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Refletindo sobre a participação da mulher
no esporte moderno: algumas relações
entre gênero e mídia impressa
Sort and printed media: some reflections about the sports woman participation

   
*CEPELS/UFPR
** UFPR
(Brasil)
 
 
Bruno Boschilia*
boschilia@ufpr.br  
Sidmar dos Santos Meurer**
sid_meurer@ufpr.br
 

 

 

 

 
Resumo
    O presente trabalho consiste no resultado de algumas reflexões decorrentes de estudos investigatórios que ultimamente temos despendido, e, que objetivam analisar as manifestações discursivas da grande mídia jornalística impressa em torno de algumas possibilidades de participação feminina no esporte moderno, acreditando ter nesse veículo de comunicação um profícuo itinerário para a compreensão de determinantes sócio-culturais marcadamente enraizados em nossa sociedade. Para tanto, recorre-se à perspectiva metodológica de Análise de Discurso (AD) da escola francesa, tendo nos estudos de Michel Pêcheux e Eni P. Orlandi as principais referências para lançar-se em um empreendimento analítico sobre o corpus constituído por fragmentos discursivos desprendidos do jornalismo impresso, no intuito de compreender e desvelar mecanismos implícitos que, através do que Pêcheux denominou 'gestão discursiva', buscam rotular, cooptar, comparar, estereotipar e, inclusive, promover estratégias de inserção feminina, localizando nesse percurso a invenção de uma tensão entre gêneros. Como eixos temáticos, os investimentos analíticos centraram esforços nas manifestações discursivas decorrentes da inédita participação de mulheres arbitrando partidas do campeonato brasileiro de futebol masculino, e, da realização dos Jogos Olímpicos de Atenas, disputados na Grécia no ano de 2004.
    Unitermos: Esporte. Mídia impressa. Análise de discurso (AD).
 
Abstract
    This work is the result of some reflections that we had made in the last search study and that aim to analyse the discursives manifestations of the big printed journalistic mídia of some possibilities of feminine participation in the modern sport, it has been believing in this means of comunication and itinerary profitable to the comprehension of social-culturals determining that are dee-rooted in our society. For all that we recurred to the metodologic perspective of Discourse Analysis(AD) of the french school, in the Michel Pêcheux and Eni P. Orlandi studies have the main referencies to throw in an analytic enterprise about the corporate corpus for discursives fragments unattached of the printed journalism with the purpose of understand and disclose implicit mechanisms that through Pêcheux had denominated 'discursive gestion' , they seek to tally, to co-opt, to compare, to stereotype and inclusively to promove strategies of feminine insertion, locating in this passage the invention of a tension between sorts. As thematic axles the analytical investments had centered efforts in the decurrent discursives manifestations of the unpublished participation of women arbitrating the Brazilian championship of masculine soccer, and of the accomplishment of the Athens Olympic Games, disputed in Greece in the year of 2004.
    Keywords: Sport. Printed media. Discourse analysis (DA).
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 97 - Junio de 2006

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Introdução

    O Brasil é país do futebol! Ou pelo menos foi neste país de imensa diversidade cultural que esse esporte, originário da aristocracia inglesa, encontrou o ambiente perfeito para o seu desenvolvimento.

    Apesar de existirem há centenas de anos indícios de jogos que continham aspectos do futebol atual, é somente no século XIX na Inglaterra, que se inicia um processo de organização e esportivização da prática do futebol. Em decorrência das novas necessidades, torna-se fundamental uma fiscalização imposta aos praticantes, a fim de garantir o cumprimento das regras, colocando limites à violência. Dessa forma, em 1868, surge a figura reguladora e polêmica do árbitro (Aquino, 2002, p.18).

    Desde que ingressou no Brasil, no final do século XIX, o futebol sofreu um processo que DaMatta chamará de "aculturação positiva", em que é amplamente popularizado e massificado, tornando-se elemento de identificação cultural da população, através da criação de um estilo próprio de jogar o futebol (DaMatta apud Vaz, 2002, p. 147). Assim, é principalmente na segunda metade do século XX, que o futebol irá se consolidar como esporte de preferência nacional na sociedade brasileira. O inédito vice-campeonato mundial de 1950, conquistado em território nacional, e as vitórias nas Copas de 1958, 1962 e 1970, conferem ao futebol brasileiro o status de melhor do mundo.

    Essas conquistas desencadearam uma série de transformações nunca experimentadas no meio futebolístico nacional. Surge uma crescente busca pelo esporte e a necessidade em acompanhar os seus principais acontecimentos. Neste contexto, a mídia irá desempenhar um importante papel na divulgação, popularização e massificação do futebol. Essa relação entre esporte e mídia, caracterizada por Betti (1998) como "simbiôntica", já que irá definir os rumos a serem trilhados pelo esporte na sociedade contemporânea, especialmente no plano econômico. Para Hesling:

O esporte transformou-se num espetáculo modelado de forma a ser consumido por telespectadores que procuram um entretenimento excitante, e é parte cada vez maior da indústria do lazer, sendo fator decisivo para isso o papel desempenhado pela mídia (Hesling apud Betti, 1998, p. 31).

    Nessa mesma relação, Marchi Jr complementa afirmando que o "...fenômeno esportivo passa a ser regido pelas relações próprias da lógica do mercado, nas quais os esportes são conduzidos ao processo de espetacularização e mercantilização" (Marchi Jr, 2001, p. 21).


Futebol: um reduto masculino?

    O esporte, historicamente, vem se constituindo como uma área reservadamente masculina, como afirmam Dunning e Maguire (1997). Hoje, mais do que nunca, o esporte é o "...principal local de ensino, preservação e de expressão pública das normas tradicionais da masculinidade" (Dunning e Maguire, 1997, p. 345). O homem tem no esporte organizado, principalmente nos que contemplam a força e a virilidade, como é o caso do futebol, um local privilegiado para a "validação da masculinidade", onde se expressam, utilizando um conceito eliasiano, "formas de masculinidade civilizadas".

    Para Dunning e Maguire, construiu-se no mundo ocidental a imagem masculina de "herói, do competidor, do conquistador" (Dunning e Maguire, 1997, p. 323). Imagem esta que fundamentou e sustentou por longa data o papel exercido pelo homem de "sustentáculo da família" (Dunning e Maguire, 1997, p. 323). No entanto, com o "processo civilizador" e de auto-restrição das violências, o homem na sociedade contemporânea pautada, sobretudo, nas relações de mercado, encontra pouquíssimas oportunidades de experimentar o 'heroísmo', a não ser durante seus passatempos, de maneira geral, relacionados com alguma atividade esportiva. Isso evidencia o esporte como um espaço privilegiado para os estudos sociais acerca da constituição das "identidades sociais, dos habitus ou maneiras de ser" (Dunning e Maguire, 1997, p. 323).

    A idéia eliasiana do "processo civilizador", de controle das emoções, das pulsões, da violência, entra em choque com o ideal de virilidade e de afirmação masculina. Isso propicia o ingresso feminino, mesmo que de forma tímida, nos eventos esportivos. Porém, de acordo com Dunning e Maguire, esse "modelo de relações entre os sexos", não faz dos esportes, eventos menos masculinizados, pois pauta-se no sentido de comportar uma "masculinidade agressiva e a subordinação das mulheres". Para os autores

o esporte tende a representar uma importante fonte de experiência da validação da masculinidade a ser percebida como uma barreira contra a feminização e a emasculação (Dunning e Maguire, 1997, p. 339).

    Corroborando com esta idéia, Rubio e Simões afirmam que "a mulher já foi considerada como usurpadora ou profanadora de um espaço consagrado ao usufruto masculino" (1999, p.50). Dentre os argumentos utilizados para sua exclusão, encontramos a frágil constituição física e colocação em dúvida da sua feminilidade. Mesmo com as restrições, imposições, preconceitos obstáculos colocados à inserção feminina no esporte, cada vez mais esta vem conseguindo ganhar espaço no campo esportivo de uma forma geral.

    Diante disso, percebe-se nos estádios brasileiros um número cada vez maior de mulheres que procuram os eventos futebolísticos . Mais que isso, mesmo que timidamente, elas deixam as arquibancadas, abandonando o papel de meras espectadoras, e assumem funções específicas na realização e promoção dos eventos, seja jogando, cobrindo jornalisticamente ou, como vem ocorrendo recentemente no Brasil, arbitrando partidas masculinas de futebol. Esse fenômeno surge como um objeto extremamente interessante de investigação e análise. É nesse sentido, de compreender o papel social que a mulher, na condição de árbitra, desempenha no esporte-espetáculo, que se propõe o presente estudo. Como a mídia impressa, elemento formador de opinião e propulsora dos eventos esportivos, se reporta a este fenômeno e qual é a imagem veiculada por estes meios.


Delimitando o corpus de análise

    A mídia fundamenta-se nos dias atuais como um espaço significativo na esfera social. As relações que estabelece com os mais diversos campos é determinante na configuração da sociedade atual. As tentativas de compreensão desta sociedade, seja dos seus aspectos sociais, políticos, econômicos ou culturais, tem na mídia um componente capital e indivisível. Ao mesmo tempo em que nos permite interpretar as relações que estabelece ao longo de toda a cadeia social, a mídia é, concomitantemente, elemento de destaque no complexo conjunto de determinações que impulsionam estas relações nos mais diversos âmbitos.

    No esporte esta relação é insofismável, tanto que a sua versão moderna não pode ser compreendida se dissociada da mídia, uma vez que ela será a principal responsável pelas novas demandas colocadas ao esporte transformado em espetáculo. Por tudo isso, se tem no binômio esporte-mídia, campo propício para a elucidação deste expressivo fenômeno, o esporte produto da sociedade. Para isso, são necessárias evidências materializadas que representem, de forma notória, a estreita relação esporte-mídia. Dentre algumas possibilidades, uma muito significativa se revela no jornalismo esportivo especializado, em especial através dos seus dizeres, organizados em forma de discursos.

    Essa relação vem trazendo ao esporte mudanças estruturais significativas. As regras e os eventos esportivos são elaborados em função das possibilidades midiáticas que podem gerar. Possibilidades estas que se organizam em diferentes níveis de acordo com o retorno econômico, a amplitude do evento e o grau de introspecção e interpelação nos discursos dele decorrentes, enfim, de acordo com o potencial espetacular que nele encerra. Dessa forma, o esporte torna-se espetáculo de consumo, um espetáculo esportivo, que, no entendimento de Bourdieu (1997, p.127),

... é produzido, de certa maneira, duas vezes: uma primeira vez por todo um conjunto de agentes, atletas, treinadores, médicos, organizadores, juizes, cronometristas, encenadores de todo o cerimonial, que concorrem para o bom transcurso da competição esportiva no estádio; uma segunda vez por todos aqueles que produzem a reprodução e em discursos desse espetáculo.

    Assim, fazem parte desse ´segundo espetáculo´ - ou quem espetaculariza o primeiro - as grandes redes de televisão, as emissoras de rádio, repórteres, cronistas, fotógrafos, e uma infinidade de profissionais indispensáveis ao trabalho de cobrir, divulgar e noticiar o grande "show". É extraordinário o nível de repercussão que eventos esportivos globais, como é o caso dos Jogos Olímpicos, conseguem atingir.

Atenas alcança o globo. Um pequeno lugar alarga-se na escala planetária e imiscui-se nos recantos mais distantes, onde haja uma antena, um rádio, uma televisão. Todos estamos em Atenas, ou melhor, Atenas está em nós, sobre muitos ângulos, diversas perspectivas, inúmeras narrativas. (BITTENCOURT, 2004).

    A cobertura jornalística aos Jogos Olímpicos é imensa, prova disso, é o aumento do espaço diário reservado à sua cobertura, a ponto de extrapolarem os limites dos cadernos esportivos em edições diárias especiais, publicadas durante toda a realização do evento.

    Dessa forma, este trabalho está sustentado em dois pilares de análise: o primeiro refere-se ao Caderno Atenas 2004, edição especial publicada pelo jornal Folha de São Paulo, entre os dias 11 a 31 de agosto 2004 e no caderno de esportes do dia 10 de agosto de 2004. O segundo, busca analisar a arbitragem do Campeonato Brasileiro de Futebol masculino - Série A, ano de 2003. Neste evento foi possível notar a inserção da mulher em um espaço anteriormente ocupado exclusivamente pelos homens. Fato este que em determinados momentos recebeu relativa atenção por parte da mídia. Assim, das 46 rodadas em que se desenvolveu o certame, em 8 delas houve atuação de um trio de arbitragem composto por mulheres - Silvia Regina de Oliveira, Ana Paula da Silva Oliveira e Aline Lambert -, algo inédito até então.


Algumas prerrogativas para análise do campo esportivo

    A partir do delineamento do corpus de análise, lançou-se sobre ele a perspectiva de Análise de Discurso proposta pela escola francesa, fundada por Michel Pêcheux, sendo no Brasil, o nome de Eni Pulcinelli Orlandi a principal referência.

     A Análise de Discurso (AD) não se resume a uma investigação das superfícies lingüísticas, dos aspectos semânticos do texto, nem tampouco é um método de interpretação, de atribuição de sentidos, mas sim, compreende um processo de apreciação do que Orlandi (2003) denomina "condições de produção". Conforme Pêcheux (1990, p. 23), a AD constitui-se, precisamente, "com o objetivo de explicitar e descrever montagens, arranjos sócio-históricos de constelações de enunciados". Busca-se "compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história" (ORLANDI, 2003, p.15). Nos termos da própria autora, sua proposta de análise discursiva se caracteriza por:

... problematizar a relação com o texto, procurando apenas explicitar os processos de significação que nele estão configurados, os mecanismos de produção de sentidos que estão funcionando. Compreender na perspectiva discursiva, não é, pois, atribuir um sentido, mas conhecer os mecanismos pelos quais se põe em jogo um determinado processo de significação (ORLANDI, 2001, p.117).

    Com base na perspectiva elaborada por Orlandi, coloca-se em andamento a consolidação do trabalho metodológico para a efetivação da análise proposta. Lançando mão das prerrogativas analítico-discursivas foram definidas estratégias a fim de estruturar um dispositivo de análise. Deste modo, alguns mecanismos foram elaborados, a começar pela estruturação do corpus de análise. Este processo, segundo Orlandi (2003), consiste em um trabalho de recorte, de delimitação dos discursos, pois, não se pode apontar para um ponto inicial nem para um ponto final ao falar de discurso. Não há discurso que não se relacione, não remeta a outros discursos; é daí, das relações interdiscursivas que resultam os sentidos. Nas palavras da autora, "um discurso aponta para outros que o sustentam, assim como para dizeres futuros" (Orlandi, 2003, p.38). O sujeito discursivo, locutor, ao produzir um dizer sobre a presença da mulher no futebol, o fará através da mediação, de um processo interpretativo sobre discursos já estabelecidos historicamente e que se mantém em um nível tal de anonimato. O locutor durante o processo de formação discursiva, mesmo que de forma inconsciente, toma parte de inúmeros outros discursos já estabelecidos sobre Olimpíada, futebol e mulher, repletos de ideologias, tabus e predisposições, que historicamente se consolidaram - o futebol como exclusividade masculina, em virtude do seu caráter viril, incompatível com a representação feminina de 'delicadeza'. Assim, rejeita-se a idéia de um discurso que se encerra em si mesmo. Na constituição do corpus através dos recortes, já se materializa um processo de análise, pois, delimita-se fragmentos discursivos dos discursos que o materializaram.

Brasileiras começam Olimpíada no escuro (título)
Para (...), Aline, a capitã, o mais estranho é a ausência do time masculino - a equipe falhou no Pré-Olímpico. "É esquisito. De uma hora para outra, muita gente começou a prestar atenção na gente. Mas a responsabilidade é a mesma. Não pesa não", disse.Ontem, o Brasil almoçou no mesmo local que os paraguaios, algozes do masculino. "Dói ver eles aqui. Dói muito. Seria muito bom poder torcer e ter contato com os rapazes. Seria mais legal para todo mundo, eu acho. Para eles e para nós", disse René Simões. (Caderno Atenas, 11 de agosto de 2004, p.4)

    A linguagem não é transparente. Ora, sabedor disso, cabe ao analista superar uma contemplação dos aspectos puramente lingüísticos, como também de uma mera leitura interpretativa. Presume-se do analista que ele consiga transpassar o discurso, superar as superficialidades interpretativas para que, finalmente, possa apreciar nele as "determinações discursivas", as suas condições de produção, a fim de que seja possível extrair as suas significações históricas, sociais e ideológicas.

    É possível perceber, na passagem supra, um iminente apelo e uma forçosa comparação ao futebol masculino, que começam antes mesmo do início dos Jogos Olímpicos. O escuro aludido na matéria não se refere somente ao desconhecimento das futuras adversárias por parte das brasileiras, mas também à própria incógnita que se mostra a equipe perante o grande público, resultado do baixo interesse midiático para com a modalidade antes do torneio olímpico (o futebol feminino não freqüenta os noticiários esportivos normalmente), potencializando uma insignificação social à participação feminina no futebol, e, dessa forma, justificando sua ausência.

    A responsabilidade colocada ao selecionado feminino de suprir, mesmo que minimamente, a ausência da equipe masculina, e a conseqüente comparação, no transcorrer dos textos jornalísticos operados pelos arranjos enunciativos, parecem também contagiar o treinador brasileiro:

'No feminino, Brasil x EUA é como Brasil x Argentina no masculino. A rivalidade é enorme'. A definição é de Renê Simões. O técnico espera 'clima pesado' espera clima pesado para a partida de hoje, as 12 h (horário de Brasília), em Tessalônica, pela segunda rodada do torneio de futebol da Olimpíada (Caderno Atenas 2004, 14 de agosto de 2004, p.4).

    Ao olhar para o material analisado, percebemos a recorrência às comparações futebol masculino - futebol feminino. Trata-se, pois, de uma construção estratégica adotada pelo agente midiático no sentido de promover um evento (a participação do futebol feminino do Brasil no torneio olímpico) que a princípio não desperta amplo interesse no grande público consumidor de futebol no país, a partir da legitimidade e do status cultural que ostenta a equipe masculina. Poderíamos, grosso modo, caracterizar esse expediente adotado pela mídia jornalística impressa como uma tentativa de masculinização da modalidade e das atletas participantes.

    A linguagem não é transparente. Ora, sabedor disso, cabe ao analista superar uma contemplação dos aspectos puramente lingüísticos, como também de uma mera leitura interpretativa. Presume-se do analista que ele consiga transpassar o discurso, superar as superficialidades interpretativas para que, finalmente, possa apreciar nele as "determinações discursivas", as suas condições de produção, a fim de que seja possível extrair as suas significações históricas, sociais e ideológicas.

    Caberá também ao analista a elaboração de um mecanismo analítico próprio, particularizado, de acordo com as questões que se propõe a compreender, pois, de acordo com Orlandi (2003), não se concebe um discurso estanque, a-temporal, isento às determinações históricas e culturais. Pelo contrário, ele é produto de uma historicidade determinada, de um contexto específico que o confere determinadas significações. A partir disso, cônscio do aspecto particularizado da sua análise, o analista lançará seus questionamentos ao objeto de estudo.

  1. "A beleza no futebol: um trio feminino vai abrilhantar o jogo Atlético-MG X Criciúma, hoje, no Independência. É bom, afinal, veremos uma plasticidade diferente da habitual, onde a lisura das pernas femininas se misturará as cabeludas e musculosas coxas". (DC, 01/11/03).

  2. "Para ajudar, além da concentração no jogo, em primeiro lugar, elas não dispensam a nécessaire: batom, esmalte, brinco, perfume e espelho". (FSP, 29/06/03).

  3. "Duas redes de TV, com tira-teima e tudo mais, mostram a partida ao vivo para São Paulo". (FSP, 29/06/03).

    Ao olhar para as passagens selecionadas acima, numa primeira interpretação, literal, pode-se constatar que há algo de novo, algo de delicado e belo, no "rude" futebol. No entanto, a AD presume uma superação dessa leitura simplista, é preciso olhar para o local onde estes discursos estão sendo produzidos. Como diz Orlandi, o discurso se dá através de uma mediação entre o locutor, "aquele se apresenta como 'eu' no discurso", e o enunciador, que é "a perspectiva que esse 'eu' constrói" (Orlandi, 2003, p. 73). Ou seja, o processo não segue uma linearidade na qual primeiro o locutor fala para posteriormente o leitor tomar partido dos seus dizeres. O sujeito discursivo elabora o leitor imaginário, o seu publico alvo, e este regula a sua produção discursiva. Sabe-se, de maneira geral, que a grande maioria do público que consome o esporte é formado por homens. Consciente disso, o autor destaca características tidas socialmente como femininas, além de colocar sob suspeita a competência feminina dentro do futebol, corroborando com a idéia de "ritos de validação da masculinidade", proposta por Dunning e Maguire (1997).

    Além disso, segundo Orlandi (2001, p. 11), ao se ler "considera-se não apenas o que está dito, mas também o que está implícito: aquilo que não está dito e que também está significando". Ao se deparar, por exemplo, com uma matéria intitulada "Esperar o quê?" (DC, 04/11/2003), após uma atuação do referido trio de arbitragem, que não agradou aos simpatizantes da equipe do Criciúma, no confronto com a equipe do Atlético-MG, observa-se à resistência a entrada da mulher no campo esportivo. Não está materializado textualmente, mas está subentendido, refletindo questões ideológicas que se fazem presentes no processo de produção discursiva.


Considerações finais

    Não se pretende com este trabalho propor novas formas de re-significação, nem tampouco estabelecer determinações infalíveis frente ao fenômeno da inserção da mulher no esporte. Trata-se apenas de uma problematização acerca dos elementos que estão imbricados a esta inserção, acreditando ter nestas questões um espaço privilegiado para a compreensão das identidades sexuais, colocadas na sociedade contemporânea.

     O esporte, enquanto área reservada masculina, atua no sentido de manter uma dominação simbólica dos homens sobre as mulheres, atribuindo-as um aspecto grosseiro de mulher objeto. No processo de espetacularização do esporte, a mídia confere à presença feminina um papel promocional, constituindo um atrativo a mais ao evento, e os discursos jornalísticos apontam para isso.

    Particularmente sobre o objeto contemplado por essa investigação, os discursos jornalísticos decorrentes da inserção da mulher na arbitragem de futebol masculino e a presença futebolística feminina nos Jogos Olímpicos, oferecem importantes elementos, pistas consubstanciais para a compreensão gênero-esporte. Para isso, no entanto, é imprescindível que o fenômeno não seja contemplado isoladamente, mas sim, enredado em uma série de elementos determinantes nas configurações do esporte moderno e da sociedade atual.


Referências

  • AQUINO, R. S. L. Futebol: uma paixão nacional. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

  • BITTENCOURT, Fernando. Ritual olímpico e os mitos da modernidade: implicações midiáticas. In: 2o. Congresso Sul-Brasileiro de Ciências do Esporte. Anais. Criciúma: CBCE, 2004.

  • BETTI, M. A janela de vidro: esporte, televisão e educação física. Campinas: Papirus, 1998.

  • BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

  • DUNNING, E. e MAGUIRE, J. As relações entre os sexos no esporte. In: Estudos Feministas, vol. 5, n. 2. Florianópolis: UFSC, 1997, p. 321-348.

  • MARCHI JR, W. "Sacando" o Voleibol: do amadorismo a espetacularização da modalidade no Brasil (1970 - 2000). Campinas, 2001. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas.

  • ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 5a. Edição. Campinas: Pontes, 2003.

  • _____. Discurso e Leitura. 6a. Edição. São Paulo/Campinas: Cortez/Universidade Estadual de Campinas, 2001.

  • PÊCHEUX, Michel. O Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1990.

  • RUBIO, K.; SIMÕES, A. C. De espectadoras a protagonistas: a conquista do espaço esportivo pelas mulheres. In: Movimento, ano V, n. 11, 1999. p. 50-56.

  • VAZ, A. F. DaMatta: o futebol como drama e mitologia. In: PRONI, M. W. e LUCENA, R. F. (orgs). Esporte: história e sociedade. Campinas: autores associados, 2002, p. 139-164.


Jornais pesquisados

  • FOLHA DE SÃO PAULO, junho a dezembro de 2003 e agosto de 2004.

  • DIÁRIO CATARINENSE, junho a dezembro de 2003.

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