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ISSN 1514-3465

 

Lazer e juventude universitária: em foco as danceterias

Leisure and University Youth: in Focus the Dance Clubs

Recreación y juventud universitaria: las discotecas en foco

 

Thaiane Bonaldo do Nascimento*

thaianebonaldo@yahoo.com.br

Elizara Carolina Marin**

elizcarol@yahoo.com.br

 

*Graduada em Educação Física - Licenciatura

pela Universidade Federal de Santa Maria

Especialista em Pesquisa em Movimento Humano, Sociedade e Cultura

Especialista em Educação Física Escolar, Mestra em Educação Física

na linha de Aspectos socioculturais e pedagógicos da Educação Física

pela Universidade Federal de Santa Maria

Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria

Professora de Educação Física na rede municipal de educação do município

de Toropi/RS atuando em turmas de Educação Infantil e Ensino Fundamental I

**Graduada em Licenciatura Plena em Educação Física

pela Universidade Federal de Santa Maria

Mestre em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas

Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Doutorado Sanduíche pela Universidade Autônoma de Barcelona

Pós-doutorado (Estágio Sênior no Exterior)

na Università degli Studi di Roma "La Sapienza"

(Brasil)

 

Recepção: 26/02/2020 - Aceitação: 06/05/2021

1ª Revisão: 29/04/2021 - 2ª Revisão: 02/05/2021

 

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https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/deed.pt

Citação sugerida: Nascimento, T.B., e Marin, E.C. (2021). Lazer e juventude universitária: em foco as danceterias. Lecturas: Educación Física y Deportes, 26(278), 2-13. https://doi.org/10.46642/efd.v26i278.2021

 

Resumo

    A pesquisa objetiva compreender as danceterias como uma forma de vivência de lazer da juventude universitária anteriormente ao fenômeno ocorrido na Boate KISS. O estudo se caracteriza como uma análise documental da mídia jornalística Diário de Santa Maria. Para análise das mensagens utilizou-se da Análise de Conteúdo. Frente a precarização do lazer público da cidade as danceterias consolidaram-se como um dos principais espaços de lazer da juventude universitária e, consequentemente, constituem parte da economia de Santa Maria. A análise das matérias da mídia impressa Diário de Santa Maria contribuíram para inferir sobre a relação direta entre juventude, danceteria, superlotação e consumo de bebidas alcoólicas. As imbricações entre juventude universitária e lazer mercadoria é uma realidade, no entanto, os empreendimentos de lazer não podem ser entendidos somente pelo viés do negócio, mas articulador do encontro e da fruição. Realizar a crítica ao lazer mercadoria não é negar o seu usufruto, mas instigar a tomada de consciência da alienação e do estranhamento imposto por este, e da luta a ser travada no âmbito da política para a consolidação do lazer público e de qualidade, como direito social e expressão de liberdade.

    Unitermos: Atividades de lazer. Juventude. Danceterias.

 

Abstract

    The research aims to understand dance clubs as a form of leisure experience for university youths before to the phenomenon that occurred at the KISS Nightclub. The study is characterized as a documentary analysis of the journalistic media Diário de Santa Maria. Content analysis was used to analyze the messages. Faced with the precariousness of public leisure in the city, dance clubs have consolidated themselves as one of the main leisure spaces for university youth and, consequently, form part of Santa Maria's economy. The analysis of the articles in the newspaper Diário de Santa Maria contributed to infer about the direct relationship between youth, nightclubs, overcrowding and consumption of alcoholic beverages. The imbrications between university youth and leisure merchandise are a reality, however, leisure enterprises cannot be understood only by the business bias, but an articulator of encounter and fruition. To criticize merchandise leisure is not to deny its enjoyment, but to instigate awareness of the alienation and strangeness imposed by it, and of the struggle to be fought within the scope of the policy for the consolidation of public and quality leisure, as a right expression of freedom.

    Keywords: Leisure activities. Adolescent. Dance clubs.

 

Resumen

    La investigación tiene como objetivo entender las discotecas como una forma de experiencia de recreación para los jóvenes universitarios antes del fenómeno ocurrido en KISS Nightclub. El estudio se caracteriza por ser un análisis documental del medio periodístico Diário de Santa Maria. Para analizar los textos se utilizó Análisis de Contenido. Ante la precariedad de la recreación pública en la ciudad, las discotecas se han consolidado como uno de los principales espacios de ocio de la juventud universitaria y, en consecuencia, forman parte de la economía de Santa María. El análisis de artículos en el medio impreso Diário de Santa Maria contribuyó a inferir la relación directa entre juventud, discoteca, hacinamiento y consumo de alcohol. Las imbricaciones entre la juventud universitaria y la mercantilización del ocio es una realidad; sin embargo, los emprendimientos de ocio no pueden entenderse solo desde la perspectiva de los negocios, sino como un articulador del encuentro y el disfrute. Criticar al mercantilización del ocio no es negar su disfrute, sino instigar la conciencia de la alienación y la enajenación que impone, y de la lucha que se libra en el marco político para la consolidación del ocio público y de calidad, como derecho social y expresión de la libertad.

    Palabras clave: Actividades de recreación. Juventud. Discoteca.

 

Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 26, Núm. 278, Jul. (2021)


 

Introdução 

 

    Bares, danceterias, luzes, sons, bebidas alcoólicas e jovens nas ruas são componentes sedutores da noite no meio urbano e apresentam à juventude a sensação de liberdade e fruição. Não é novidade o crescimento de estabelecimentos privados voltados ao lazer, os quais reúnem inúmeros jovens. As danceterias são exemplos de espaços integrados ao cenário urbano que se transformaram em vitrines e anunciam ser fonte de liberdade e êxtase à juventude. (Nascimento, e Marin, 2015a)

 

    As mudanças sociais, tanto no âmbito cultural quanto no econômico, político e tecnológico, contribuíram para que o lazer sucumbisse à forma mercadoria. O que não está explicito é que a felicidade consumida nos espaços de lazer mercadoria também é fonte de coerção da sociedade capitalista. Como expõe Mascarenhas (2018, p. 101) o lazer vem sofrendo um processo de mercantilização orientado produzindo altas doses de prazer numa lógica de escapismo, ou seja, o lazer-mercadoria constitui um serviço “propriamente dito, em que você compra o serviço e a prática do lazer, mas ele também aparece como uma espécie de valor de uso prometido”.

 

    No contexto da cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil, juventude, universidade e lazer mercadoria estão imbricados e compõem a lógica econômica, social e cultural da cidade. Diante dessa configuração, o objetivo da pesquisa é: compreender as danceterias como uma forma de vivência de lazer da juventude universitária anteriormente ao fenômeno ocorrido na Boate KISS, em 27 de janeiro de 20131.

 

Métodos 

 

    O presente estudo se caracteriza como uma análise documental da mídia jornalística Diário de Santa Maria (DSM). A adoção da mídia jornal como documento de análise se deu tendo em vista sua periodicidade, diversidade, amplitude e por tratar de eventos noticiados. Em especial, a escolha pelo DSM se justifica por ser produzido no município de Santa Maria, atender, nos anos de 2013 e 2014, a 39 municípios da região central do estado do Rio Grande do Sul e disponibilizar as matérias com sistema on-line. Para o acesso aos documentos de análise foi concedida autorização pelo DSM.

 

    Para interpretação dos dados, advindos dos documentos, utilizou-se da Análise de Conteúdo a luz de Franco (2020). Para a autora, a Análise de Conteúdo deve se apropriar do contexto social, da influência ideológica e idealizada, dos impactos que provocam e orientam diferentes comportamentos e das condições históricas das mensagens, pois requer que as descobertas tenham relevância teórica.

 

    O levantamento das matérias jornalísticas foi realizado em dois momentos: no período de outubro a dezembro de 2013 e no transcurso do ano de 2014, ambos por meio do sistema online do DSM. No levantamento das matérias correspondentes ao ano de 2013 e 2014, observou-se que o jornal destinou na maioria de suas edições uma seção exclusiva para o caso do desastre na Boate KISS, o que congregou um número significativo de matérias, contribuindo para construção do corpus de análise. Para consulta detalhada no sistema de busca do jornal foi utilizada a expressão “KISS”.

 

    No ano de 2013 foram encontradas 1.234 matérias e 260 no ano de 2014. Como escopo delimitou-se as matérias da mídia impressa DSM que possuem relação com a temática no período de 27 de janeiro de 2013 até 31 de dezembro de 2014. Cabe destacar que foi adotada uma postura de distanciamento às mensagens de cunho sentimentalista e sensacionalista. Por meio de leitura aprofundada dos títulos e conteúdo das matérias, foram selecionadas 282 matérias relativas ao ano de 2013 e 91 relativas ao ano de 2014.

 

    As matérias selecionadas foram organizadas em pastas correspondentes a cada mês do ano destacando as seguintes informações: título, autoria, data, edição, página e caderno. No segundo momento as matérias foram categorizadas, de modo que: a categoria “Risco” abordou 129 matérias, a categoria “Segurança” 185 matérias, 23 matérias correspondem a categoria “Legislação”, 26 matérias a categoria “Danceteria” e 10 matérias a categoria “Fiscalização”.

 

    Para esse estudo abordou-se apenas as matérias relativas as categorias: danceteria e risco. As matérias analisadas dentro destas categorias apontaram três elementos essenciais, quais sejam: juventude universitária de Santa Maria/RS, danceterias e Boate KISS.

 

Resultados 

 

    A relação entre juventudes e lazer mercadoria resultou em um desastre que repercutiu em nível mundial, qual seja: a tragédia da Boate KISS. A referida boate localizava-se na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil e constituía um dos principais espaços de lazer da juventude universitária, no entanto ganhou repercussão mundial no dia 27 de janeiro de 2013 onde um incêndio levou 242 jovens a óbito, feriu mais de 600 e deixou um desalento em toda cidade.

 

    Cabe destacar alguns elementos, a partir dos dados analisados, que compunham a cidade de Santa Maria, anteriormente ao desastre, e consequentemente o lazer da juventude universitária, a fim de atender ao objetivo proposto por este estudo. Em 2013, a cidade a cidade congregava 7 instituições de ensino superior presenciais, portanto, um contingente de aproximadamente 40.000 universitários graduandos e pós-graduandos. Dentre estes, 21.504 alunos eram acadêmicos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). A diversidade de cursos ofertados pelas instituições de ensino superior, associado ao sonho de ingressar na universidade, reflete num expressivo número de jovens migrando de outras cidades, estados brasileiros e países para Santa Maria, a qual passou a ser reconhecida simbolicamente como “Cidade Universitária”.

 

    Imersos no contexto universitário, numa nova cidade, num novo contexto social, distante do controle dos pais e familiares, a juventude busca novas relações, interações e experiências e o lazer passa a compor um tempo e espaço de possibilidades. Entretanto, a pesquisa de Pippi et al. (2011) apresenta que os espaços públicos de Santa Maria são poucos, fragmentados, de pequeno porte e baixa qualidade. A união juventude e espaços de lazer público precário contribuiu para que o lazer privado e, em especial, as danceterias ganhassem destaque na vivência da juventude anteriormente ao desastre na Boate KISS.

 

    O panorama de lazer santa-mariense era composto por 10 danceterias2, anteriormente ao fatídico dia 27 de janeiro de 2013, as quais com a sua arquitetura, decoração, atrações, estilo musical e estratégias publicitárias instigavam ao consumo. De acordo com a pesquisa de Nascimento, e Marin (2018, p. 143), a composição estética externa e interna das danceterias são formas de produzir e fomentar o consumo do lazer mercadoria, afinal “sedução, luxo e satisfação são algumas das variáveis mercadológicas que contribuem para os usuários preferirem uma danceteria à outra”.

 

    A análise das matérias da mídia impressa DSM (2013, 2014) contribuíram para inferir sobre a relação direta entre juventude, danceteria, superlotação e consumo de bebidas alcoólicas. Segundo a análise documental do DSM (2013, 2014) uma prática comum da juventude anteriormente ao desastre na Boate KISS era a realização do tradicional “esquenta”, o qual acontecia antes da entrada nas danceterias e era regado pelo consumo de bebidas alcoólicas. As matérias publicadas assinalaram que o “esquenta” começava em torno das 22 ou 23 horas, uma vez que as festas iniciavam em torno de meia-noite ou 1 hora da manhã.

 

    O consumo de bebidas alcoólicas não se resumia ao “esquenta”, mas se ampliava nas festas. Ao investir na variedade de bebidas alcoólicas e no marketing para o consumo os proprietários da Boate KISS se mostraram cientes de que eram tratadas pela juventude como sinônimo de êxtase do lazer. As matérias analisadas apontaram que a Boate KISS realizava a importação irregular de bebidas alcoólicas, mesmo com alguns produtos da mesma marca de fabricação brasileira e acenam que “a escolha pelos produtos estrangeiros em detrimento de nacionais de mesma marca seriam indícios de que pode ter havido importação irregular para baratear custo”. (Receita Federal recolhe bebidas, DSM, 26-03-2013)

 

    A superlotação na Boate Kiss foi outro elemento salientado no lazer das juventudes. Os relatos expressos nas matérias jornalísticas apontaram que a danceteria constantemente ultrapassava a lotação máxima estipulada pela legislação (760 pessoas) e, segundo o depoimento de uma ex-funcionária ao DSM, quando passava de 900 pessoas os gerentes da danceteria aumentavam o preço do ingresso na hora, mas continuavam entrando pessoas (Sem limite de público, DSM, 06-09-2013). A superlotação é um dos elementos apropriado pelo lazer mercadoria e inculcado à juventude como algo positivo, pois na lógica do negócio o número de consumidores confere a certificação de excelência do produto consumido.

 

    Entretanto, mesmo sendo as danceterias o principal espaço de lazer da juventude universitária de Santa Maria o funcionamento destas concentrava-se em 4 dias da semana. E, somada suas capacidades de lotação não comportavam sequer 50% do total de universitários, quiçá os demais jovens da cidade e o público em geral. A realidade elucidada sinaliza que na cidade de Santa Maria a restrição de possibilidades de lazer não se restringia ao público, mas também ao lazer privado, o que exige atenção e ações emergentes de ambos os setores.

 

    Cabe realçar que no contexto de Santa Maria os elos das danceterias com os universitários iam além de tempo e espaço para o lazer. Desencadeando, conforme estudo de Marin, Bernardi, e Marin (2016), um processo de apropriação da solenidade de Colação de Grau, que deveria ser pública, pela iniciativa privada, transformando-a em mercadoria. Seguem os autores explanando que 10 empresas privadas especializadas em festas de formatura instalaram-se na cidade, as quais consideram a Colação de Grau um evento mercadológico desarticulado do processo educativo e formativo da Universidade.

 

    A organização deste espetáculo demandava esforços da juventude universitária para dar conta dos altos preços cobrados pelas empresas especializadas em formaturas. Os acadêmicos iniciam os preparativos desde os primeiros semestres do curso, lançando mãos de mensalidades, rifas e festas. Como assinala Harvey (2011), num mundo de circulação de produtos, aqueles que necessitam ou desejam a mercadoria também precisam ter o dinheiro para comprá-la.

 

    A busca dos recursos para o tão sonhado ritual de formatura uniu universitários e danceterias. Nascimento, e Marin (2015a) apontam em sua pesquisa que os acadêmicos firmavam parcerias com os proprietários das danceterias, tornando-se promoters das festas, vendendo ingressos, criando nomenclaturas com fins de marketing e, consequentemente, selecionando o público frequentador. Seguem as autoras elucidando que o foco das festas, derivada da união danceterias-universitários, era atrair a juventude universitária, inclusive com ingressos de menor valor do que os vendidos aos não universitários. O envolvimento das turmas limitava-se a divulgação e venda de ingressos, enquanto as demandas burocráticas, a exemplo das condições dos espaços, seguranças, alvarás, entre outros, eram de responsabilidade das danceterias.

 

    Foi um evento promovido pela parceria universitários-danceterias que resultou na incomensurável tragédia da noite de 27 de janeiro de 2013 e que provocou a morte de 242 jovens entre centenas de feridos. A festa, nomeada “Agromerados”, foi promovida por 6 turmas de diferentes cursos da UFSM na Boate KISS. Afinal, a busca pelo êxtase e modismos conduz a juventude ao lazer, nem sempre vigilante às normas de segurança relacionadas à infraestrutura do espaço, tornando-se uma preocupação social e uma questão pública.

 

    Outro elemento a ponderar refere-se à produção e a frequência das matérias jornalistas, as quais foram diminuindo com o distanciamento temporal do desastre na Boate Kiss. No ano de 2013, ano do desastre na Boate Kiss, foram produzidas 1.243 matérias jornalísticas e em 2014 apenas 260 matérias referentes ao desastre.

 

Discussões 

 

    O primeiro elemento a ponderar em decorrência dos resultados da pesquisa é o próprio conceito de juventude. Segundo Dayrell (2016), a juventude é uma categoria socialmente produzida que se transforma no contexto das mutações sociais. Nesse sentido, destaca o autor, os jovens são sujeitos sociais que experenciam suas juventudes de acordo com o contexto sociocultural no qual se inserem, de modo que a sociabilidade passa a ganhar destaque entre as juventudes, pois responde as suas necessidades de comunicação, solidariedade e identidade.

 

    Através da sociabilidade a juventude transforma os espaços físicos em espaços sociais, o que se expressa no sentido atribuído aos bares, às praças, as danceterias, entre outros espaços de lazer que constituem palco de expressão da cultura juvenil. Afinal, as juventudes não são meras receptoras, mas sim produtoras de cultura, de ideais de sociedade, de questionamentos, ou seja, não são se resumem a um vir a ser, mas são sujeitos sociais, que têm historicidade, interpretam o mundo e dão sentido à posição que nele ocupam e às relações que estabelecem.

 

    Em especial, a juventude universitária santa-mariense se depara com restrições ao vivenciar o lazer como espaço de sociabilidade, pois os espaços públicos encontram-se sucateados e os espaços privados não dão conta de atender o grande número de consumidores. Nesse sentido, torna-se fundamental (re)pensar os “espaços públicos de lazer, propondo ações que garantam de maneira efetiva o direito à cidade, o direito ao lazer e o direito de ir e vira todos e todas de forma igualitária e democrática”. (Andrade, e Pachêco, 2016, p. 154)

 

    A negação do lazer como direito social, conforme define a Constituição Federal Brasileira em seu artigo 6º, impele ao lazer privado e contribuiu para que os shoppings, aluguel de quadras esportivas, clubes, bares, danceterias, entre outros, tornarem-se negócios altamente lucrativos na cidade de Santa Maria. Essa realidade favorece tanto a segregação social -uma vez que o poder aquisitivo acaba sendo um dos determinantes para as tomadas de decisões diante das escolhas existentes- quanto a privação da liberdade de escolha. No entanto Arraes, Pessoa, e Moura (2019) ressaltam o lazer como um direito social e não cabe à entidade alguma negar à população este direito. Porém, nas atuais condições da sociedade deteriora-se não só o tempo de lazer dos indivíduos, mas também o tempo dedicado aos cuidados com a saúde, a família e a socialização.

 

    Evidencia-se uma organização do sistema capitalista para a ampliação e efetivação do lazer sob a forma mercadoria, seguidos do descaso com o lazer público. Tal realidade, ressalta Harvey (2013), é resultado de uma política neoliberal que grava na geografia dos espaços sua proposição contrária aos direitos públicos. Segundo o autor, o direito a cidade deve atender às necessidades coletivas da população e não apenas um direito ao que já existe, para tanto tem de ser tomado pelo movimento político. Nas palavras de Nascimento, e Marin (2018, p. 143)

    Evidencia-se uma ordem do sistema capitalista para a ampliação e efetivação do lazer sob a forma mercadoria, dificultando a concretização de alternativas. Ademais, as condições materiais dos lazeres públicos não favorecem que os sujeitos exerçam efetiva e amplamente à experimentação da multiplicidade de gostos estéticos e de conteúdos culturais. Tal realidade figura uma desordem na dimensão lúdica, crítica, educativa do lazer, pois as políticas públicas não atendem essa demanda, afinal requerem compromisso econômico, repercutindo na desintegração dos direitos sociais. (Nascimento, e Marin, 2018, p. 143)

    Diante da precarização do lazer público as danceterias ganham destaque na vivência de lazer da juventude e economia da cidade de Santa Maria. A juventude universitária imersa nos pressupostos mercadológicos do lazer não percebe que as danceterias são mercadorias embaladas por rótulos que destacam a aquisição de liberdade e de lazer ideal. Afinal, a alienação dos sujeitos sociais constitui elemento imprescindível para a circulação das mercadorias e, consequentemente, para o fortalecimento do lazer como mercadoria.

 

    A Boate KISS era considerada uma das mais sofisticadas da cidade, pois comportava inúmeros aspectos que interferem na e preferência dos usuários de estabelecimento privados de lazer, como: estacionamento, segurança, entorno do estabelecimento, conforto acústico e térmico, fachada externa e estética interna. Ademais, localizava-se no centro da cidade, a sua frente havia um estacionamento privado e a menos de 100 metros de distância um ponto de ônibus, facilitando o acesso dos frequentadores. A composição estética da edificação das danceterias é um elemento imperativo para a adesão da juventude, pois, no plano da imagem as promessas do lazer não têm limites. (Nascimento, e Marin, 2015b)

 

    Outro elemento a ponderar é o espetáculo musical, de luzes e de reunião “jovial” propiciado pelas danceterias, os quais produzem um mundo condizente com o imaginário social, ou seja, um mundo de pessoas bonitas, bem vestidas, alegres, jovens, livres das regras impostas pela sociedade adulta e livres de sofrimento. Vivenciar a danceteria passa a ser uma imersão num mundo de fantasias e de sonhos, tornando a alienação ainda mais presente na vivência da juventude universitária. Nascimento, e Marin (2015b) destacam que a Indústria do Entretenimento gera constantemente estímulos e produtos com o objetivo de circulação das mercadorias e as danceterias atendem a esta lógica revestindo sua edificação e serviços, a fim de manter os jovens sobre o poder de sua sedução.

 

    Somados aos elementos supracitados, outros dois ganhavam destaque na vivencia do lazer em danceterias na cidade de Santa Maria: o consumo de bebidas alcoólicas e a superlotação.

 

    As matérias analisadas no DSM apontaram a ligação entre o consumo de bebidas alcoólicas e o lazer na Boate KISS. Ademais, a juventude apresenta interesse em bebidas de valores elevados, pois seu consumo na danceteria concede status social perante os outros frequentadores. Romera et al. (2018), em pesquisa que analisou as relações entre tempo livre e o uso de álcool e outras drogas entre estudantes universitários do Brasil e Portugal, destaca que os estudantes universitários apresentam um padrão de beber excessivo como forma de utilização do tempo livre.

 

    A configuração expressa entre lazer, juventude e bebidas alcoólicas é uma realidade, dado isto, não podemos tratá-las com um discurso moralista que defende a tolerância zero para seu consumo. Faz-se necessário gerar o debate e a reflexão sobre as contradições que o cenário de consumo de bebidas alcoólicas como sinônimo de lazer provoca.

 

    A superlotação foi um dos elementos desencadeadores para o desastre na Boate KISS, a qual é resultado da obsessão dos proprietários por lucro e acabou resultando na insegurança dos frequentadores. A adesão acrítica do lazer mercadoria leva ao consumo não apenas de produtos como também de atitudes e contribui, de acordo com Nascimento, e Marin (2015b), para que as festas, mais especificamente as privadas, consolidem-se como espaço de reunião, muito mais divertidas quanto mais pessoas congreguem. Como aponta Beck (2011) os riscos surgem, sobretudo, na ambivalência da sociedade de mercado desenvolvida, pois não são apenas riscos, são também oportunidades de mercado que desenvolvem oposições entre os afetados pelos riscos e os que lucram com eles.

 

    Cabe destacar que, a legislação brasileira não é omissa a superlotação e estabelece o número de frequentadores que cada estabelecimento pode comportar. No entanto, a Boate KISS não levava em conta o limite a ela imposto. Torna-se, assim, explícito a prioridade dada pela danceteria a estética e ao aumento da lucratividade, invés da segurança dos frequentadores.

A união universitário e danceterias é outro elemento a ponderar. Segundo pesquisa de Nascimento, e Marin (2015b, p. 6) “em Santa Maria a lógica mercadológica reconheceu e adotou o ritual de formatura como um grande filão e seus envolvidos como consumidores e aliados”. Os jovens ao promoverem as festas acabam contribuindo para tornar as danceterias uma mercadoria de alto valor e excitam os demais universitários a consumi-las, constituindo-se como principal espaço de organização da cultura do lazer universitário santa-mariense.

 

    Outro elemento apontado pela pesquisa foi importância das instituições de ensino superior para cidade de Santa Maria, as quais compõem um dos principais segmentos da economia, consolidando-se, de acordo com Righi, e Ruppenthal (2013), em peças-chave para o desenvolvimento regional, impactando nas áreas demográficas, política, econômica, cultural, educacional, social e de infraestrutura. Portanto, a implementação das instituições de ensino superior -federal e/ou privadas- ultrapassam a fronteira do conhecimento e influenciam diretamente no setor social e econômico dos pólos onde se alocam.

 

    Podemos dizer que, as danceterias são expressão de um sistema econômico que tem como ápice o lucro, independentemente dos riscos ofertados aos frequentadores. Os proprietários revestem seus estabelecimentos de liberdade e felicidade ilusória induzindo a juventude a consumi-los. Entretanto, esse invólucro esconde a essência da danceteria, ou seja, pressupostos ideológicos, que nas condições em que se apresenta a juventude não pode fornecer mais do que a ilusão de plenitude de lazer por tempo determinado.

 

    No que se refere a produção de matérias jornalísticas sobre o desastre evidenciou-se a diminuição das mesmas. Podemos nos arriscar a dizer que a produção das matérias acompanhou também o engajamento social em prol da luta por esclarecimentos sobre o incêndio na danceteria. Passados 9 anos do desastre ainda não temos um desfecho para o mesmo, o que traz a sensação de impunidade.

 

Conclusões 

 

    A juventude universitária de Santa Maria está envolta em um processo de formação superior, de busca de novas experiências, de precarizados espaços e possibilidades de lazer público. Diante desse cenário impera na cidade de Santa Maria a lógica do lazer mercadoria, e as danceterias passaram a consolidar um dos principais espaços de lazer da juventude universitária e, consequentemente, parte da economia da cidade.

 

    Evidenciou-se que as danceterias da cidade estão articuladas à lógica do sistema de produção capitalista e, nesse ínterim, o atendimento às normas de segurança pública se esvanecem em detrimento da principal preocupação: o lucro. A juventude sedenta por novas experiências e momentos de lazer é convencida de que a superlotação e o consumo de bebidas alcoólicas são parte do lazer, não questionando seus riscos.

 

    As imbricações entre juventude universitária e lazer mercadoria é uma realidade, no entanto, os empreendimentos de lazer não podem ser entendidos somente pelo viés do negócio, mas articulador do encontro e da fruição de sujeitos sociais. Nessa direção, realizar a crítica ao lazer mercadoria não é negar o seu usufruto, mas instigar a tomada de consciência da alienação e do estranhamento imposto por este, e da luta a ser travada no âmbito da política para a consolidação do lazer público e de qualidade, como direito social e expressão de liberdade.

 

    Cientes de que o estudo deu conta de compreender algumas das imbricações entre lazer e juventude que surgiram no decorrer da pesquisa, mas não a totalidade, e que motiva a continuar em estudos futuros. Afinal, o desastre da Boate Kiss inestimável para os familiares e para quem o viveu, não pode ser esquecido pelo conjunto social. Foi um evento que registrou a gravidade de riscos na esfera do lazer e nas tecnologias que incitam desejos, especialmente, sob a lógica do lucro.

 

Notas 

  1. Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES).

  2. Absinto Hall, Boate KISS, Muzeo Pub, Mariachis Bar, Ballare, Macondo Lugar, The Holy, Boate Corujão, Bombai e Reduto Pub.

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Lecturas: Educación Física y Deportes, Vol. 26, Núm. 278, Jul. (2021)