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Esporte escolar: algumas relações de gênero e contra-hegemônicas

 

Mestre em Educação pela UFRGS e especialista em Pedagogias do corpo e da saúde
pela Escola de Educação Física da mesma instituição – ESEF/UFRGS.

Coordenador e docente do curso de Licenciatura em Educação Física
do Instituto Blumenauense de Ensino Superior – IBES.

Docente dos cursos de Educação Física da Universidade Regional de Blumenau -
FURB e da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.

George Saliba Manske

gsmanske@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          Apresento as ações e discussões do grupo de estudo, pesquisa e extensão “Educação, Esporte e Sociedade”, pertencente ao curso de Licenciatura em Educação Física do Instituto Blumenauense de Ensino Superior - IBES. Tendo o esporte em suas diferentes manifestações sociais como eixo central de nossas problematizações, discutimos, num primeiro, a pluralidade das manifestações esportivas. A partir destas discussões apresentamos como elaboramos um projeto de extensão à comunidade blumenauense, assim como, seus objetivos, desenvolvimento e análises dos aspectos levantados como objeto de investigação, dando especial ênfase às praticas esportivas contra-hegemônicas e as relações de gênero que permearam estas atividades.

          Unitermos: Educação. Esporte. Cultura. Gênero. 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - N° 120 - Mayo de 2008

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Contextualizando nossas ações: à modo de introdução

    Quais as finalidades das práticas esportivas na contemporaneidade e de que modo são utilizadas nos espaços escolares?

    Discutir sobre esporte e práticas esportivas não é algo recente. Muitos autores há algum tempo vêm se debruçando sobre esta temática, embora procurem abordar com ênfases distintas esta manifestação cultural. No entanto, mesmo apresentando ênfases distintas - e até por vezes bastante contraditórias -, grande parte destes estudos apontam para uma tendência no âmbito das produções sobre o esporte: é comum desenvolver estudos, pesquisas, projetos e práticas educacionais (formais e não formais) que tomem o esporte de rendimento, espetáculo ou performance como referência.

    Esta afirmação não quer dizer que não haja ações e/ou práticas que se desenvolvam a partir de outras manifestações esportivas, mas sim, quer dizer que mesmo que se procure desenvolver outras possibilidades da prática do esporte estas se baseiam nos moldes do esporte de rendimento e de espetáculo. Mesmo que não atendam a todos os critérios que configuram um esporte de rendimento, as práticas esportivas realizadas, assim como os estudos desenvolvidos, tendem a tomar tais manifestações esportivas tidas como hegemônicas como referência.

    Para percebermos tais fatos e relações basta lançarmos um olhar mais detido para tais acontecimentos, principalmente se atentarmos para os aspectos contemporâneos que envolvem o fenômeno esportivo e o considerarmos à luz de uma perspectiva cultural.

    Pensar o esporte desde uma perspectiva cultural seria, primordialmente, entendê-lo como uma prática social que é produzida historicamente por sujeitos de uma mesma cultura, os quais partilham modos semelhantes de atribuir sentidos a este acontecimento. O esporte, então, passa a ser compreendido por dois aspectos inextrincáveis: um deles seria o fato de sujeitos partilharem modos semelhantes de dar significados e sentidos, através da linguagem, às práticas corporais que passam a ser configuradas como esporte; em segundo lugar estes sujeitos partilhariam, entre si e entre grupos, os significados atribuídos as práticas corporais tidas como esporte, a fim de comungarem semelhantes sentidos de um determinado evento e acontecimento social.

    Destacar e problematizar aspectos culturais no que se refere aos esportes vai no sentido de multiplicar as diferentes modalidades e maneiras como este fenômeno é veiculado nas sociedades, a fim de compreender as relações singulares de saberes que são estabelecidas em sua produção. Buscar recorrências atuais acerca dos temas que investimos é entender a relação íntima que o empírico e material como cultura possuem com os aspectos epistemológicos e de conhecimento que as culturas produzem; é compreender que aquilo que podemos produzir como conhecimento está atrelado com as condições empíricas nas quais vivemos e que estamos imersos.

    De modo a discutir essas considerações torna-se necessário trazermos algumas recorrências contemporâneas naquilo que se refere especificamente aos esportes. Sobre os aspectos epistemológicos, por exemplo, destacamos que alguns autores têm apontado que no âmbito acadêmico a maioria dos estudos realizados sobre esporte privilegiam investigações sobre os grandes eventos esportivos, ou seja, aquelas práticas esportivas de espetáculo e de performance tidas como hegemônicas, negligenciando, desse modo, outras possibilidades de práticas esportivas em suas pesquisas, o que acarreta conclusões advindas “de observações distanciadas do espaço concreto onde o esporte acontece” (STIGGER, 2002, p. 3), como por exemplo, as práticas esportivas de lazer em parques, praias e praças nos finais de semana.

    Desse modo, podemos inferir que no tangente a produção de conhecimento (aspectos epistemológicos) sobre esporte há uma predominância de estudos que tomam o esporte hegemônico (ou de performance, ou de espetáculo, ou no “sentido restrito”, de acordo com os distintos autores) como padrão, referência e alvo privilegiado das incursões investigativas (STTIGER, 2002; KUNZ, 1994).

    Estes aspectos epistemológicos do esporte, no entanto, são conduzidos pelos aspectos substantivos da cultura, ou seja, as regências empíricas e materiais das práticas esportivas.

    As recorrências materiais e empíricas sobre o esporte - seus aspectos substantivos - podem ser percebidas em diversos espaços cotidianos. Como bem ressalta Stigger (2002, p. 1), não é difícil percebermos estas evidências:

    são as famílias que organizam seus fins de semana a partir da programação esportiva veiculada pelos meios de comunicação de massa; são as inúmeras páginas de jornais e revistas destinadas a esta temática; são os muitos empregos e inclusive profissões direta ou indiretamente relacionadas a esta atividade; são as muitas horas de antena que, a preços astronômicos, estão voltadas para a divulgação de eventos esportivos; são os incontáveis grupos de indivíduos que despendem muito de suas vidas nas atividades das torcidas organizadas de futebol (STIGGER, 2002, p. 1, destaques do original).

    Frente a estas evidências empíricas do esporte como evento cultural, não é difícil percebermos e compreendermos que a maioria das práticas esportivas ou das atividades a elas relacionadas tomem como referência para suas realizações os esportes tidos como hegemônicos. Independente do local onde ocorram (escolas, parques, clubes, associações e outros) as práticas corporais vinculadas ao esporte tem como referência àquelas práticas esportivas de espetáculo, embora haja aproximações e distanciamentos destas práticas com aquelas tidas como hegemônicas de acordo com o local e os sujeitos que a praticam, ou como bem refere Bracht (2000, p. 23), “o rendimento está presente em maior ou menor grau em toda prática esportiva”. O que cabe ressaltar é que mesmo que não sejam realizadas exatamente idênticas ao esporte espetáculo, as atividades esportivas diversas o tomam como referência, o que acaba por produzir, conduzir e influenciar com sentidos específicos (vinculados às ações hegemônicas esportivas) as ações realizadas pelos sujeitos.

    Diante desse quadro cultural do esporte – epistemológico e substantivo – e aliando-nos aos argumentos dos referidos autores, entendemos que seja necessário ações balizadas por uma política do conhecimento que procure desenvolver e produzir práticas esportivas que não estejam vinculadas estritamente ao esporte tido como hegemônico, e consigam, desse modo, pluralizá-las, desenvolvendo, principalmente, manifestações contra-hegemônicas deste fenômeno sócio-cultural.

    Inseridos nestes argumentos e modos de compreensão do fenômeno esportivo enquanto cultura, que por ser produzido em meio às relações sociais é potencialmente possível de ser re-significado e produzido de outro modo,elaboramos um projeto de extensão à comunidade blumenauense. Este projeto de extensão possui centralmente como objetivo desenvolver e construir culturas de uma prática esportiva contra-hegemônica na comunidade envolvida nas atividades do projeto, a fim de promover como uma política de conhecimento na área da Educação Física a pluralidade, a tensão e a heterogeneidade do fenômeno esportivo.

    Entrementes, tornou-se necessário para um maior aprofundamento de nossas ações de pesquisa realizar um desdobramento das questões anteriormente mencionadas. Assim, elaboramos uma questão de pesquisa para balizar nossas discussões futuras e, principalmente, nossas ações seguintes no projeto, pois além de propor atividades tornou-se necessário compreender como estas ações eram vivenciadas e experimentadas pelos alunos participantes. Frente a essa condição construímos a seguinte questão de pesquisa: Como os alunos vivenciam, experimentam e se apropriam das atividades propostas e realizadas?

Educação, Esporte e Sociedade: um lócus de investigação

    O referido Projeto de Extensão compõe o lócus de nossa investigação, que versa justamente sobre as possibilidades de realização de atividades desportivas lúdicas e contra-hegemônicas junto à comunidade blumenauense nos finais de semana. Nesta investigação procuramos compreender os modos pelos quais os alunos participantes do projeto experimentam e atribuem sentidos e significados às praticas esportivas quando estas são propostas de forma contra-hegemônica. Para tal, utilizamos como ferramentas metodológicas registros em diários de campo e entrevistas com os sujeitos participantes, a fim de construir um corpus de investigação que servisse como base para as análises a serem realizadas.

    Os registros em diários de campo são produtos das observações realizadas durante as atividades propostas aos alunos participantes do projeto. Enquanto o grupo proponente das atividades de extensão ministrava as aulas, concomitantemente procurava perceber e registrar os modos pelos quais os alunos vivenciavam as ações propostas.

    Tomar estas observações e registros como um processo metodológico de pesquisa está inscrito, inicialmente, numa transformação ocorrida no campo da antropologia por volta dos anos de 1920 e 1930, onde surgiu o que hoje conhecemos como observação participante (CLIFFORD, 1992).

    Atualmente muito se discute sobre a posição de autoridade e a retórica daquele que observa e descreve os sujeitos da investigação, principalmente no que diz respeito à verdade única dos fatos descritos. No entanto isso não significa que seja necessário abandonar tal método de investigação, mas sim, ter na agenda daquele que observa e pesquisa os efeitos de verdade que tal produção empírica pode realizar e, fundamentalmente, estar atento as relações de poder e de subjetividade que permeiam tal produção, visto que não há uma separação fundamental entre o sujeito que descreve e aquilo o que descreve (TYLER, 1992, p. 291).

    Aliado a observação participante, e de certo modo completando-a, houve, também, a realização de entrevistas. As entrevistas podem ser entendidas como instrumentos que se articulam às observações realizadas junto aos jovens participantes do projeto, tornando-se elementos que potencializam os modos de olhar e de compreender as práticas lá realizadas. As entrevistas, seguindo considerações de Zago (2003), possuem uma relação inseparável com as observações realizadas no trabalho de campo, visto que se encontram apoiadas em “recursos cuja função é complementar informações e ampliar os ângulos de observação e a condição de produção” do material empírico, compondo, dessa forma, em conjunto com as observações, metodologias de construção de dados que são complementares (ZAGO, 2003, p. 298).

    Ancorados em tais considerações realizou-se, de setembro a dezembro de 2006, observações e registros em diários de campo e entrevistas – que se assemelhavam muito mais a conversas informais do que a uma entrevista tradicionalmente fechada e estruturada - com os sujeitos participantes de nosso projeto. A partir de tais materiais empíricos apresentamos dois eixos de problematizações desde as evidências que, de nosso ponto de vista, se tornaram mais recorrentes entre os alunos. Tais eixos de discussão estão articulados ao objetivo central do projeto de extensão e a questão de pesquisa antes formulada, e mais precisamente podem ser definidos nos seguintes temas: práticas esportivas contra-hegemônicas e relações de gênero nas praticas esportivas

Práticas esportivas contra-hegemônicas: que possibilidades?

    Na realização das práticas esportivas em nosso projeto de extensão procuramos desenvolver atividades pré-desportivas com adaptações de regras e variações de funcionamento em relação aos esportes tido como tradicionais ou hegemônicos. A partir destas adaptações e alterações buscamos um afastamento gradual do modelo competitivo e excludente geralmente fomentado pelo esporte de rendimento.

    No entanto, tais alterações de regras desportivas (tais como no jogo de vôlei deixar a bola quicar uma vez antes de rebatê-la para a quadra adversária, no basquete não interceptar o arremesso do colega ou utilizar cestas móveis com colegas segurando arcos, no futsal meninos não poderiam ‘roubar’ a bola de meninas, entre outras variações) não foram aceitas de modo consensual e sem restrições pelos participantes.

    De fato, como já aludiu Bracht (2000, p. 19), existem inúmeras dificuldades em se realizar manifestações que se afastem dos moldes da prática esportiva de rendimento, sejam estas dificuldades por parte das instituições ou até mesmo dos sujeitos praticantes. No entanto, segundo o mesmo autor, “esta é uma possibilidade que está sendo construída”, visto que “existem várias experiências realizadas por professores de diversas regiões do Brasil” nesse sentido. Mesmo correndo o risco de não nos encaixarmos plenamente no panorama acima referido por Bracht (2000), compreendemos que, de algum modo, nos aproximamos do hall de experiências antes descritas, e passamos daqui em diante a contextualizá-las.

    Durante a realização das práticas esportivas propostas aos alunos de nosso projeto, houve, em muitos momentos, uma recusa de alguns alunos sobre as adaptações de regras, o que no início causou certa surpresa em nosso grupo, já que pensávamos que os alunos se sentiriam mais a vontade para se expressarem diante as atividades de cunho mais lúdico, onde as regras competitivas e de rendimento não os limitassem tanto.

    Um dos momentos em que pudemos perceber esta postura dos alunos foi quando propusemos uma conversa a respeito justamente das alterações de regras nas atividades esportivas, a fim de compreender como os jovens as tinham vivenciado. Um dos alunos teceu o seguinte comentário: não acho legal, pois se tinham que se esforçar jogando por baixo para dar jogo, por que não se esforçar para dar jogo sem nenhuma adaptação de regras (referindo-se ao fato de termos limitado o saque do voleibol somente ‘por baixo’, no movimento de ‘manchete’).

    Entrementes, todo discurso possui rupturas, e numa dessas brechas também houve comentários e fatos favoráveis às alterações de regras. Tal acontecimento está relatado em diário de campo, e embora longo, o trecho a seguir representa uma posição distinta da anterior, frente às atividades propostas. Durante um jogo de voleibol em que adaptamos regras referentes ao saque, ao tamanho da quadra e a possibilidade de a bola quicar um vez antes de ser rebatida,

    tudo transcorria bem, o jogo estava bastante lúdico, divertido, sem aquela “tensão” do jogo disputado (que também é animadora). O Manuel, no entanto, queria saque por cima e sem pique da bola, além da quadra inteira. Na verdade, demoramos para nos adaptarmos a regra do pique da bola, mas depois ficou bem legal, pois todos perceberam que era mais fácil jogar. E o Manuel insistentemente queria saque por cima e sem pique. Na hora de trocar de quadra perguntei para ele e para Jéssica se queriam continuar com as regras ou fazer “normal”. Jéssica disse que tanto faz e Manuel urrou de alegria por poder ser jogo normal. Então também sugeri introduzir pontuação, para ficar mais próximo do desporto oficial, já que nosso objetivo de pesquisa é compreender as diferentes relações estabelecidas entre esporte hegemônico e lúdico. Comecei no saque, por cima. Dois saques e dois pontos, a bola caia direto na quadra. A cada ponto eu perguntava: “vamos mudar as regras?” e Manuel respondia: “Não!”. Passei a sacar por baixo, mas sem pique e com a quadra toda era fácil ficar fazendo ponto. Estava seis a um, e o jogo sem nenhuma graça, pois não havia jogo. No sétimo ponto (combinamos de ir até dez), Manuel pediu: “Vamos voltar as regras de antes”! Inclusive o saque, perguntei. Disse ele: Sim.”.

    O relato acima descrito caracteriza sobremaneira a tensão existente entre as ações do esporte de rendimento – tradicionalmente incorporadas nas práticas esportivas – e as ações do esporte que busca distanciar-se, gradualmente, do modelo hegemônico vigente. O nível de competição das ações realizadas pode variar conforme as necessidades e finalidades das práticas desenvolvidas, adaptando-se conforme as exigências dos participantes. Não advogamos aqui que tal ou qual maneira de realizar o esporte é mais adequada – pois esta varia de acordo com a concepção e finalidade envolvidas – mas buscamos trazer à tona a tensão existente entre tipos distintos de prática esportiva, e principalmente, apontar que mesmo sendo o modelo do esporte espetáculo aquele que normalmente define as ações esportivas, o espaço escolar é um lugar privilegiado para problematizações e produções de distintas culturas do corpo e do movimento atreladas ao fenômeno esportivo.

    Além disso, no caso acima citado podemos perceber a importância da ludicidade nas atividades esportivas – em contraposição com o rendimento, resultado, desempenho -, quando esta é aceita consensualmente entre os participantes após experimentarem vivências distintas. Cremos que esse acontecimento caracteriza bem o pensamento de Lovisolo (2001) quando afirma que o lúdico abre suas próprias brechas.

    Quando realizadas, as atividades esportivas podem (e em alguns momentos devem) ter uma parcela de competição e de proximidade com os desportos tradicionais. No entanto, enfatizar somente este caráter acarreta fortalecer e enaltecer um determinado (e único!) modo de desenvolvimento de práticas corporais, neste caso esportivas, negligenciando outras manifestações da cultura do corpo e do movimento, e até mesmo, manifestações sociais de outra ordem.

    Concordamos com Lovisolo (2001) quando afirma que se uma atividade esportiva for introduzida na escola esta por sua vez terá alguma parcela de competição. Contudo, mesmo que esta parcela esteja presente não seria ela necessariamente o principal objetivo da atividade esportiva a ser realizada na escola. Isso quer dizer que o esporte enquanto fenômeno social deve ser tratado como um organismo vivo e passível de ser pensado e vivenciado de várias formas. No entanto, como no nosso caso se trata do espaço escolar, acreditamos que aqui seja necessário a tensão, a discussão e a problematização dos aspectos que compõem as distintas manifestações esportivas, pois é através destas tensões que podemos produzir outras formas de vivências do esporte, ou ainda, dar maior legitimidade aquelas que são mais marginalizadas.

Relações de gênero nas práticas esportivas contra-hegemônicas

    Num instigante artigo Lovisolo, Soares e Bartholo (2006) apontam para o fato de que a maioria dos estudos no campo do esporte realizados sobre uma perspectiva de gênero apresentam duas grandes teses: 1) de que os homens, educados pelas mulheres, geram e geraram as representações sociais femininas que hoje permeiam o tecido social e 2) que tais construções servem para controle e subordinação das mulheres aos homens.

    Em alguns trechos de seus argumentos ao longo do texto os referidos autores trazem importantes contribuições para um melhor desenvolvimento teórico-argumentativo deste campo de estudos. Contudo, em outros momentos, como nos argumentos iniciais antes expostos, parece-nos que há fragilidades ou má interpretações daquilo que vem sendo debatido neste campo de estudos.

    Cremos que os estudos realizados no campo da Educação Física e dos esportes já vem superando as duas teses apontadas pelos autores supracitados. Tais teses – ou premissas – calcam-se nos estudos realizados no campo de gênero ainda na década de 70 do século passado, quando de seu surgimento a partir da “segunda onda feminista” (GOELLNER, 2001). Desde então, quando o campo da Educação Física e dos Esportes apropriou-se destas discussões trazendo as possibilidades de análise para seu lócus de investigação, houve inúmeros desdobramentos que nos fizeram, de algum modo, avançar numa melhor compreensão do conceito de gênero e de suas possibilidades analíticas, mesmo que seja preciso, ainda, continuar a avançar nas discussões, visto que diante dos estudos de gênero já realizados em outros campos do conhecimento os debates e investigações no âmbito da Educação Física ainda são bastante recentes.

    Parece-nos que a vontade de denúncia ou de “cotismo” que aparentemente surge como central nos estudos de gênero e esportes, segundo Lovisolo, Soares e Bartholo (2006), não pode ser considerada como a principal potencialidade da capacidade analítica que a perspectiva de gênero apresenta.

    Embora no início deste campo de estudos tais reivindicações fossem a base na qual repousava seus esforços, atualmente muito se vem discutindo sobre outras possibilidades. Desse modo, concordamos com Lovisolo, Soares e Bartholo (2006) quando afirmam que se tais estudos e investigações dedicarem-se somente a esses aspectos – denúncia e “cotismo” – estes deverão ser revistos, pois perderiam a capacidade de transformação a que sempre se propuseram.

    Tais confusões conceituais e metodológicas podem ser atribuídas às distintas concepções de gênero e(m) suas múltiplas vertentes de análise, as quais estão sempre articuladas aos interesses políticos e epistemológicos daqueles que por ora utilizam e se apropriam deste conceito.

    Embora não seja o foco deste texto discutir pormenorizadamente a multiplicidade conceitual e metodológica do termo gênero, traremos alguns apontamentos sobre nossa compreensão deste conceito e o modo como o utilizamos para as análises da pesquisa aqui apresentada.

O conceito de gênero que aqui assumimos se refere

    a todas as formas de construção social, cultural e lingüística implicadas com processos que diferenciam mulheres de homens, incluindo aqueles processos que produzem seus corpos, distinguindo-os e nomeando-os como corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade (MEYER, 2004, p. 15).

    É possível inferirmos, desde essa concepção, que gênero atua como um modo de linguagem, ou seja, como instância privilegiada nos modos pelos quais damos sentidos e significados às distintas construções de sujeitos masculinos e femininos.

    A partir desse entendimento não nos restringimos a reivindicar igualdades entre sujeitos ou cotas para maior participação feminina em determinadas práticas corporais, assumindo, desse modo, o modelo masculino como objetivo final de alcance e/ou realização. Mas sim, procuramos discutir 1) como ocorrem e operam as distinções de gênero nas praticas esportivas e 2) que estratégias são postas em funcionamento na produção de determinados sentidos e sujeitos quando tais práticas ocorrem. Procuraremos, neste pouco espaço que nos resta, demonstrar um pouco deste modo de ensaio e análise.

    Em nosso projeto de extensão, como comentamos anteriormente, buscamos oferecer praticas esportivas contra-hegemônicas a fim de perceber como os alunos vivenciam e experimentam tais atividades. Numa dessas práticas realizamos o futsal com participação de meninos e meninas (misto), com algumas variações. Num primeiro momento fizemos o jogo com duas equipes e com os alunos de braços dados, independente do sexo. Depois deixamos os meninos de braços dados e as meninas livres para jogarem sozinhas. Após esta intervenção, permitimos que todos jogassem individualmente, respeitando a seguinte regra: os meninos não podiam ‘roubar’ a bola das meninas. Depois procuramos nos aproximar do jogo tradicional, entretanto, só as meninas poderiam fazer gol. E por fim, o jogo tradicional de futsal, de acordo com os moldes oficiais.

    Procuramos nesta atividade, gradualmente e com adaptações de regras, compreender os modos como os alunos experimentavam o jogo de futsal quando este partia de uma prática bastante descaracterizada do tradicional até chegar ao esporte propriamente dito.

    Claro que aqui cabem algumas críticas ao que vimos discutindo. Pode-se afirmar, por exemplo, que tais adaptações de regras serviram para uma maior equidade entre meninos e meninas, sendo, portanto, o modelo masculino de prática de futsal o ideal a se chegar através de intervenções para que meninos e meninas disputem em iguais condições. Ou ainda, de que tais intervenções não podem se caracterizar como ações contra-hegemônicas do esporte, visto que no final da atividade estávamos jogando o esporte tradicionalmente aceito na sociedade.

    Para ambas as afirmações uma ressalva parece-nos que é suficiente: nosso propósito é de fato, como já aludido, problematizar os aspectos acima destacados, e para isso, é necessário um jogo de tensão entre o hegemônico e o marginal, entre o estabelecido e o que se quer estabelecer, a fim de que possamos compreender como operam o jogo das diferenças entre eles para aí sim poder abrir brechas e compor outra prática ou representação social.

    Voltando às questões de análise, trazemos um excerto de diário de campo:

    Quando propomos a atividade de futsal com as adaptações de regras os alunos não gostaram. Fizeram cara feia! Mas mesmo assim resolvemos seguir o planejado. No início foi bem difícil fazer os meninos darem braços entre eles e entre as meninas, mas depois que o jogo começou isso foi mais tranqüilo. Com as variações de regras que propomos em andamento, as meninas participavam mais do que no modelo normal de jogo. Aos poucos, os meninos começaram a perceber qual das meninas jogava melhor futsal, acertando mais passes e até mesmo chutes a gol. Quando houve a alteração de regra na qual só as meninas poderiam marcar gols, tornou-se clara uma separação: a bola passada pelos meninos era quase sempre para aquelas meninas mais habilidosas. Quando propusemos jogo normal isso não mudou, inclusive se acentuou, quando os meninos procuravam fazer o passe para alguma menina procuravam aquela mais habilidosa para fazê-lo, para ter o êxito do gol. De qualquer modo, a participação das meninas aumentou muito comparada a um jogo que não tivesse como prática precedente a adaptação de regras, mesmo que a distinção de gênero tenha ficado em segundo plano, assumindo o caráter principal a habilidade desportiva, o rendimento. (Diário de Campo, 15/10/2006)

    No caso acima citado nossa análise não irá se debruçar sobre o fato de que buscamos oportunizar, através de regras, uma equidade de participação feminina, até mesmo porque se seguíssemos este argumento cremos que estaríamos reforçando a diferença e desigualdade que há entre meninos e meninas no futsal, ou seja, ao ter que adaptar regras corroboramos com o argumento de que há, naturalmente, diferenças e desigualdades de acesso e desenvolvimento da pratica esportiva em questão.

    Nossa análise, portanto, vai em outra direção. Busca articular as diferenças de gênero com o propósito central de nossa investigação, a saber, a prática esportiva em moldes contra-hegemônicos.

    No excerto antes exposto evidencia-se que há diferenças de participação no futsal entre meninos e meninas, mas que tal diferença de gênero subordina-se à questão do rendimento e da performance. Assim, quando era o caso de ter que passar a bola para as meninas jogarem isto era realizado de modo a efetivar a participação das meninas que melhor se destacavam no quesito habilidade e realização de gols. Inclusive, houve casos de algumas meninas participarem mais do jogo do que alguns meninos, pois elas possuíam mais habilidade para o desporto do que alguns deles.

    Portanto, não cabe aqui destacar que mais uma vez as meninas são subordinadas aos meninos e que para participarem da pratica esportiva é necessário que tenham determinados signos masculinos. Mas sim, procuramos destacar a potencialidade da utilização da perspectiva de gênero como uma ferramenta para discussão de outras questões sócio-culturais, nesse caso, a prática esportiva hegemônica e contra-hegemônica e a vivência de sujeitos escolares (masculinos e femininos) nestas atividades.

    Com esses argumentos tentamos desconstruir a crítica de que os estudos de gênero servem, prioritariamente, para reivindicação de “cotas” para participação feminina nas atividades esportivas. Procuramos demonstrar que o conceito de gênero pode ser utilizado para compreender as dinâmicas e jogos de poder que operam as diferenciações entre masculino e feminino a partir de outras articulações e contextos nos quais estas construções estão inseridas, nesse caso, compreender os jogos de poder entre masculino e feminino quando estes estão articulados e geram tensão entre as praticas esportivas hegemônicas e contra-hegemônicas.

Considerações finais

    O esporte de rendimento, performance e/ou espetáculo é apenas uma das possibilidades de vivência e experimentação de práticas corporais esportivas no âmbito de nossa cultura, embora seja a de maior legitimidade e penetração social. Explorar outras relações com o esporte e compreender como estas dinâmicas afetam e/ou podem ser condicionados pela cultura no espaço escolar foi a estratégia de intervenção adotada por nosso grupo de estudos para problematizar o esporte hegemônico em nossa sociedade, criando um projeto de extensão a ser oferecido aos domingos numa escola pública estadual.

    Nesse projeto procuramos discutir junto aos alunos participantes como eles vivenciam, experimentam e se relacionam com as ações propostas, tendo o uso de entrevistas e de diários de campo como métodos de pesquisa. Nesta investigação duas categorias tornaram-se centrais desde nosso ponto de vista: a relação com as práticas esportivas contra-hegemônicas e lúdicas e as relações de gênero que permeavam a realização destas práticas.

    Na maioria das vezes os alunos participantes tiveram uma certa ressalva em participar das atividades quando estas eram adaptadas ou transformadas quanto ao seu caráter tradicional. Alguns alunos, na verdade, não se adaptaram em nenhum momento a elas, segundo seus comentários. Em outros casos, frente a algumas vivências realizadas, os alunos solicitavam, inclusive, que jogássemos os esportes tradicionais com algumas adaptações. Tais práticas, portanto, estão longe de um consenso, mas sim, operam um jogo de tensão entre o tradicionalmente aceito e aquilo que, marginalmente e gradualmente, começa a colocar-se como possibilidade para os alunos participantes.

    Estas práticas também foram atravessadas, fortemente, por relações de gênero, visto que em muitos casos esta diferença entre meninos e meninas era alvo de adaptações de regras e de funcionamento de jogo. No entanto, como procuramos demonstrar, estas diferenças de gênero estavam subordinadas a questão do rendimento e da performance, sendo estas ações o principal motivo das relações esportivas entre os praticantes. Desse modo, mesmo que as diferenças de habilidade para alguns desportos entre meninos e meninas fossem alvo para distintos modos de participação, este não era, de modo algum, o foco da prática esportiva, importando, em contrapartida, o quesito habilidade e performance para participar com maior ou menor intensidade das atividades ofertadas, independentemente do sexo ou gênero envolvidos.

    Pensamos que a construção do referido projeto de extensão e de pesquisa ao estar articulado e ser pensado organicamente num grupo de estudos de âmbito acadêmico é, de fato, a evidência da impossibilidade dicotômica que comumente se procura estabelecer entre teoria e prática. Parece-nos, isso sim, a possibilidade de realização de diferentes ações conjuntas que atuam na construção de conhecimento social e que, potencialmente, agem como uma política de conhecimento na produção de novos e diferentes significados culturais atrelados ao fenômeno esportivo, configurando-o como uma superfície de problematização para discussões futuras que o tomem como objeto de estudo central a ser investigado, e quiçá, transformado socialmente.

Referências

  • BRACHT, V. Esporte na escola e esporte de rendimento. Movimento, Porto Alegre, nº 12, jul, 2000.

  • GOELLNER, S. V. Gênero, Educação Física e Esportes. In: VOTRE, S.. (Org.). Imaginário & Representações Sociais em Educação Física, Esporte e Lazer. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora Gama Filho, 2001, v. 1, p. 215-228.

  • HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções de nosso tempo. Porto Alegre: Educação & Realidade, v.22, n.2, 1997, p. 15-46.

  • KUNZ, E. Transformação didático-pedagógica do esporte. Ijuí: Ed. Unijuí, 1994.

  • LOVISOLO, H. Mediação: esporte rendimento e esporte da escola. In Movimento, Porto Alegre, nº 15, dez, 2001.

  • LOVISOLO, H; SOARES, A. J.; BARTHOLO, T. L. Feministas, mulheres e esportes: questões metodológicas. In Movimento, Porto Alegre, v. 12, n. 3, pg. 165 – 191, set/dez, 2006.

  • MANSKE, G. A Cultura do Esporte na produção de identidades juvenis. In AISENSTEIN, A. Cuerpo y cultura: prácticas corporales e diversidad. Buenos Aires: Libros Rojas, 2006. p. 244-255.

  • MEYER, D. Teorias e políticas de gênero: fragmentos de histórias e desafios atuais. In Revista Brasileira de Enfermagem, v. 57, n.1, 2004.

  • SARAIVA, M. C. Por que investigar as questões de Gênero no âmbito da Educação Física , Esporte e Lazer? In Motrivivência, nº 19, dez/2002, Florianópolis, Editora da UFSC, 2002, p. 79 - 86.

  • SAYÃO, D. Por que investigar as questões de Gênero no âmbito da Educação Física , Esporte e Lazer? In Motrivivência, nº 19, dez/2002, Florianópolis, Editora da UFSC, 2002, p. 87-98.

  • STIGGER, M. Esporte, Lazer e estilos de vida: um estudo etnográfico. Campinas/SP. Autores Associados. CBCE, 2002.

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