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Orientações de valores na Educação Física Escolar: análise sob a perspectiva do Value Orientation Inventory – VOI 2

 

* Doutor em Ciências da Educação e Líder do Grupo de Pesquisa em
Pedagogia da Educação Física e Esporte da UFRRJ

** Graduanda bolsista de iniciação científica – CNPq

(Brasil)

José Henrique*

Rosineide Cristina de Freitas**

henriquejoe@hotmail.com

 

 

 

Resumo

          As crenças, valores e teorias implícitas tomam a forma de conhecimento pessoal e têm sérias implicações para o processo ensino-aprendizagem na medida em que moldam as atitudes e comportamentos do professor influenciando a sua prática pedagógica. O objetivo deste estudo é caracterizar as orientações de valores declaradas por professores de Educação Física, visando analisar as tendências conceitual e pedagógica do grupo investigado. A pesquisa é descritiva e se desenvolveu mediante a aplicação do questionário VOI-2 a 60 professores de Educação Física. Os resultados indicam a prioridade conferida às orientações mais progressistas, mas que nos coloca diante da necessidade de confrontação da intenção manifesta dos professores e sua efetiva prática pedagógica.

          Unitermos: Educação Física. Concepções pedagógicas. Formação profissional.

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - N° 120 - Mayo de 2008

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1. Introdução

    Esta pesquisa se insere no âmbito do programa PIBIC/CNPq realizada no Grupo de Pesquisa em Pedagogia de Educação Física e Esporte da UFRRJ. Este estudo se desenvolve sob o paradigma do pensamento do professor, mediante o qual a análise do processo ensino-aprendizagem só é possível considerando os elementos idiossincráticos particulares aos professores e alunos e que subordinam a intenção e a conduta humana à natureza subjetiva e individual dos sujeitos. No âmbito do ensino a idiossincrasia é entendida com base no modo particular como cada professor vê, sente e reage ao desempenho da tarefa educativa.

    O esforço de sistematização didática não torna o ensino uma atividade completamente racional. O ato educativo compreende uma diversidade razoável de metas, bem como de meios para atingi-las. Muitas decisões de ensino não encontram suporte nas orientações curriculares ou no conhecimento técnico-profissional do professor. Pelo contrário, demandam que o professor recorra ao quadro de referência pessoal para fundamentar as suas escolhas.

    Os quadros de referência que guiam a ação docente se estabelecem com base nas concepções e crenças do professor. Estes fatores são determinantes de suas ações de ensino: escolha e estruturação do conteúdo a ser ensinado, a forma como estes conteúdos são trabalhados, a definição de objetivos de ensino e como serão alcançados, o tempo de prática proporcionado à classe e a avaliação das aprendizagens.

    A investigação sobre as crenças, valores e teorias implícitas dos professores fornece elementos razoavelmente convincentes sobre a influência destes componentes do conhecimento pessoal sobre os julgamentos, decisões e comportamentos.

    O professor traduz e ajuíza os processos sociais decorridos em classe através de quadros de referência que se formam com base no conhecimento e experiência pessoal sobre as pessoas, eventos, e objetos, bem como suas relações intrínsecas. As crenças, teorias e valores se estabelecem como conhecimento que toma a forma de “proposições razoavelmente explícitas sobre os objetos ou classe de objetos” (NISBETT; ROSS, 1980 apud Clark; Peterson, 1986, p. 281). A compreensão destes processos cognitivos, formação, constituição e reformulação das crenças sobre o ensino e valores acerca da atuação docente são pontos de partida para a compreensão da dinâmica da sala de aula.

    As crenças, valores e teorias implícitas tomam a forma de conhecimento pessoal e têm sérias implicações para o processo ensino-aprendizagem na medida em que moldam as atitudes e comportamentos do professor influenciando a sua orientação pedagógica. Funcionam em segundo plano e agem como modeladoras do esquema (CALDERHEAD, 1988; CLARK & PETERSON, 1986).

    Existe acordo na literatura que as crenças se estabelecem através de influências sociais, culturais e educacionais (BEHETS, 2001). Segundo Kulinna, Silverman e Keating (2000) o sistema de crenças funciona com base na intenção manifesta do professor. Associadas a essas intenções estão os valores e as metas assumidas pelo mesmo. Wagner (1984, apud CALDERHEAD, 1988) considera as crenças e teorias implícitas como conhecimentos proposicionais qualitativamente diferentes e carregados de afetividade.

    As crenças e teorias pessoais têm raízes profundas nas experiências pregressas do indivíduo.

    A literatura refere à força como as crenças e teorias pessoais afetam os professores, dando significado ao caráter provisório da formação profissional na prática regular do ensino, e sugerindo a sobreposição das crenças aos conceitos aprendidos. Isto tem sérias implicações para o ensino e a aprendizagem, na medida em que tais construtos podem limitar a introspecção eclética de concepções filosóficas norteadoras do desenvolvimento curricular e da disciplina.

    Doolittle et.al. (1993) destacam a importância de se empreender a análise, discussão, comparação e detalhamento do sistema de crenças durante a formação profissional. De fato, isto pode contribuir para fazer perdurar os efeitos formativos na prática do ensino. Como afiança Munby (1988), “Cambiar la práctica implica... aprender a reconocer y por tanto juzgar los princípios y creencias básicos que les llevan a enseñar de la forma como lo hacen.... deben llegar a ver como construyen sus propias realidades” (p.83).

    A análise de orientações de valores tem sido objeto de investigações em outros Países e denota que o ambiente e o cotidiano escolar influenciam a forma de desenvolvimento da disciplina de educação física. Além disso, alguns estudos reportam resultados contraditórios entre as concepções de maior aderência pelos professores e as orientações curriculares propostas em diferentes níveis e sistemas de ensino (CURTNER-SMITH; MEEK, 2000).

    Considerando que a teoria informa existir uma forte relação entre as crenças e valores do professor, o modo como ele gere a relação pedagógica e como interpreta os conteúdos e as orientações curriculares, justifica-se analisar as orientações de valores adotadas pelos professores, pois este conhecimento permitirá: analisar a coerência e consistência das práticas adotadas pelos professores no cotidiano escolar com os parâmetros curriculares nacionais; antecipar os efeitos da intervenção pedagógica sobre as aprendizagens; analisar que bases – conhecimento técnico-científico vs crenças, valores e teorias implícitas, sustentam a forma como os professores decidem sobre as estratégias de ação que caracterizam a sua prática pedagógica.

    O objetivo deste estudo é caracterizar as orientações de valores declaradas por professores de Educação Física, visando analisar as tendências conceitual e pedagógica do grupo investigado.

2. Metodologia

2.1. Modelo de estudo

    O estudo se caracteriza como descritivo na medida em que se propõe a caracterizar as orientações de valores priorizadas por professores de educação física, enquanto elementos que influenciam a natureza de sua prática pedagógica na escola.

2.2. Amostra

    A amostra foi constituída de 60 professores de Educação Física da rede pública e privada de ensino do Rio de Janeiro, os quais exerciam, maioritariamente, a docência do 6º ao 9º ano do ensino fundamental brasileiro.

2.3. Instrumento

    A identificação das orientações de valores dos professores de educação física foi realizada com recurso ao questionário denominado Value Orientation Inventory – versão 2 (VOI-2) (ENNIS & CHEN, 1993). Este instrumento foi traduzido em seis línguas (chines, Francês, Hebreu, Holandês, Espanhol e Alemão) e tem sido adaptado por pesquisadores de vários países para diversas áreas curriculares, inclusive para a educação física, sendo reportado alto grau de consistência e validade.

    O VOI-2 é um instrumento multidimensional, que permite identificar as prioridades assumidas por professores de educação física em relação a cinco orientações de valores, a saber: (a) Domínio de Conteúdo (DC) – concepção de ensino focada no domínio de habilidades motoras fundamentais, aptidão física e esportes; (b) Processo de Aprendizagem (PA) - concebe o processo ensino-aprendizagem como meio para o aluno aprender-a-aprender, visando conscientiza-los sobre os princípios que conduzem ao aprendizado permanente; (c) Realização Pessoal (RP) – concepção em que predomina o desenvolvimento do ensino voltado para as necessidades e interesses dos alunos buscando o seu desenvolvimento pessoal, autonomia e manutenção de autoconceito positivo; (d) Responsabilidade Social (RS) - apresenta uma concepção comprometida em conscientizar os alunos para a importância do desenvolvimento de relações interpessoais positivas vinculando as necessidades pessoais às necessidades da sociedade e (e) Integração Ecológica (IE) - concebe o desenvolvimento do currículo equilibrando a importância atribuída ao objeto de ensino, as necessidades do aluno, o contexto educacional e social.

    O VOI-2 é composto por 18 conjuntos de cinco questões (representando cada uma das orientações). Os professores são solicitados a registrar valores de 5 a 1 por ordem de importância que atribuem às situações apresentadas, sendo 5 (cinco) para as que consideram mais importante decrescendo até 1 (um) para a menos importante. A caracterização de prioridades dos professores é realizada mediante o cálculo da pontuação alcançada pelo professor em cada uma das cinco orientações e, posteriormente, a classificação através de uma matriz de escores, a qual determina o nível de prioridade de cada orientação de valores em três níveis: baixa, neutra e alta.

    O instrumento, traduzido para a língua portuguesa, foi submetido a um processo fiabilização que compreendeu a análise e validação semântica das questões e adaptação dos itens mediante a sua aplicação em trabalho de campo piloto, antes de sua efetiva utilização nesta pesquisa.

2.4. Tratamento estatístico e análise dos dados

    As prioridades dos professores são caracterizadas através de dados quantitativos, tratados com recurso à estatística descritiva e comportando medidas de freqüência absoluta e relativa para cada nível de prioridade (alta, neutra e baixa).

3. Resultados

    Os resultados são apresentados respeitando a freqüência absoluta e relativa para cada nível de prioridade informada pelos professores em cada uma das orientações avaliadas pelo VOI-2.

    Os resultados revelam que os professores investigados denotam baixa prioridade em Domínio do Conteúdo (68,3%; n=41); Processo de Aprendizagem (18,3%; n= 11); Realização Pessoal (33,3%; n= 20); Responsabilidade Social (3,3%; n= 2); não existindo casos de baixa orientação em Integração Ecológica. É flagrante nestes resultados que a maioria absoluta dos professores não informa intenções de desenvolver o ensino focado exclusivamente na aprendizagem de gestos esportivos ou aquisição de aptidão física pelos alunos, apesar da crítica que constantemente observamos na literatura a este tipo de conduta pedagógica.

    A neutralidade ocorreu nas seguintes proporções para cada orientação de valor: Domínio de Conteúdo (30%; n= 18); Processo de Aprendizagem (68,3%; n= 41); Realização Pessoal (50%; n= 30); Responsabilidade Social (46,7%; n= 28); e Integração Ecológica (36,7%; n= 22). Aqui se destaca o resultado na orientação ‘Processo de Aprendizagem’, na qual se enquadrou a maioria absoluta dos professores. Embora este resultado não garanta a efetiva operacionalização de seus princípios pedagógicos no ensino, ao menos oferece a perspectiva de que, mediante a instrumentalização dos professores através de iniciativas de formação continuada, os professores venham a desenvolver competências de ensino que estimulem os alunos à construção autônoma e apropriação do conhecimento.

    No que diz respeito à alta prioridade os resultados indicam as seguintes proporções nas cinco orientações de valores: alta prioridade em Domínio de Conteúdo (1,7%; n= 1); Processo de Aprendizagem (13,3%; n= 8); Realização Pessoal (16,7%; n= 10); Responsabilidade Social (50%; n= 30); e Integração Ecológica (63,3%; n= 38). A maioria absoluta dos professores informa que desenvolve o ensino buscando equilibrar o ato pedagógico nos três domínios de aprendizagem, na medida em que valoriza tanto a aquisição de conhecimentos procedimentais, quanto o desenvolvimento do conteúdo vinculado às dimensões conceitual e atitudinal. Destaca-se, também o fato de metade dos professores apresentarem alta prioridade em ‘Responsabilidade Social’, a qual releva os valores sociais nas relações interpessoais.

4. Conclusões

    Os resultados indicam a alta prioridade conferida à ‘Integração Ecológica’ e ‘Responsabilidade Social’, orientações identificadas com tendências pedagógicas mais progressistas por valorizarem orientações filosóficas de ensino que, de acordo com Behets; Vergauwen (2004), preconizam uma harmonia entre o objeto de ensino, as necessidades pessoais dos alunos, valorização das relações interpessoais positivas no cotidiano escolar e a conscientização dos alunos para vincular as necessidades pessoais às necessidades da sociedade.

    Em vista desses resultados, ao menos no plano intencional, é possível perceber, entre os professores investigados, indícios de mudança da perspectiva filosófica no ensino da educação física escolar. Ao contrário de muitas críticas às práticas desenvolvidas na educação física escolar que ainda observamos na literatura e no meio acadêmico, as intenções comunicadas pelos professores participantes desta pesquisa indicam prioridades identificadas com orientações progressistas. As críticas possivelmente se amparam na observação das práticas explicitadas nas aulas de educação física, sem considerar as intenções implícitas dos professores em sua prática pedagógica. Por outro lado, é possível que o ensino idealizado pelos professores pode não se concretizar em sua prática pedagógica. Darido; Rangel (2005) comentam sobre a lacuna que se instalou há duas décadas como efeito das críticas às concepções tradicionais de educação física, período em que se discutia mais “o que não fazer nas aulas de educação física, e não apresentando propostas viáveis e exeqüíveis para a prática” (p. 4). Com base nas discussões e troca de experiências com professores do ensino básico, é comum ainda ouvirmos críticas inerentes aos efeitos negativos desta fase. Nesse sentido, os resultados motivam a reflexão sobre as causas que podem estar limitando a real implementação de práticas pedagógicas inovadoras em consonância com as orientações curriculares para a área.

    É de fundamental importância que futuras pesquisas realizadas nesta área se ocupem em verificar, além das cognições docentes e seu discurso pedagógico, em que medida estas variáveis são compatíveis com a prática pedagógica e os conceitos presentes nos parâmetros curriculares nacionais brasileiro, encargos assumidos e em curso no Grupo de Pesquisa em Pedagogia de Educação Física e Esporte da UFRRJ. Assim, sugere-se o aprofundamento de investigações no sentido de verificar em que medida as intenções dos professores se refletem nas atividades de Planejamento, as estratégias e prática pedagógicas, e no processo de avaliação de desempenho do aluno.

Referências

  • BEHETS, D. Value orientations of physical education preservice and inservice teachers. Journal of Teaching in Physical Education, n.20, p. 144-154, 2001

  • BEHETS, D.; VERGAUWEN, L. Value orientations of elementary and secondary physical education teachers in Flanders. Research Quarterly for Exercise and Sport, V.2, n.75, p. 156-159, 2004.

  • CALDERHEAD, J. Conceptualización e investigación del conocimiento profesional de los profesores. In: ANGULO, L. M. V. Conocimiento, Creencias y Teorias de los Profesores: implicaciones para el curriculum y la formación del profesorado. Alcoy-España, p.21-38, 1988.

  • CLARK, C. M.; PETERSON, P. Teachers' thought processes. In: M. Wittrock (Ed.). Handbook of research on teaching. New York: Macmillan Publishing Company, v.3, p. 255-296, 1986.

  • CURTER-SMITH, M. D.; MEEK, G. A.. Teachers’ value orientations and their compatibility with the national curriculum for physical education. European Physical Education Review, 6(1), p. 27-45, 2000.

  • DARIDO, S. C.; RANGEL, I. C. A. Educação física na escola: implicações para a prática pedagógica. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 2005.

  • DOOLITTLE, S. A.; DODDS, P.; PLACEK, J. H. Persistence of beliefs about teaching during formal training of preservice teachers. Journal of Teaching in Physical Education, 12 (4), 355-365, 1993.

  • ENNIS, C.D.; CHEN, A. Domain specifications and content representativeness of the revised Value Orientation Inventory. Research Quarterly for Exercise and Sport, v.1, n.64, p. 436-446, 1993.

  • KULINNA, P. H.; SILVERMAN, S.; KEATING, X. D. Relationship between teachers’ belief systems and actions toward teaching physical activity and fitness. Journal of Teaching in Physical Education, n. 19, p. 206-221, 2000.

  • MUNBY, H. Investigación sobre el pensamiento de los profesores: Dilemas ante la conducta y práctica profesionales. In: ANGULO, L. M. V. Conocimiento, creencias y teorías de los profesores: implicaciones para el currículum y la formación del profesorado. Alcoy: Marfil. 1988.

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revista digital · Año 13 · N° 120 | Buenos Aires, Mayo 2008  
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