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Educação Física: que profissão é esta?

   
Aluno do Mestrado da Faculdade de Educação da UFRJ e
pesquisador do Grupo de Estudos em Trabalho,
Educação Física e Materialismo Histórico da UFJF.
 
 
Bruno Gawryszewski
brunog81@yahoo.com.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
    Afinal, sobre qual profissão se fala? Neste artigo, pretendemos indagar o fomento e as razões que resultaram na criação e na regulamentação da profissão Educação Física, bem como a visão requerida ao profissional de novo tipo, inserido nas relações de privatização do Estado, da ideologia neoliberal e das transformações no mundo do trabalho. Concluímos que o ideário da construção da profissão Educação Física ainda se mostra absolutamente frágil teoricamente e que, na verdade, vem justificar sua inserção ao modelo de Estado neoliberal, bem como serve aos interesses de recomposição de lucros ao grande capital.
    Unitermos: Profissão. Educação Física. Profissional liberal.
 
Abstract
    After all, on which profession if it speaks? In this article, we intend to inquire the promotion and the reasons that had resulted in the creation and the regulation of the profession Physical Education, as well as the vision required to the professional of new type, inserted in the relations of privatization of the State, the neoliberal ideology and the transformations in the world of the work. We conclude that the idea of the construction of the profession Physical Education still reveals absolutely fragile theoretically and that, in the truth, comes to justify its insertion to the model of neoliberal State, as well as serves to the interests of resetting of profits to the great capital.
    Keywords: Profession. Physical Education. Liberal professional.
 
Resumen
    ¿Después de todo, de qué profesión se habla? En este artículo, queremos investigar los fundamentos y motivos que han dado lugar a la creación y a la regulación de la profesión llamada Educación Física, así también como la visión requerida a este nuevo tipo de profesional, ubicado en las relaciones que se dan entre la privatización del estado, la ideología neoliberal y las transformaciones en el mundo del trabajo. Concluimos que la idea de la construcción de la educación física como una profesión todavía aparece como absolutamente endeble teóricamente y está inserta en el modelo del estado neoliberal, así como al servicio de los intereses del reajuste de beneficios al gran capital.
    Palabras clave: Profesión. Educación Física. Profesional liberal.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 99 - Agosto de 2006

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    A Educação Física é uma área de estudos que vem se consolidando por conta da crescente produção de saberes nas universidades pelo país. O número de cursos de graduação já aponta a casa de 400 escolas formadoras de futuros professores e a pós-graduação strictu sensu vem se expandindo gradativamente, apesar de estar concentrada nas Regiões Sul e Sudeste.

    Contudo, ainda paira uma significativa dúvida sobre o real significado do que seja a Educação Física, seus campos de atuação, os conteúdos a serem trabalhados, o objeto de estudo, a profissionalização e a cientifização.

    Sem qualquer pretensão de apenas deixar no ar perguntas a serem refletidas posteriormente ou quem sabe nunca, procuraremos nos posicionar, na medida do possível, contando com o princípio da provisoriedade do conhecimento, entendendo que a produção humana expressa um determinado estágio da humanidade e que a compreensão de sua concretude se materializa através de aproximações sucessivas do sujeito que pensa com o objeto pensado, mediado pelo conhecimento (COLETIVO DE AUTORES, 1992).

    Mantendo a defesa dos autores supracitados, compreendemos que a Educação Física seja "uma prática pedagógica que, no âmbito escolar, tematiza formas de atividades expressivas corporais como: jogo, esporte, dança, ginástica, formas estas que configuram uma área de conhecimento que podemos chamar de cultura corporal" (p.50).

    Um dos fundamentos mais importantes a serem desenvolvidas na cultura corporal é a sua noção de historicidade, ou seja, o entendimento que as atividades corporais são frutos de uma construção em determinadas épocas históricas a partir das necessidades humanas. Como forma de transmitir esses conhecimentos historicamente acumulados, os professores irão fundamentar suas ações por meio de uma prática pedagógica.

    Bracht (1999) concebe que a Educação Física é uma prática de intervenção caracterizada pela intenção pedagógica com que trata um conteúdo da retirado da cultura corporal de movimento. Para o autor, "nós (professores), da EF, interrogamos o movimentar-se humano sob a ótica do pedagógico" (p.33).

    Tendo clareado a idéia de que a Educação Física se constitui por uma prática pedagógica, vamos defender a idéia de esta não é uma ciência. Não se trata de renegar os conhecimentos científicos, muito pelo contrário, mas de buscar através destes, respostas ou reflexões que possam fundamentar nossa prática.

    Todavia, o objetivo central que procuraremos discutir neste artigo é a defesa de que a Educação Física não é uma profissão, como muito se tem alardeado, tanto no meio acadêmico, como no universo midiático, onde personal trainner e a denominação Profissional de Educação Física estão em voga, especialmente pelo crescente fortalecimento do malfadado Sistema CONFEF/CREFs.

    Há muito tempo que se gestava a idéia da regulamentação profissional da Educação Física. De acordo com o Professor Inezil Penna Marinho, desde 1946 foi fomentada a idéia de se ter um órgão representativo da classe, porém, naquele momento não houve êxito, pois a CLT não permitia órgãos de classe adjetivos, sequer sindicatos desta natureza, visto a existência de um sindicato de professores. Por isso, o esforço nos anos seguintes seria o de fundamentar uma nova denominação para o então professor de Educação Física para que este pudesse fundar sua ordem ou conselho de classe (MARINHO, 2005).

    Já em 1972, o III Encontro de Professores de Educação Física, realizado no Rio de Janeiro e organizado pela Associação dos Professores de Educação Física da Guanabara voltava à baila a proposta de criação de Conselhos Regionais e Federal de Educação Física. Vale destacar a denominação dispensada aos professores pelos organizadores do encontro. Um dos eixos temáticos era Conselhos Regionais e Federal dos Titulados em Educação Física e Desportos (SARTORI, s/d).

    Como se evidencia no tema abordado por aquele Encontro, a palavra professor foi estrategicamente substituída pelo termo Titulados, indicando a germinação da idéia do Professor de Educação Física como um profissional liberal. Àquela altura, as academias de ginástica/musculação começavam a se expandir nas grandes metrópoles do país. Juntamente com a exploração de um novo filão mercadológico voltado para a classe média e alta, cresceram os olhos dos setores privatistas da Educação Física com o intuito de implantar uma política de "grilagem" no campo não-escolar, demarcando terras que ainda não pertenciam a ninguém. Contudo, naquele momento a idéia da regulamentação profissional não prosperou por conta do prestígio que a profissão de professor ainda exercia no imaginário social.

    No contexto dos anos 80, com o processo da redemocratização brasileira em que se observou a ascensão dos partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais e associações, a FBAPEF foi reativada sob a bandeira da regulamentação da profissão. Em 1984, o projeto de lei n° 4559/84 de autoria do Deputado Federal Darcy Pozza previa a criação dos Conselhos Federal e Regionais dos Profissionais de Educação Física, Desportos e Recreação. Nos anos de 1985 e 1986, cerca de 22 APEFs chegaram a estar funcionando. Porém, em 1990, o então Presidente da República, José Sarney, veta o projeto (PEREIRA FILHO, 2005).

    Este foi um breve histórico de parte do processo de legalização da suposta profissão Educação Física. Neste contexto, a categoria mediação aparece como fator determinante para o entendimento do processo de construção do ideário da transformação da Educação Física em profissão.

    Segundo Marx apud Nozaki (2004) o todo é condicionado por diversas mediações, o que faz com que um elemento, mediado por outro, não pode sobreviver sem ele, que o determina, mas que também é por ele determinado, transformando-se constantemente, em razão da relação criada.

    Por isso, entendemos que a defesa de que a Educação Física é uma ciência (da Motricidade Humana, Ciência do Esporte) ou uma profissão está inserida numa lógica de lhe atribuir maior valor de mercado/status, para que assim haja maior poder de barganha, de acordo com suas ambições.


Conceitos

    Antes de retomarmos o debate sobre a transformação da Educação Física em profissão liberal, faz-se por bem um resgate dos conceitos e definições que alguns autores caracterizam como profissão. Aliás, percebemos que o termo profissão é alvo de muitas opiniões divergentes, no entanto, a Sociologia das Profissões parece indicar que o conhecimento formal é o critério consensual entre seus estudiosos.

    A partir do que preconiza o autor Freidson, a tese de doutorado de Rita Verenguer distingue três fatores decisivos da diferença entre o que seria uma ocupação e uma profissão: expertise, credencialismo e autonomia. A expertise se caracteriza pela realização de tarefas a partir dos conhecimentos e das habilidades de pessoas que são especialistas e que se contrapõem ao amadorismo. O credencialismo age como uma proteção desta exclusividade através de um título ou credencial e algum método de certificação associativista. A autonomia se caracteriza pela independência na execução da atividade, sendo sustentada pelo monopólio econômico, pelo sistema político e pelo administrativo (VERENGUER, 2003).

    Atentando para o critério de conhecimento formal como origem para a construção da idéia de profissão, Reis (2002) estabelece outros sete parâmetros que vão determinar o que seria uma profissão:

base num objeto de estudo, fenômeno, ou tema, e técnicas intelectuais; b) um período longo de preparação especializada; c) a prática profissional serve a fins úteis que têm valor social, requerendo a aplicação de conhecimentos; d) a renovação e inovação decorrem de conhecimentos novos e relevantes, produzidos em disciplinas referentes à profissão e sua avaliação se faz à luz deles; e) auto-organização; f) estabelecimento de um código de ética; g) altruísmo (p.42).

    Segundo o autor Mariano Enguita apud Scherer (2005) indica cinco características essenciais para uma profissão: 1) competência: deve ser o produto de uma formação específica, geralmente de nível universitário. Seu saber não pode ser discutido por leigos. Somente um profissional pode julgar o outro e somente a profissão pode controlar o acesso de novos membros; 2) vocação: são serviços prestados à humanidade; 3) licença: reconhecida e protegida pelo Estado, pois vê nela uma necessidade para a sociedade; 4) independência: há de existir uma independência parcial com relação à sua ação na sociedade, regulada por uma institucionalização; 5) auto-regulação: controle de suas atividades e membros por meio de um código de ética ou deontológico.

    Sobre o objeto de estudo da Educação Física, existe um embate acadêmico no qual três propostas são as que mais se destacam entre os autores: a atividade física, o movimento humano e o movimento enquanto linguagem, inserido no campo de conhecimento da cultura corporal. Em vista disso, chama a atenção o fato da atividade física estar intimamente ligado ao Conselho Federal de Educação Física enquanto termo central do trabalho do professor de Educação Física.

    O Documento de Intervenção Profissional do CONFEF concebe que:

O Profissional de Educação Física é especialista em atividades físicas, nas suas diversas manifestações [...] tendo como propósito prestar serviços que favoreçam o desenvolvimento da educação e da saúde, contribuindo para a capacitação e/ou restabelecimento de níveis adequados de desempenho e condicionamento fisiocorporal dos seus beneficiários, visando à consecução do bem-estar e da qualidade de vida...

    Baseando-nos no que atestou o documento acima, entendemos que não é desprezível o fato de que a instituição legal da profissão Educação Física, indicar a atividade física como o objeto da intervenção dos profissionais da área. Basta lembrar que este termo é utilizado comumente pela mídia para propagandear a necessidade de um estilo de vida ativo, ancorado por uma industria do fitness. Oferecendo uma reflexão sobre tal assunto, Nogueira (2005) avalia que a adesão aos programas de atividades físicas regulares "são marcados por uma visão medicalizada de saúde, apostam em técnicas de mudança comportamental inspiradas por correlações estatísticas oriundas de estudos epidemiológicos, além de caracterizados por um considerável viés econômico" (p.82). Assim, reiteram uma relação causal entre atividade física e saúde, desconsiderando os processos históricos de construção dos exercícios físicos e as estruturas econômicas que norteiam a sociedade capitalista.

    Outra preocupação recorrente é a questão da legitimidade da intervenção profissional. Levando em consideração a Educação Física enquanto componente curricular obrigatório na escola, são notórias as dificuldades pelas quais passa no cotidiano, seja pela percepção do dia-a-dia, seja por meio das diversas pesquisas realizadas, como as de Leonardo Jeber sobre a inferiorização da disciplina na escola e a de Maria Aparecida Bergo Andrade1 investigando o descaso e o seu desmerecimento pedagógico.

    Discordamos de Verenguer (2003) que entende que "o credencialismo não trata apenas da legalidade da intervenção profissional, expõe, também, o grau de legitimidade que os membros da profissão têm na sociedade" (p.77). A legalidade jurídica nem sempre traduz a vontade da maioria do coletivo profissional, mas sim, em muitas vezes, representa apenas grupos específicos que barganham junto às instâncias de poder. Agora, o processo de construção da legitimidade passa por processos históricos de identificação da sociedade com os profissionais e do auto-reconhecimento destes profissionais com sua ocupação. E não é isso que nos revela a história da regulamentação da Educação Física.

    Por último, vale questionar a validade dos conselhos profissionais. Estão aí para proteger quem sobre quais malfeitores? No caso da Educação Física, tomando de assalto qualquer tipo de atividade que faça suar, restringe o acesso ao trabalho de muitos profissionais de áreas e códigos culturais próprios, sem ao menos ter a clareza de qual seja o significado do termo Educação Física.


Justificativa de uma emergente profissão

    O fio condutor por onde se forjou a idéia da profissão Educação Física e a sua regulamentação profissional foi a indagação sobre qual profissional deveria atuar no âmbito desta área de intervenção, o que incluía os diversos campos de atuação onde os professores estavam inseridos (escolas, academias, escolinhas esportivas, clubes recreativos etc.).

    O fato é que houve uma significativa difusão dos chamados hábitos saudáveis desde o final dos anos 70, tendo como principais modelos o médico Kenneth Cooper e a atriz Jane Fonda. O mercado das academias de ginástica/musculação que se instalou no Brasil nos anos 60, teve um salto quantitativo notório a partir dos anos 80, com a introdução da atividade que ficou denominada como ginástica aeróbica (NOVAES, 2001).

    Falar do crescimento das práticas corporais nos espaços não-escolares, é se remeter à época da ascensão política do neoliberalismo. Com a queda na taxa de lucro das maiores corporações globais, a solução encontrada para reagir a essa crise foi um contra-ataque do capital sobre o trabalho. Os termos desregulamentação, privatização, financeirização, liberalização ficaram em voga nos noticiários jornalísticos e nas pesquisas acadêmicas. Para a doutrina neoliberal, era necessário restaurar uma "saudável" desigualdade para voltar a dinamizar a economia capitalista, às turras com a estagflação.

    Uma dessas estratégias seria reduzir a mão-de-obra empregada, seja por meio da introdução das novas tecnologias vigentes como a microeletrônica, a robótica e o incremento das telecomunicações, ou seja, pelo desenvolvimento dos métodos flexíveis da gerência do trabalho (também conhecido como toyotismo), cortando despesas desnecessárias e intensificando o ritmo da jornada de trabalho. Segundo dados de Perry Anderson, no final dos anos 80, o desemprego na Europa subiu para 8%, em contraste dos 4% do início da década (ANDERSON, 1995).

    Assim, o espectro do desemprego passa a rondar a toda classe trabalhadora assalariada que, para fugir de tal situação, recorre a soluções em nível mais individual sob a ótica do empreendedorismo, já que as empresas públicas reduziram muito suas contratações, isto quando não foram privatizadas e dilapidadas.

    No âmbito da Educação Física - que vivia uma explosão de debates em torno de questões sobre a sua cientifização, sobre a constituição dos diversos enfoques de pesquisa, sobre as correntes pedagógicas - foi percebido que, aos poucos, já não fazia parte de um rol das disciplinas considerada indispensáveis para o currículo escolar. Ou seja, enquanto se propagava a necessidade de um estilo de vida ativo por meio de hábitos saudáveis, alimentação balanceada e a prática de exercícios físicos regulares, dentro da escola, a Educação Física não parecia mais tão essencial assim. Conforme Oliveira (2000), por muito tempo se destinou à escola o papel de oferecer saúde e condicionamento físico aos alunos. No entanto, essa função já estaria apontando indícios de superação, já que a Educação Física estaria inserida numa época de novos contornos sociais. Os motivos apresentados pelo autor que atestariam a decadência da Educação Física são:

a forma repetitiva como se apresentam os conteúdos trabalhados, a falta de significância desses conteúdos desenvolvidos, o despreparo dos profissionais no trato com questões outras, que não o desporto, desmerecem a atividade e o profissional que atua com a mesma (p.46).

    Por outro lado, a expansão do possível campo de atuação para o professor de Educação Física era alardeada como a tábua de salvação para a crise de desprestígio que a Educação Física vivia na escola. Sendo assim, veio à tona uma necessidade de se reformular o currículo dos cursos de graduação, um currículo que estivesse reorientasse a formação profissional, buscando maior sintonia com as demandas do mercado. Tal fato foi ratificado com a resolução 03/87, que criava o curso de Bacharelado em Educação Física (SARTORI, s/d).

    O curso de Bacharelado apresentou conteúdos bastante semelhantes ao curso de Licenciatura, sem, contudo, a ênfase nas chamadas disciplinas pedagógicas, o que em boa parte das universidades é ministrada pelas faculdades de Educação.

    A justificativa da criação de um curso que rompe com a tradição da área de formar profissionais aptos a exercerem o magistério se apóia na idéia de que as transformações econômicas têm aumentado a demanda de serviços profissionais altamente especializados. Segundo Nascimento (2002):

o processo de especialização, e também de diferenciação, tem atraído indivíduos com habilidades, experiências e valores diferentes. Neste sentido, novos grupos de habilidades emergem e tentam o controle do mercado, conduzindo à profissionalização das ocupações (p.21).

     Indo ao encontro da citação acima, a profissionalização da área de Educação Física teria como objetivo estabelecer um espaço exclusivo de intervenção profissional no mercado de trabalho. Se outrora o graduado tinha como principal meta o emprego na escola, mais recentemente esses professores passam a ser caracterizados como profissionais liberais que buscam assegurar seu espaço tanto no mercado formal quanto no informal, sob fortes pressões de parâmetros como concorrência e competição (NASCIMENTO, 2002).

     Contudo, essas análises mascaram o entendimento da compreensão sobre o porquê o trabalho do professor de Educação Física sofreu tantas mudanças nos últimos tempos. Dentro do contexto escolar, é inegável a importância que a Educação Física figurou em outros momentos históricos, servindo aos interesses do projeto dominante de sociedade. Entretanto, se antes a disciplina estava subordinada a formação de um corpo disciplinado, a adestração a repetição de exercícios físicos com vistas à aptidão física, funcional ao padrão fordista, esta caracterização não é mais central para a formação do trabalhador de novo tipo para o capital, que precisa de disciplinas com alto conteúdo cognitivo e interacional, de modo que possa trabalhar com a capacidade de abstração, raciocínio lógico, poder de decisão, trabalho em equipe, entre outros. Portanto, sob o ponto de vista imediato, a Educação Física não faz parte do projeto pedagógico dominante (NOZAKI, 2004).

    Por outro lado, o sucesso e as supostas oportunidades do campo não-escolar apontam para um campo de atuação condizente com os tempos de abandono de políticas públicas. Na sua forma apologética, o mercado opera apenas como um parâmetro de referência no qual os trabalhadores podem vender sua força de trabalho. Vendendo a Educação Física como uma prestadora de serviços, esse ideário procura estabelecer o mercado de trabalho enquanto uma noção ideológica que visa adaptar o trabalhador às condições mais precárias de exploração da sua força de trabalho. Nessa lógica, só resta à classe trabalhadora procurar os melhores nichos desse mercado (NOZAKI, 2005).

    Por isso, para forjar o consenso de que o campo não-escolar é onde residiriam as melhores fatias do mercado na área, a formação do profissional como Bacharel foi estratégica. No entanto, a descaracterização deste profissional como um trabalhador assalariado do magistério e a caracterização deste como um profissional liberal, flexível e empreendedor, teve o objetivo de adaptá-lo desde seu curso de graduação a se conscientizar do fenômeno natural da precarização do trabalho. Trata-se de uma descaracterização epistemológica da área, posto que, em nosso entendimento, independente do espaço de atuação, o professor estará exercendo uma prática docente.


Educação Física como profissão liberal

    Chegamos a análise da caracterização do que se pretende deste profissional liberal em Educação Física, seu comportamento frente ao mundo globalizado, às atuais condições de trabalho e sua inserção no processo produtivo.

     Tradicionalmente, o professor de Educação Física tem na escola o seu principal local de trabalho, onde ele consegue constituir uma carreira prolongada e com relações de trabalho formalizadas. Contudo, nos últimos 20 anos assistiu-se a uma explosão do segmento de atividades físicas em estabelecimentos privados.

     Assim como Marx descreve que "a descoberta da América, a circunavegação da África [...] os mercados da Índia e da China, o comércio colonial, o incremento dos meios de troca" (p.2), foram fatores decisivos para o desenvolvimento de uma nova classe social, a burguesia, a criação de novas necessidades sob o paradigma da saúde e do bem-estar resultou numa "descoberta" de novos mercados para investimento do grande capital. Além da abertura de negócios como academias, spas, resorts, fomentou-se uma imensa indústria de materiais esportivos, o que resultou numa cultura de marcas e griffes.

    Os professores de Educação Física, com a iminência de suprirem suas necessidades passaram a tomar conta desse novo filão que emergia, através da venda de sua força de trabalho. E a Educação Física passa a ser tratada enquanto profissão liberal, mesmo que, em nosso entendimento, ela só se concretize como disciplina escolar.

    As profissões consolidadas no cenário mercantil buscam afirmar-se pelo prestígio social, capacidade de intervenção e possibilidade de ganhos elevados. A mutação da Educação Física como uma profissão liberal orienta-se pela lógica mercadológica do trabalho e apresenta-se como uma prestação de serviço, onde o cliente é considerado o sujeito da ação (SADI, 2005).

    Por conta disso, os defensores da profissão/Conselho defendem a especialização do saber e a busca contínua de conteúdos exclusivos para que, desta forma, o suposto profissional de Educação Física se constitua no dono da atividade física. Já para se imporem perante a sociedade e às outras profissões já constituídas, endossam a necessidade da criação de um Conselho profissional, juntamente com um código de ética. Por Nascimento (2002) essas iniciativas são essenciais para "estabelecer padrões de conduta profissional quanto para assegurar o fornecimento de produto de alta qualidade e a projeção de uma imagem profissional" (p.28).

    O Conselho profissional teria dentre outras funções, a de assegurar os nichos específicos e exclusivos ao profissional da área. No caso da Educação Física, há uma corrente preocupação com outros profissionais de nível superior como as disputas contra a Medicina, a Fisioterapia, o Turismo. A todo tempo se fala na importância das equipes multidisciplinares, do mesmo modo em que se observa uma preocupação de que cada profissional atue somente no raio de atuação que lhe couber.

    O procedimento dos profissionais inseridos no mercado, também é uma questão recorrente na defesa do mercado de trabalho. Dentro de um cenário de tamanhas incertezas e instabilidades, segundo Nascimento (2002) o comportamento do profissional liberal de Educação Física deve se caracterizar por "valorizar o desenvolvimento de atitudes de autonomia e de adaptabilidade às novas situações e mudanças" (p.37). Ou seja, por meio de atitudes positivas e receptivas às oportunidades surgidas, as dificuldades apresentadas não seriam tão cruéis assim. Se as regras do jogo mudam a todo instante, aprenda a jogá-las, mas nunca deixe o seu cliente (outrora chamado de aluno) a ver navios.

     O profissional liberal seria aquele trabalhador disposto a conviver com riscos e desafios provocados pela velocidade constante das mudanças na sociedade. Além de assumir uma postura pró-ativa ao aprimoramento das competências requeridas, o profissional de Educação Física deveria se conscientizar para exercer uma postura empreendedora. Para Nascimento (2002):

o profissional de Educação Física assumiria um novo papel na sociedade, deixando de lado a posição cômoda e estável de assalariado da administração pública ou de um organismo privado. Ocupará o seu espaço se impondo como um profissional liberal, gerenciando o seu próprio desenvolvimento no mercado de trabalho.


Considerações finais

    O que as análises apologéticas ao mercado de trabalho escondem é que o projeto de construção da profissão Educação Física e a sua regulamentação, conforme a Lei 9696/98, atende aos interesses do capital que, na tentativa de recompor sua base de lucros, expandem seus investimentos para uma área ainda com potencial de exploração sedutor e com altas taxas de mais-valia. Grande parte dos profissionais inseridos no setor de serviços não possui direitos trabalhistas garantidos, restando apenas a negociação individual entre partes interessadas. Compreendendo o mundo do trabalho como o confronto entre capital e trabalho, conclui-se que as classes vão lutar de acordo com seus interesses. Logo, verificando atualmente um alto "exército de reserva" de trabalhadores, a balança tende a pender para os grupos empresariais.

     O objetivo é que à suposta profissão Educação Física seja atribuída status e prestígio social para que possa ser vendida pelo maior preço possível, reservando o mercado para os profissionais contribuidores e mantenedores do anacrônico conselho. Mesmo que o mercado de trabalho esteja reservado apenas aos graduados na área, as relações de exploração continuam vigorando.

    Contudo, podemos reagir a essa pedagogia do consenso. Da mesma forma que as relações sociais, o modo de produção heterogerido e os valores culturais educam o trabalhador, a compreensão da teoria revolucionária vai se dar pela unidade da teoria/ação. E, com ela, a consciência de classe, categoria fundamental para o devido alcance das lutas da classe trabalhadora.


Nota

  1. Ver em Nozaki (2004).


Referências

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  • BRACHT, Valter. Educação Física e ciência: cenas de um casamento (in) feliz. Ijuí: UNIJUÍ, 1999.

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  • MARINHO, Inezil P. Nova denominação para o professor de Educação Física. Educação Física: uma expressão inadequada. In: GOELLNER, Silvana V (org.). Inezil Penna Marinho: coletânea de textos. Porto Alegre: Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, 2005.

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