Construção histórica da capoeira: as voltas que o mundo dá... La construcción histórica de la capoeira: las vueltas que da la vida... Historic building of capoeira: the world turns… |
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*Licenciado em Educação Física, UFVJM **Licenciado em Educação Física, UFMG. Mestre em Educação Física, UFMG Professor Assistente, nível 3, do Departamento de Educação Física da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri Membro do Grupo Capoeira Gerais, Mestre Mão Branca |
Diego Régis dos Santos* Leandro Ribeiro Palhares** (Brasil) |
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Resumo Este trabalho tem como objetivo apresentar e discutir algumas das dimensões da capoeira e suas diferentes formas de apropriação ao longo de sua história. O estudo se deu através de revisão bibliográfica em que se destacasse a relação da capoeira com os acontecimentos políticos, sociais, econômicos e educacionais brasileiros e a partir de então foram identificadas e apresentadas no trabalho às seguintes formas de apropriação da capoeira: instrumento de libertação; instrumento higiênico/eugênico; ritualidade e fundamento; viés educacional; mercadoria; fruição. A capoeira no decorrer dos tempos, quase cinco séculos de história, teve várias faces e diferentes formas de apropriação que contribuíram para que ela se tornasse uma referência da cultura afro-brasileira e legítima enquanto conteúdo educativo. Unitermos: Capoeira. História. Cultura.
Abstract This paper aims to present and discuss some of the dimensions of capoeira and its different forms of appropriation throughout its history. The study used the literature review for highlight the relationship of capoeira with the political, social, economic and educational Brazilians events. In addition, we have been identified and presented the following forms of appropriation of capoeira: an instrument of liberation; instrument hygiene/eugenics; rituality and foundation, educational bias; merchandise; fruition. Capoeira in the course of time, almost five centuries of history, has many faces and different forms of appropriation that helped to become a reference of african-brazilian culture and as legitimate and educational content. Keywords : Capoeira. History. Culture.
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 17, Nº 174, Noviembre de 2012. http://www.efdeportes.com/ |
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1. Introdução
O percurso histórico da capoeira vem sendo objeto de interesse de estudiosos e pesquisadores e cada trabalho realizado tem um enfoque diferenciado, a exemplo: histórico, educacional e identitário (CAPOEIRA, 1996; REIS, 1997; SOARES, 1999; 2004; ABIB, 2005; OLIVEIRA; LEAL, 2009; CONDE, 2003; CORDEIRO, 2007; ABREU, 2005; MOURA, 2009). Este trabalho tem como objetivo apresentar e discutir algumas dessas dimensões da capoeira e suas diferentes formas de apropriação ao longo de sua história. O estudo se deu através da revisão bibliográfica e reflexão das referências acima citadas, e outras consultadas, em que se destacasse a relação da capoeira com acontecimentos históricos nacionais, de relevância social, política e econômica. A partir dessa premissa foram identificadas e apresentadas no trabalho as seguintes faces/apropriações da capoeira: instrumento de libertação; instrumento higiênico/eugênico; ritualidade e fundamento; viés educacional; mercadoria; fruição (SANTOS, 2010).
Através do presente trabalho, em diferentes momentos históricos, cada sujeito, malta, grupo ou instituição se apropriou da capoeira de forma diferente conferindo a ela suas próprias características e desejos. Mas não se pode omitir que os verdadeiros sujeitos históricos da capoeira, seus Mestres, foram os que permitiram tais apropriações, em um jogo social, político e econômico de adaptação e sobrevivência. A capoeira no decorrer dos tempos teve várias faces e diferentes formas de apropriação que contribuíram para que ela se tornasse uma referência da cultura afro-brasileira e legítima enquanto conteúdo educativo (CAVALCANTE; PALHARES, 2010; PALHARES, 2012).
2. Capoeira: formas históricas de apropriação
Baseadas na leitura reflexiva das referências bibliográficas selecionadas foram identificadas, ao longo da história, as seguintes formas de apropriação da capoeira: instrumento de libertação; instrumento higiênico/eugênico; ritualidade e fundamento; viés educacional; mercadoria; fruição. Essas seis formas de entendimento histórico da capoeira serão apresentadas a seguir.
2.1. Instrumento de Libertação
No tempo da escravidão os escravos rurais tinham o domingo para praticar seus costumes, dentre eles a capoeira. Talvez pela ginga característica da capoeira os senhores imaginassem que os escravos estavam dançando, considerando inofensivas aquelas artimanhas. Os escravos de ganho eram dotados de autonomia para andar livremente pelas ruas das cidades comercializando para seus senhores. Com isso as oportunidades de prática da capoeira e de articulações de revoltas eram maiores. Assim, os negros criaram, através de seus corpos, uma forma de se libertar da violência que sofriam continuamente.
Na transição da monarquia para a república, no Rio de Janeiro, surgiram as maltas, organizações compostas por negros, mestiços e demais minorias perseguidas. O objetivo era reivindicar espaço social e garantir a sobrevivência. Os métodos eram a violência, provocando terror e caos, e associações políticas. As principais maltas foram os Guaimuns, associados aos republicanos, e os Nagoas, associados aos monarquistas. Mais uma vez a capoeira serviu de instrumento de libertação, desta feita uma libertação social e política.
Nas primeiras décadas do século XX nasce na Bahia uma forma de se pensar a capoeira que hoje vem prevalecendo e que inclusive foi de essencial importância para a retirada da mesma do código penal brasileiro: a associação da mesma à cultura popular, o legado cultural de um povo. E assim também foi um instrumento de libertação, pois vários capoeiristas na ânsia de uma ascensão social se valeram dessa premissa para disseminar a capoeira no Brasil e, posteriormente, no exterior.
2.2. Instrumento Higiênico e Eugênico
No século XIX o estado vinculou a capoeira ao aparato militar. Um exemplo foi a Guerra do Paraguai (1864-1870), quando vários capoeiristas foram recrutados (Batalhão dos Zuavos, especialista em combate com arma branca) com a promessa de liberdade ao final da guerra. Mal sabiam eles que estavam sendo mandados para morrer e esta intencionalidade esteve ligada às propostas de higienismo e eugenismo pela raça branca.
No século XX vários métodos ginásticos europeus foram importados para o Brasil: Francês, Sueco e Alemão. Alguns desses métodos estavam também ligados a esse movimento higiênico/eugênico e na tentativa de consolidar uma identidade brasileira, aconteceu à procura por um método ginástico brasileiro. E a capoeira apareceu como principal opção. Duas tentativas foram registradas. Um oficial do exercito brasileiro, que se denominou como O.D.C. (ofereço, dedico e consagro à distinta mocidade), idealizou o guia do capoeira ou “Gymnastica Brasileira”, que considerava a capoeira como forma de defesa pessoal. Além disso, procurou desvincular a imagem da capoeira às “raças inferiores”, como a negra, tornando a capoeira regrada, metodizada, higienizada e elitizada. Outra proposta foi a de Annibal Burlamaque, o Mestre Zuma, em sua obra “Gimnastica Nacional: capoeiragem – Methodisada e Regrada” (1928), que objetivou esportivizar a capoeira, assemelhando-a ao box e a descaracterizando em relação às suas raízes afro-brasileiras.
2.3. Ritualidade e Fundamento
Talvez seja a dimensão mais importante da capoeira, por apresentar o mais rico costume: a relação entre Mestre e discípulo. Aqui a capoeira carrega toda a essência africana, o princípio de ensinar a partir do contato e da demonstração; um forte senso coletivo que também é uma herança dos grupos tribais africanos. Pode-se dizer que a capoeira das primeiras décadas do século XX apresentava a pedagogia africana, um instrumento de aproximação dos negros até sua raiz, sua essência, seus valores.
Capoeira de Mestre Pastinha
Mestre Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha, 1889-1981) foi o que mais aproximou a capoeira brasileira da essência africana de ensinar de oitiva, ou seja, por imitação. A capoeira de Mestre Pastinha era diferente por que ele procurava diferenciá-la da capoeira de rua que, segundo ele, era praticada por indivíduos de mau caráter, que nada contribuíam para a valorização da nossa cultura. Com ele a capoeira foi usada como valorização do negro; como instrumento para elevação da cultura negra.
Capoeira de Mestre Bimba
Mestre Bimba (Manoel dos Reis Machado, 1900-1974) foi o criador da capoeira regional, responsável direta pela disseminação da capoeira pelo Brasil e pelo mundo. Ele buscou uma forma de valorizar a capoeira e viu que através do esporte poderia proporcionar este status. O objetivo era valorizar não só a capoeira mas chamar a atenção para o mundo negro. O trabalho dele foi fundamental para que a capoeira e as demais manifestações africanas e afro-brasileiras fossem retiradas da criminalidade.
Outros ilustres Mestres
Mestre Waldemar (Waldemar Rodrigues da Paixão, 1916-1990); Mestre Canjiquinha (Washington Bruno da Silva, 1925-1994); Mestre Noronha (Daniel Coutinho, 1909-1977); Mestre Traíra (José Ramos do Nascimento); Mestre Cobrinha Verde (Rafael Alves França, 1917-1983); Mestre Totonho de Maré (Antônio Laurindo das Neves, 1894-1974). Todos esses Mestres, e outros não citados aqui, contribuíram, cada um à sua forma, para que a capoeira fosse reconhecida, dando a ela seu devido valor e passando a seus discípulos esse espírito de valorização da mesma.
2.4. Viés Educacional
A capoeira sempre foi um meio de educação. Durante todo o período da escravidão ela educou os corpos negros para a luta, a guerra, a fuga e a sobrevivência. Na transição dos séculos XIX e XX a capoeira foi o principal acesso à cultura, a história e a arte para muitos de seus praticantes, principalmente em Salvador, onde passou a ser associada à cultura popular.
A partir da publicação da obra “Subsídios para o estudo da metodologia do treinamento da capoeiragem”, de Inezil Penna Marinho, em 1945, a capoeira passou a ser vista como o método ginástico brasileiro, servindo como educação física, com a finalidade de adestrar os corpos para servir a nação e a produção industrial.
A partir da década de 1990 até os dias de hoje a capoeira vem ganhando espaço nas escolas e universidades, inclusive respaldada por leis que regulamentam a educação: Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/1996); Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN/1997); Conteúdo Básico Comum do Estado de Minas Gerais (CBC/2005); Lei 10639/2003 – obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas. Além disso, um sem número de trabalhos de conclusão de cursos superiores, monografias de especialização, dissertações de mestrado e teses de doutorado vem sendo produzidas tendo a capoeira como objeto central de suas investigações.
2.5. Mercadoria
Atualmente a capoeira é praticada em mais de 130 países. Se por um lado esse dado é motivo de orgulho, por outro acarreta preocupações. Um grande número de praticantes passa a ser visto como “fatia de mercado”, ou seja, um público ávido por consumir capoeira, que passa a ser transformada em mercadoria.
O aspecto a ser levado em conta nesse processo de mecadorização é a produção excessiva de produtos a respeito da capoeira. Está cada vez mais fácil encontrar livros, cd’s, dvd’s, revistas, roupas, acessórios, instrumentos e souvenirs alusivos à capoeira. Todas essas produções são válidas, mas traz como consequência as publicações/produções de qualidade duvidosa e mal elaboradas, que podem inclusive comprometer o legado deixado pelos Mestres de outrora. Nesse contexto também entram alguns grupos de capoeira que promovem, desordenadamente e sem muito comprometimento, a troca de graduação de seus componentes. Tendo em vista que essa graduação tem um custo para os capoeiristas, esse momento se torna para muitos a principal fonte de arrecadação do grupo. Com isso, o aluno mesmo sem ter aprendido o que é preciso sobe de nível, prevalecendo a lógica da produção e do capital a todo custo.
É inegável os benefícios da mecadorização, pois viabiliza o acesso ao conhecimento. A questão central é que muitas vezes esse conhecimento não é produzido por quem é de direito transmiti-lo. Além disso, quem está se apropriando desse conhecimento deveria fazê-lo de forma crítica.
2.6. Fruição
A capoeira sempre foi praticada como forma de distração. Os escravos rurais e urbanos se valiam dos interstícios do sistema escravocrata para brincarem de capoeira. No início do século XX a capoeira baiana se fez notada como vadiação (diversão, brincadeira), ou seja, a alegria e o prazer de ser capoeirista. A partir da década de 1950, baianos migraram para São Paulo e Rio de Janeiro na esperança de encontrar emprego e uma nova perspectiva de vida. Muitos destes eram capoeiras e passaram a se encontrar, principalmente nos finais de semana, para vadiar, ou seja, jogar capoeira e, dessa forma, matar a saudade de sua terra natal. Hoje em dia a capoeira vem sendo adaptada para a educação infantil, tornando-se uma verdadeira educação física pela capoeira.
Para Dumazedier (1980) o lazer pode ser pensado de acordo com 5 valores (interesses) culturais: artístico; manual; intelectual; social e físico. E cada um deles pode ter relação com a capoeira, respectivamente: musicalidade; construção de instrumentos; busca pela tradição e fundamento; participação em grupos e eventos; a prática em si (treino e jogo). Assim, a capoeira pode ser associada ao lazer, em sua principal característica: a fruição (gozo, usufruto e diversão).
3. Considerações finais
De origem negra, no decorrer do tempo a capoeira passou a ser considerada esporte branco e nos dias de hoje pertence a todos. Algumas vezes suas raízes negras foram negadas e outras tantas exaltadas. No princípio foi utilizada como arma de luta/guerra e outras vezes por pura diversão e prazer. Por um longo período não existiram métodos sistematizados para seu ensino, até que vários deles foram propostos e disseminados. A capoeira foi perseguida, alguns de seus protagonistas sofreram punições terríveis por praticá-la; outras vezes a própria nação se valeu de suas capacidades em guerras e, atualmente, ela é praticada e ensinada nas escolas e universidades.
Pode-se perceber através do presente trabalho que em diferentes momentos históricos cada sujeito, maltas, grupos ou instituições se apropriaram da capoeira de forma diferente, conferindo a ela suas próprias características e desejos. Mas não se pode omitir que os verdadeiros sujeitos históricos da capoeira, os Mestres, foram os que permitiram tais apropriações, em um jogo social, político e econômico de adaptação e sobrevivência. São as voltas que o mundo dá, camaradas.
Referências
ABREU, F.J. Capoeiras: Bahia, século XIX. Salvador: Instituto Jair Moura, 2005.
ABIB, P.R.J. Capoeira angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda. Salvador: EDUFBA, 2005.
CAPOEIRA, N. Capoeira: os fundamentos da malícia. Rio de Janeiro: Record, 1996.
CAVALCANTE, J.C.; PALHARES, L.R. A capoeira na construção da identidade afro-brasileira. In: BISPO, S.C.M.; ISHII, R.A.; NASCIMENTO, F.L. Linguagens e Identidades da/na Amazônia Sul-Ocidental. Rio Branco, AC: EDUFAC, 2010, p.245-254.
CONDE, B.V. A arte da negociação: a capoeira como navegação social. Rio de Janeiro: Novas Ideias, 2003.
CORDEIRO, Y.C. Capoeira, identidade e adolescência. Brasília: editora do autor, 2007.
DUMAZEDIER, J. Valores e conteúdos culturais do lazer. São Paulo: SESC, 1980.
MOURA, J. A capoeiragem no Rio de Janeiro através dos séculos. Salvador: JM Gráfica e Editora, 2009.
OLIVEIRA, J.P.; LEAL, L.A.P. Capoeira, identidade e gênero: ensaios sobre a história social da capoeira no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2009.
PALHARES, L.R. Capoeira e projetos sociais. Revista Vozes dos Vales. Diamantina, MG, v.1, n.1, a.16, 2012.
REIS, L.V.S. O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil. São Paulo: Publisher Brasil, 1997.
SANTOS, D.R. Construção histórica da capoeira: as voltas que o mundo dá... Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Educação Física). Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Diamantina, 49p, 2010.
SOARES, C.E.L. A negregada instituição: os capoeiras na corte imperial (1850-1890). Rio de Janeiro: Access, 1999.
SOARES, C.E.L. A capoeira escrava: e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas: Editora UNICAMP, SP, 2004.
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