Deficiência visual e sapateado: possibilidade de aprendizagem e busca da vivência da corporeidade |
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*Mestre em Educação Física da Universidade Metodista de Piracicaba/ SP Especialista em Atividade Motora Adaptada - UNICAMP **Doutora, Mestre e especialista em Educação Motora. ***Doutora, Mestre e especialista em Educação Motora e Adaptação- UNICAMP (Brasil) |
Denise Cristina Reato Mendes Valla* denisereato@yahoo.com.br Eline Tereza Rozante Porto** eliporto@unimep.br Rute Estanislava Tolocka*** rtolocka@unimep.br |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 99 - Agosto de 2006 |
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Introdução
As pessoas com deficiência visual têm poucas chances para aprender a dançar e existe pouca literatura sobre o assunto, especialmente em relação ao sapateado.
O sapateado americano é uma modalidade de dança que se faz através de ritmos e sons produzidos por movimentos de pernas e pés, com o auxílio de plaquinhas de metal parafusadas nos sapatos. Acreditamos que pode ser uma experiência significativa, para proporcionar novas sensações, possibilidades, emoções, aprendizagens, às pessoas com deficiência visual. Para Porto (2002), ao tratarmos de pessoas com deficiência visual devemos partir do princípio que elas são seres humanos dotados de capacidades e potencialidades, como quaisquer outros. Possibilitar-lhes a vivência com a dança e, em especial com o sapateado, é referendar uma oportunidade que poderá lhes desencadear inúmeros benefícios.
Chalanguier (1975) nos apresenta o ser humano que está em busca da verdade para além das palavras, onde o corpo tem a capacidade de expressar e manifestar um sentido em todas as situações da existência atrelando sua presença corporal no mundo pela significância e pelo movimento. Nosso corpo é nossa comunicação e linguagem com o mundo, por ele nos fazemos existir e podemos nos manifestar através dos movimentos.
O movimento para Merleau-Ponty (1994) é apreendido quando compreendido pelo corpo e incorporado ao seu "mundo", e mover-se é deixar-se corresponder à solicitação do corpo.
Acreditamos que a pessoa com deficiência visual, a partir do contato com o sapateado, poderá ter maiores chances de se conhecer e se perceber que é corpo em movimento, na interrelação consigo, com o outro e com o mundo, pois de acordo com Porto (2002), através da dança ela poderá explorar e usufruir das suas capacidades e potencialidades rítmicas, de coordenação motora, de equilíbrio, entre outras, numa vinculação direta com o espaço, com o tempo, com a expressão, com a arte e com outros aspectos que o dançar pode propiciar a partir da sua prática.
Como mostrou Silva (1999), a falta de motivação visual pode implicar em pouca mobilidade na vida cotidiana, menor atividade física na infância e adolescência e superproteção. As crianças que não forem estimuladas dificilmente irão se movimentar sozinhas e com número reduzido de experiências é possível que apresentem atraso no desenvolvimento, tais como dificuldades de coordenação geral, controle corporal, equilíbrio estático e agilidade, ocorridos devido à falta de estimulação e de informação.
Segundo Bruno (1993), no início do desenvolvimento sensório motor, a organização da ação está relacionada à atuação do sistema visual e proprioceptivo, que depende da elaboração, da organização e da qualidade das experiências sensório-motoras vividas. Em virtude da pouca movimentação, A pessoa com perda visual pode mostrar-se tensa e insegura em relação aos movimentos do corpo e ao ambiente, prejudicando a formação de reações de equilíbrio e os deslocamentos no espaço.
Para a mesma autora, para estas pessoas, a construção da noção espaço-tempo ocorre através da motivação do toque, pela busca do espaço. e essa construção vai depender de suas vivências corporais, do conhecimento de si e do outro, e do significado que as pessoas e os objetos adquirem.
Segundo Negrine (1987) o desenvolvimento perceptivo-motor está ligado aos processos de aprendizagem e maturação. Esta ocorre por mudanças interiores independentes de influências externas, e a aprendizagem recebe estímulos do meio externo e provoca modificações no comportamento do organismo.
A aprendizagem está presente em todas as fases da vida, que é um constante aprendizado. Para que ela ocorra é importante verificar mudanças observáveis no comportamento do indivíduo.
Schmidt (1982) estabelece três estágios na aprendizagem motora, a fase cognitiva, a associativa e a autônoma.
Na fase cognitiva, o aprendiz precisa entender o que é para ser feito, buscando encontrar um método para realizar aquela ação proposta, determinando suas próprias estratégias para resolver o problema. Nessa fase a performance é muitas vezes inconsistente, necessitando de muita informação verbal para a construção motora.
O segundo estágio proposto pelo autor é a fase associativa da aprendizagem motora, que consiste numa fase intermediária em que o indivíduo já consegue estabelecer caminhos mais efetivos na busca da resolução do problema motor proposto. Os movimentos tornam-se mais consistentes, pois nessa fase há uma maior preocupação com a execução motora e consequentemente uma melhor percepção dos erros cometidos.
Passando para a terceira fase descrita por Schmidt (1982), a fase autônoma é aquela em que o movimento começa a se tornar automático, isto é, com o tempo e a prática, o indivíduo consegue realizar a habilidade com maior economia de energia, que pode ser utilizada para outras tarefas, e com um menor envolvimento de mecanismos centrais de atenção. Nesse pensamento, Manoel (1997) comenta que nessa fase os erros são detectados e corrigidos rapidamente, às vezes antecipadamente, e a partir desse momento, a variação do comportamento motor pode ser dada em função da força, da velocidade entre outras, promovendo o desenvolvimento de uma estrutura hierárquica.
No caso das pessoas com deficiência visual, as informações verbais e proprioceptivas são muito utilizadas na aprendizagem, sendo assim o feedback é necessário para o aluno, principalmente porque é através dele que ele terá maiores informações sobre seus movimentos e onde precisam melhorar, aprimorar ou corrigir. Para Schmdt (1993), feedback é um tipo de informação sobre o movimento, que pode ser verbal-sensorial, falando sobre os erros ou incentivando os acertos.
Uma forma específica de feedback é o conhecimento de resultados ou CR, descrito como "mesmo sendo uma informação obtida pelo sistema sensorial da pessoa, difere do feedback pelo fato de representar informação acerca de uma resposta que a pessoa não poderá detectar sem a ajuda de uma fonte externa" (MAGILL, 1984, p.172).
Para Magill (1984) o professor pode utilizar diretamente o CR, que apresenta funções como a informação sobre a correção do erro, o reforço e a motivação, influenciando assim, na aprendizagem. Em se tratando de habilidades motoras, a informação importante é aquela que pode ajudar a pessoa a fazer ajustes necessários para melhor executá-las, com isso ela pode ser usada para corrigir erros cometidos no desempenho de uma dada tentativa prática, para levar a uma correta execução. Também pode ser usado como reforço de uma resposta positiva do aluno incentivando-o em seus acertos e como motivador quando vai de encontro com o objetivo que foi definido.
Almeida (1995) nos diz que o professor deve preocupar-se em enriquecer as experiências motoras do deficiente visual, se utilizando de diversos meios, explorando suas habilidades específicas e oportunizando assim o seu desenvolvimento motor.
O movimento é uma forma de relação do ser humano com o mundo, mas esse movimento terá mesmo um significado se estiver em harmonia com a experiência e o sentimento pessoal de quem o realiza (FIGUEIREDO, 1997). .
Os modelos e padrões da dança são em grande parte pré-estabelecidos a partir de uma realidade visual, mantendo seu referencial nas imagens, nos espelhos, nas imitações e repetições. Podemos perceber isto na afirmação de Jacob (1981, p.145) "Students learn the basic steps by watching and imitating their teacher", alunos aprendem os passos básicos vendo e imitando seus professores) . Mas para o com a pessoa com deficiência visual, precisamos utilizar outros recursos, dando ênfase aos outros órgãos do sentido, mostrando que a dança pode ser aprendida de várias formas que não a visualização e a imitação.
Para que possamos verificar a ocorrência de aprendizagem, precisamos estabelecer uma forma de avaliá-la. Essa avaliação é necessária para que o professor saiba como está a evolução dos alunos, o que é necessário melhorar, mudar ou retirar da prática que estava sendo feita, além de ser uma forma de motivação. Schmidt (1993) propõe que se realize algum tipo de teste, em uma sessão especial, considerando fatores que sejam importantes para a prática em questão, pedindo que o aluno execute alguma ou todas as habilidades nesta sessão.
Ao longo de nossa investigação, tivemos dificuldade em encontrar estudos sobre o sapateado e as pessoas com deficiência visual, bem como sobre formas de avaliar este aprendizado, e por existir indícios que atividades motoras podem contribuir com a vida dessas pessoas, apresentamos esse estudo, com o objetivo de estabelecer uma proposta de ensino e verificação de aprendizagem, bem como o significado desta prática para a vida dessas pessoas.
MetodologiaEsse estudo pode ser classificado como um Estudo de Caso, pois foi baseado na avaliação de aprendizagem de uma só pessoa. De acordo com Silva (1996), esse tipo de pesquisa, enfatiza a compreensão da contextualidade dos fatos, obtendo dados de poucos casos e grandes variáveis, buscando compreender o comportamento humano através de uma ou de um pequeno grupo de pessoas, buscando representatividade dentro dos sujeitos relacionados, que sejam suficientes para subsidiar a pesquisa.
O estudo foi feito com uma pessoa de 27 anos de idade, com deficiência visual, que foi escolhida devido à afinidade já estabelecida, entre ela e a professora/pesquisadora. O local de realização do trabalho foi a cidade de Campinas/SP.
Foi realizado um programa com 12 aulas, de uma hora e meia de duração, uma vez por semana. Os resultados foram observados através de duas avaliações (inicial e final), que foram filmadas e que constaram de um teste com quatro passos de sapateado (shuflle, flap, shuflle ball change e draw back), observando a execução e classificando o nível de aprendizagem em três categorias: inicial, elementar e avançada.
No sapateado, pode-se considerar como:
(I) Inicial: Movimento executado com força e pés contraídos, em que é possível perceber presença de tensão muscular. Som impreciso e com falhas, que podem ser caracterizadas por ausência de um ou todos os sons que o movimento exige ou pela possibilidade de se ouvir o atrito entre o chão e a plaquinha do sapato. Falta de equilíbrio na execução, que pode ser identificado como uma queda, situação bem difícil de acontecer, como um desequilíbrio que ocasione a ruptura da execução do movimento ou apenas ocasione falha no som.
(E) Elementar: Movimento mais coordenado e compreendido pelo corpo, apresentando menos tensão muscular nas pernas e pés, melhor equilíbrio, que diminui a possibilidade de falhas de execução e de som. Com o aumento da velocidade e mudança de direções há comprometimento de som e equilíbrio.
(M) Maduro: Movimento coordenado com pernas e pés relaxados/ som nítido e equilíbrio na execução. Com aumento de velocidade e mudança de direções não há comprometimentos (movimento automatizado).
Foram realizadas oito tentativas, em cada um dos quatro passos de sapateado relacionados com a perna direita e com a esquerda. Os passos foram realizados com apoio de uma das mãos em uma barra de ferro, e depois no centro da sala, sem apoio das mãos.
Na segunda avaliação, fizemos também uma entrevista filmada, com uma questão geradora, "como você vê o sapateado em sua vida", para buscarmos revelar o quanto o sapateado pode vir a influenciar nas relações que uma pessoa com deficiência visual tem com o mundo.
Diante disso, recorremos aos pressupostos metodológicos da Análise de Conteúdo de Bardin (1977), na Técnica de Análise de Asserção Avaliativa, elaborada por Osgood, Saporta e Nunnally, adaptada por Simões (1994). Esta propõe a análise interpretativa dos discursos dos sujeitos participantes da pesquisa, seguindo alguns passos como:
a transcrição na íntegra dos discursos dos sujeitos;
a escolha dos indicadores dos discursos;
a elaboração das categorias e
a análise e discussão dos dados.
Resultados e discussãoPropomos para o ensino do sapateado, que a explicação de todos os passos e exercícios deve ser feita através de informações verbais muito claras, dando os detalhes de cada movimento e posição de pernas e pés. Depois da explicação oral, devemos deixar que o aluno tente executar o passo da maneira que ele entendeu, e se houver algo errado, pode-se corrigir através de maiores detalhes na informação verbal, deixando que o aluno perceba o movimento do professor (informação tátil) e também em casos de maior especificidade de movimentos, o professor poderá segurar no aluno conduzindo o movimento correto para uma plena compreensão, através de informação proprioceptiva.
É importante enfatizar o nome dos passos para que o aluno o associe ao som que ele produz. A execução correta e nítida dos sons através do professor, colabora para a sua memorização, facilitando a compreensão de passos e combinações futuras de maior complexidade, ou velocidade.
O professor deverá falar o nome dos passos envolvidos e executar as seqüências com nitidez de sons e ritmo desejados, quantas vezes forem necessárias para que o aluno os compreenda, executando juntamente com ele, para só depois deixá-lo executar sozinho, permitindo que ouça o próprio som, podendo ele mesmo se corrigir.
Durante as aulas, propomos, além do ensino dos passos, trabalhos com ritmos (batendo palmas em diversas velocidades, em músicas variadas); e com estímulos proprioceptivos para ajudar no equilíbrio e coordenação motora.
A seguir, vamos apresentar o quadro de resultados da primeira avaliação:
De acordo com o quadro, pudemos perceber que a perna direita apresentou apenas um movimento inicial, com relação às pernas e pés do flap. A perna esquerda, mostra além do flap, o shuflle, e o shuflle ball change, e com relação ao equilíbrio, apresentam-se iniciais, o shuflle e o shuflle ball change.
Foi possível notar que a perna esquerda apresentou uma maior dificuldade do que a direita, o que podemos atribuir a uma dificuldade natural de quem tem como lado dominante o direito, e sendo assim, demos maior ênfase na perna esquerda nas aulas.
Na avaliação final, ao término das doze aulas, o quadro apresentou-se da seguinte forma:
Foi possível verificar mudanças no desempenho que caracterizam a aprendizagem ocorrida. Podemos notar que a perna direita apresentou movimentos elementares somente com relação ao equilíbrio no shuflle e no shuflle ball change. Na perna esquerda, foi possível perceber evolução, tivemos movimentos elementares no shuflle, no ritmo e pernas do flap, e no equilíbrio e ritmo do shuflle ball change.
Ainda é possível perceber a diferença entre a perna esquerda e a direita, mas não podemos deixar de ressaltar que houve uma evolução, pois, a esquerda em alguns movimentos também atingiu movimentos maduros todos os acertos.
Percebemos a evolução da qualidade dos movimentos, não havendo nessa fase final, movimentos iniciais, e já podendo notar a presença de elementos maduros, com a ressalva feita sobre a necessidade de maior convivência com o sapateado para que não ocorram problemas com as mudanças de direções e velocidades de execução.
Com relação à entrevista o discurso da aluna nos revelou que ela gosta muito de dançar e o que o sapateado é uma maneira dela movimentar-se.
Acreditamos que o movimento da dança, se faz como um elo de ligação do ser humano com a corporeidade que é, ao encontro de sua subjetividade, de sua intencionalidade, na busca pela transcendência, pela vida, pela felicidade. Para nós, a dança é fonte de experiências corporais que carregam em si significados, que podem ser vividos pelas pessoas com deficiência visual, permitindo o contato com os movimentos corporais e todas as realizações que eles podem propiciar.
Além disso, ela revela que o sapateado ajudou muito em seu cotidiano, pois foi percebida uma melhora no equilíbrio, que ela relata como influente também na locomoção na rua, evitando quedas, tornando-se mais independente, sentindo-se mais segura e feliz.
A dança e suas contribuições na coordenação motora, equilíbrio, ritmo, entre outros, apresenta um importante papel para a auto-superação dessa aluna com deficiência visual, pois o fato de poder se locomover melhor nas ruas possibilitou uma maior independência, segurança e confiança em si mesma.
Nesse caso, o sapateado se tornou um meio para que ela se percebesse como sujeito, apreendendo ao seu mundo os movimentos dançantes dotados de intencionalidade e significado, que possibilitaram uma superação dos próprios limites e comunicação com ela mesma e com o mundo.
Considerações finais
Percebemos que o sapateado pode ser mais uma forma de aprendizagem motora para a pessoa com deficiência visual e que através dele é possível perceber e conquistar mudanças em suas possibilidades motoras e que a proposta de ensino proporcionou mudanças na execução das atividades, tornando os movimentos mais habilidosos.
Além disso, acreditamos que a dança pode ser um espaço possível para a vivência da corporeidade, permitindo expressar o que somos, na tentativa de buscar significados e significações para nossa existência.
É pela experiência vivida que incorporamos sentidos e experiências ao nosso eu, nesse caso acreditamos que a dança, em especial o sapateado, pode ser um espaço possível de realizações e conquistas, por meio do movimento, para as pessoas com deficiência visual, transcendendo barreiras e superando limites.
Referências
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CHALANGUIER, C. A expressão corporal: abordagem metodológica, perspectivas pedagógicas. Rio de Janeiro: DIEFEL, 1975.
FIGUEIREDO, V.M.C. Olhar para o corpo que dança: um sentido para a pessoa portadora de deficiência visual, 1997. Dissertação (Mestrado Instituto das Artes - UNICAMP).
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PORTO, E.T.R A Corporeidade do Cego: novos olhares. 2002. Tese (doutorado). Faculdade de Educação Física da UNICAMP, Campinas/SP.
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SIMÕES, R. Corporeidade e Terceira Idade. Piracicaba: Editora UNIMEP, 1994.
revista
digital · Año 11 · N° 99 | Buenos Aires, Agosto 2006 |