caracterizando-se como um fenômeno sociocultural. Somente por esse motivo já seria justificada sua inclusão no âmbito educacional, mas se por inúmeros fatores isso ainda não ocorreu, cabe a nós educadores, atentarmos para este conhecimento, que de maneira geral se encaixa como uma “luva”, sendo legitimado a fazer parte dos projetos político-pedagógicos das escolas. (Duprat & Gallardo, 2010, p. 56)
O circo é assim descrito como meio para aprendizagens e reflexões teórico-práticas quer para o professor quer para o aluno, sendo, inclusive, inserida nos contextos políticos escolares (interfaces com os projetos político-pedagógicos). Destarte, reivindicamos a defesa das artes circenses no currículo da EF nos diversos níveis de ensino. Nesta mesma obra, o desenvolvimento físico é abordado de várias formas e por meio das modalidades circenses, contemplando o trato da resistência, força, velocidade, flexibilidade, expressão corporal, lateralidade e percepção espacial. A título de exemplo, apresentam-se, minuciosamente, as possibilidades para o ensino do malabarismo, práticas de equilíbrio, jogos de mímicas e de ilusionismo. Releva-se o método como a autoria trata o processo educativo dos alunos, destacando as premissas da diferenciação do ensino e a partir da problematização de cada modalidade, e não apenas a partir da lógica performática ou reprodutiva dos movimentos.
Nesta ótica, o professor deve respaldar os seus saberes e fazeres nas perspectivas críticas do ensino da EF, respeitando as especificidades dos alunos e o conhecimento acumulado sobre o tema. Com isso, o professor deve estar atento as tentativas de realização dos movimentos realizados pelos alunos, percebendo as tomadas de decisões frente as possibilidades e aos desafios propostos em cada modalidade. Da mesma forma, observar as relações entre aluno-aluno e entre aluno-professor, relevando os conhecimentos sobre as condições sociais e históricas destes sujeitos.
As análises empreendidas nos depoimentos dos participantes do estudo de Alves et al. (2013), intitulada: “A arte circense no contexto da educação física”, apresenta os relatos de professores, por sua vez, demonstram que a inserção do circo trouxe benefícios não somente aos alunos, mas também aos professores, conforme expõe o relato de um participante:
[...] as atividades circenses compreendem-se de atitudes que levam ao melhor desenvolvimento da coordenação motora, disciplina, perseverança, postura, equilíbrio, concentração, criatividade, visão periférica, companheirismo e a superação dos próprios limites, colaborando assim, como instrumento de formação cidadã. Encontrando todos esses benefícios numa só arte e vendo as minhas crianças, acompanhando cada passo delas e percebendo que isso me faz feliz também é que eu falo da beleza que é fazer parte desse projeto que me ensinou inclusive a superar os meus próprios limites, principalmente no que concerne a paciência e ao autocontrole e trouxe-me mais uma vez, a confirmação de que grandes desafios como este, nos levam a um grau de satisfação pessoal e profissional incríveis. (Alves et al., 2013, p. 12)
O depoimento vai ao encontro das pretensões do objeto deste artigo, ao relatar a potencialidade da atividade circense em favorecer os processos de formação do aluno, para além de demonstrar as contribuições ímpar ao trabalho docente, mesmo ciente de todas as limitações e dificuldades envolvidas no trato pedagógico nas escolas brasileiras.
Tendo conhecimento de que o conteúdo aborda várias capacidades físicas e habilidades motoras, bem como as habilidades expressivas e artísticas, Duprat & Gallardo (2010) defendem que ao planejar as atividades, além de ajudar o professor a pensar em um conjunto de exercícios físicos, possibilita prever ações para o desenvolvimento sensório-motor e cognitivo. Os autores justificam este ideário com base em outras produções acadêmicas, conforme descrito a seguir.
Para Invernó (2003) e Duprat (2004), o trabalho com as diferentes modalidades circenses proporcionará a melhora dos alunos no que diz respeito às habilidades coordenativas, conhecimento e controle corporal, mais, sobretudo, de sua capacidade comunicativa e expressiva. (Duprat & Gallardo, 2010, p. 57)
Com isso, o intuito da inclusão do circo como conteúdo da EF não é o da profissionalização dos alunos (formação de futuros artistas), mas sim apresentar um leque de vivências respaldadas em valores e estratégias para o desenvolvimento humano de modo integral que incentive e estimule o desenvolvimento motor, moral e cognitivo. Isto significa colaborar para o processo de formação humana, congregando o desenvolvimento das culturas física, artística e cultura. Para tanto, os autores salientam:
Cabe ressaltar que em todos os âmbitos de atuação o profissional de Educação Física deve estar preocupado com a formação humana, independente do nível de aprofundamento, capacitando seus alunos numa ampla esfera de conhecimento, e permitindo a todos aumentar suas possibilidades de interação com seus companheiros, tornando-os, coautores dos saberes desenvolvidos pelo grupo social. (Duprat & Gallardo, 2010, p. 57)
O universo das atividades circenses remetem aos aspectos artísticos que integram elementos educacionais, históricos e culturais, configurando-se oportuno para a construção de regras e aquisição de valores de forma descontraída/divertida. Tais conjunturas permitem a desenvoltura discente na compreensão do seu próprio corpo e do ambiente escolar (e social) que ocupa, trazendo autoconhecimentos sobre si e sobre ser/estar em coletividade.
O artigo intitulado “Abrindo as portas para as atividades circenses na educação física escolar: um relato de experiência” (Takamori et al., 2010), apresenta a análise do conteúdo em aulas extracurriculares de EF, i.e., no seio de um projeto social. A proposta transformou o espaço para a prática em um local educacional parecido com o ambiente das escolas públicas brasileiras, demonstrando que o circo é uma ferramenta também capaz de fazer parte da realidade dos extramuros escolares. Consoante os autores:
Nessa experiência, as atividades circenses foram trabalhadas com o objetivo de proporcionar diversidade cultural, inclusão, autonomia, criatividade, expressão corporal, sociabilidade de forma lúdica. O fechamento do trabalho se deu com a apresentação de um espetáculo circense elaborado pelas próprias crianças. Dessa forma, abandonou se ali os moldes convencionais para as aulas de Educação Física (Takamori et al., 2010, p. 4).
Cumpre explicitar que o contexto analisado corresponde a um conjunto de aulas ministradas para duas turmas distintas, nomeadamente, “iniciantes” (crianças de seis a dez anos) e a turma “intermediários” (adolescentes de onze a quinze anos). Sobre estas experiências, os autores relatam: “[...] a novidade deste conteúdo gerou uma transformação para o projeto pedagógico do professor” (Takamori et al., 2010, p. 6). Deste modo, a investigação reforça a abrangência e aderência do circo como conteúdo educacional mesmo fora do ambiente escolar, pois quando trabalhado de modo intencional e sistematizado, pode congregar possibilidades educativas significativas. O estudo ainda confirma que os alunos desenvolvem capacidades e habilidades com mais efetividade quando comparado ao ensino de conteúdos convencionais das aulas (por exemplo, esportes, jogos pré-desportivos).
De maneira análoga, retomando a investigação de Alves et al. (2013), importa destacar as interfaces da arte circense e o lúdico na EF, conforme relatado a seguir:
Compreendemos que a educação física como um ato social, histórico e cultural, em que a arte circense vem dessa visão da arte do lúdico e da criatividade, usando a educação física para permear sua vertente que é arte de ensinar “brincando”, pois permite ao sujeito vivenciar uma representatividade do seu imaginário, enquanto aprende conceitos básicos de disciplina, de concentração, de trabalho em grupo e individual, além da importância cultural que a arte circense mostra, pois essa arte é milenar, possibilitando adequar os objetivos traçados numa prática educativa, que juntamente ao conhecimento empírico dos discentes, possam contribuir para que essa arte circense promova desafios que levem os discentes a superarem seus desafios de vida. (Alves et al., 2013, p. 13)
O estudo retrata a realidade docente na inter-relação entre a EF, arte circense e a brincadeira, criando um eixo de trabalho a partir da fusão destes três elementos. Detemos atenção especial ao brincar relacionado à componente curricular na escola e ao circo. Notadamente, endossamos a discussão com a questão do lúdico, justamente para demonstrar o caráter prazeroso e divertido intrínseco a estas atividades, fazendo com que sejam mais bem aceitas pelos alunos, especialmente no ensino de crianças pequenas (Zanotto & Alves, 2017).
Este modelo agrega elementos lúdicos e educativos, relacionando o conteúdo com métodos pedagógicos realizados em outros espaços sociais, tal como demonstrado no estudo de Takamori et al. (2010), no debate do circo em um projeto social. Para Duprat (2010), os aspectos lúdicos novamente aparecem como potencial educativo do trato das atividades circenses. Além disso, fortalece a sua inserção na EF como elemento da cultura corporal de movimento, como parte das distintas manifestações do movimento humano.
Em linha de síntese, as experiências registradas por Alves et al. (2013) e Takamori et al. (2010), sugerem que as atividades circenses configuram-se em conteúdo viável pelo seu potencial lúdico-social, o que cria um interesse maior das crianças pela prática de atividade física ao incentivar a aquisição de valores socialmente desejáveis enquanto se divertem. Em consonância, para Duprat & Gallardo (2010), o trato pedagógico destas atividades atuam como propostas de incentivo ao exercício físico quanto como meio para trabalhar os elementos artístico e cultural.
Em que pesem estas considerações, o estudo de Sousa et al. (2019), por sua vez, evidencia as limitações físicas, materiais e dos conhecimentos técnicas dos professores para tratarem do circo na escola. Tais limitações foram avaliadas como aspectos que dificultam o ensino nas aulas de EF. Neste viés, os participantes da referida pesquisa afirmam a impossibilidade de intervenção pedagógica pelos seguintes motivos:
P1: [...] por que falta espaço né, não tem espaço adequado [...] P2: [...] eu acho que a escola não tem nem os materiais necessários, nem a estrutura necessária. P3: [...] um pouco do espaço físico também que não está preparado pra isso, eu vejo que ainda não está preparado. P8: [...] quando chove aqui não tem como dar aula como você pode ver, a quadra é toda aberta, e o pátio muito pequeno. (Sousa et al., 2019, p. 131)
Igualmente evidencia as limitações docentes face às concepções teóricas, i.e., do preparo intelectual com embasamento científico e estratégias didáticas para trato do tema. Na ótica dos autores, a ausência destes aportes atua como o principal motivo para a restrição para ensino do conteúdo, associando tais lacunas formativas ao percurso de formação inicial e à possibilidade de formação continuada de professores. (Sousa et al., 2019)
Em perspectiva avançadas ao contexto de formação docente, Tucunduva (2015), em sua tese de doutoramento, analisou o temário circo na formação inicial em EF em instituições de ensino superior brasileiras. Os resultados demonstraram que o trato do tema circo neste âmbito oferece oportunidade para diálogo com a arte “[...] promovendo novas propostas de difusão dos saberes circenses na sociedade” (p. 112).
Em específico, em artigo de mesma autoria em parceria com o orientador, Tucunduva & Bortoleto (2019), objetivou analisar as experiências de professores em universidades brasileiras, no artigo: Circus and curricular innovation in Physical Education Teachers’ Education (PETE) in Brazil 1. Embora o estudo evidencie o trato pedagógico do circo na EF pela lógica criativa de jogar com o corpo e o movimento que integra expressão artística, habilidades e capacidades físicas, demonstra que a abordagem dos docentes se concentra em habilidades básicas com pouca atenção à dimensão artística:
A distinção educativa do circo entre outras artes performáticas (e seus atributos na perspectiva Formação de Professores na Educação Física) é que coloca a habilidade e a capacidade física como protagonistas para o desempenho 2. (Tucunduva & Bortoleto, 2019, p. 10) (tradução livre)
Assim, os participantes relatam ensinar habilidades motoras com foco nas técnicas básicas, uma vez que os alunos demonstram ter pouca ou nenhuma experiência com o tema no campo da arte. A afirmação releva uma das possíveis barreiras do trabalho prático acerca do tema, qual seja, a necessária aquisição de técnicas corporais e de conhecimentos aprofundados sobre o assunto. A ausência destes conhecimentos, por vezes, justifica a incipiência do ensino, já que a maioria das realidades escolares oferecem pouco tempo para ações de organização da prática, assim como reduzidas oportunidades para aquisição do conhecimento do conteúdo para o ensino.
Em nosso sentido interpretativo, mesmo face às inúmeras adversidades, o professor deve compreender o contexto onde a prática pedagógica acontece, ser sensível e atento à observação e escuta das vozes discentes em suas diferentes linguagens ao expresar-se por meio de movimentos correspondentes as modalidades, tais como, manipular, rolar, saltar, equilibra-se, etc. A organização da prática nas perspectivas de ensino da arte e cultura circense, uma vez planejada e registrada (após o desenvolvimento), além de contribuir para o gerenciamento das ações de ensino, pode fortalecer a presença do conteúdo e corroborar ao aumento de interesse nas aulas. Esta reflexão assenta-se em um ciclo pedagógico composto pela observação, planejamento, ação e avaliação da prática, todavia apoiado em diferentes formas de registro e de documentação que permitem ao professor tomar decisões sobre a prática e adequá-la às características dos alunos e do contexto social em que trabalha.
Para tanto, o professor deve congregar a fundamentação histórica e crítica em relação aos conteúdos atinentes ao ensino do circo, relevando mérito para justificar a sua presença da EF escolar. Tendo como intenção oferecer o circo como conteúdo regular da disciplina, o autor supracitado demonstra ser possível romper os paradigmas estabelecidos pela prática de atividades rotineiras da área, transformando-a.
Ainda que passível de diferentes óticas, o interesse docente primeiro por este universo configura um importante passo para proposição das manifestações circenses na EF. Não obstante, avança para a elaboração de estratégias pedagógicas teórico-práticas em compasso com a realidade escolar, tendo como pano de fundo o potencial do circo como conteúdo curricular atuante nos processos de formação de desenvolvimento do alunado e professorado. Conforme afirmam Sacco & Braz (2010), ter como professor de atividade circense o mesmo que ministra aulas de EF pode dar ainda mais segurança aos pais e aos alunos, os quais poderão ter maior aproveitamento e interesse pelas atividades físicas.
Conclusões
Esta pesquisa de cunho bibliográfico objetivou analisar a potencialidade das atividades circenses no processo de formação de alunos e professores. A trajetória investigativa debruçou-se na análise de materiais relevantes a respeito no ensino do universo circo na EF nos últimos dez anos, demonstrando que as práticas inerentes a este fenômeno histórico e cultural corroboram ao desenvolvimento discente de modo integral, além de ofertar contribuições aos docentes.
Ao tratar do circo como parte das diversas manifestações da cultura corporal de movimento, a vivência das modalidades auxiliam os aspectos biodinâmicos do sujeito, bem como as suas dimensões afetivas, sociais e emocionais. Em linha de síntese, foi possível constatar o circo como conteúdo de ensino completo e multifacetado, com fins em si mesmo, por assim trazer benefícios ao desenvolvimento físico, motor, cognitivo e cultural.
Segundo os estudos analisados, os professores que já trataram do tema percebem um aumento consideravelmente do interesse discente pela prática da atividade física, entre outras condicionantes, por experimentarem conteúdos diversos e não excludentes. Por certo, o ensino não se configura pela reprodução dos movimentos corporais verificados nos espetáculos circenses, mas sim pela diferenciação do trato do conteúdo em acordo com as realidades escolares. A prática deve adentrar as especificidades dos alunos, professores e das condições concretas de trabalho, dela proceder a problematização como prática corporal na componente EF. Com isso, ressaltamos as suas potencialidades e contributos à proposição de uma EF plural e de qualidade. No entanto, apontamos como imprescindível as oportunidades para formação continuada para qualificação do ensino, bem como o interesse do professor em abordar o tema.
Não nos esquecemos das dificuldades enfrentadas no cotidiano escolar para implantação do conteúdo, por exemplo, a falta de materiais específicos as modalidades, a escassez de referenciais teórico-práticos no exercício da docência, a falta de informação sobre os benefícios destas atividades e a ausência de tempo e interesse para sistematização da prática a ser desenvolvida.
A questão que permanece é como professor estabelece critérios para eleger o que e como ensinar das questões atinentes ao circo? O saber docente sobre este conteúdo e, sobremaneira, o não saber, constituem-se em um importante tema a ser debruçado pela comunidade científica. Este feito poderá trazer anúncios para que o trato pedagógico do circo concretize-se cada vez mais em sentidos e significados aos alunos e professores, assim garantindo sua presença e permanência na escola.
Nosso ensejo é de que o presente estudo alavanque futuras pesquisas para ampliar o ensino do circo em seus aspectos históricos, artísticos, culturais, sociais, políticos e simbólicos. No entanto, afirmamos que este anseio deve ser preludiado nos cursos de Licenciatura pelo Brasil, de modo que os âmbitos didáticos e pedagógicos do circo seja proposto tão logo na formação inicial do professor, para que o mesmo possa desenvolver sistemas de planejamento e de ação pedagógica qualificadas no futuro trabalho docente.
Nota
Tradução dos autores: O circo e a inovação curricular na formação de professores de educação física no Brasil.
Texto original: The educational distinction of circus among other performing arts (and its especial attribute in PETE perspective) is that it puts skill and physical capacity as the main protagonists of performance.
Referências
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Aniszewski, E., Henrique, J., Oliveira, A. J. de, Alvernaz, A., & Vianna, J. A. (2019). (A)motivation in physical education classes and satisfaction of competence, autonomy and relatedness. Journal of Physical Education, 30, e3052. Epub December 20. Recuperado de: https://dx.doi.org/10.4025/jphyseduc.v30i1.3052
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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 25, Núm. 268, Sep. (2020)