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Pierre Bourdieu: apontamentos para uma reflexão
metodológica da história do esporte moderno

   
Universidade Tecnológica Federal
do Paraná- Campus Ponta Grossa
 
 
Dr. Luiz Alberto Pilatti
luiz.pilatti@terra.com.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
    O presente trabalho é uma reflexão metodológica sobre as possibilidades de utilização do modelo proposto pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu para a interpretação histórica dos esportes. Constatou-se que, mesmo o modelo abrindo possibilidades profícuas para a discussão desse objeto e permitir a construção de um conceito apropriado de esporte moderno, o modelo teórico de Bourdieu não é perfeitamente adequado para se trabalhar historicamente um objeto, por ser um modelo sociológico.
    Unitermos: Pierre Bourdieu. História dos esportes. Metodologia.
 
Abstract
    The current work is a methodological reflection about the possibilities of use of the model proposed by the French sociologist Pierre Bourdieu for the historical interpretation of the sports. It was verified that, even the model opening useful possibilities for the discussion of that object and to allow the construction of an appropriate concept of modern sport, Bourdieu's theoretical model is not adapted perfectly to work an object historically.
    Keywords: Pierre Bourdieu. History. Methodology.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 97 - Junio de 2006

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Introdução

    As idéias do sociólogo francês Pierre Bourdieu, utilizadas em diferentes domínios do conhecimento, apresentam possibilidades interpretativas extremamente profícuas para a leitura dos esportes modernos . A ampla utilização dos escritos do autor nos círculos acadêmicos internacionais denota a importância do modelo teórico e a necessidade sempre presente de discussões aprofundadas.

    O eixo do trabalho de Bourdieu está situado na discussão das relações de forças e dos processos que regulam as sociedades modernas, ou seja, na mediação entre o agente social e a sociedade.

    Sua problemática teórica é fundada no bojo de três premissas básicas, as quais articulam toda sua produção: o conhecimento praxiológico, a noção de habitus e o conceito de campo. De forma genérica, pode-se dizer que Bourdieu substitui a idéia de sociedade por "campos sociais". A similitude contida na idéia "campo" e de mercado permite supor a adequação dessa idéia para o esporte moderno que, mais que nunca, encontra-se orientado por uma lógica mercantil.

    Discutir algumas possibilidades metodológicas que os escritos sociológicos de Bourdieu abrem, principalmente no campo da história dos esportes, é o que se intenta com o presente artigo.


A Teoria dos Campos

    Para Bourdieu (1983, p. 89), campos são "espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes (em parte determinadas por elas)".

    Independentemente de sua especificidade, os campos possuem leis gerais invariáveis e propriedades particulares que se expressam como funções variáveis secundárias. Com efeito, os conhecimentos adquiridos com um campo específico são úteis para se interrogar e interpretar outros campos. É justamente nesse nó que Bourdieu desenhou a "Teoria dos Campos".

    Um campo estrema-se, entre muitos aspectos, pela definição dos objetos de disputas e dos interesses específicos do próprio campo. Esses objetos e interesses são percebidos apenas por pessoas com formação apropriada para adentrarem no campo.

    Para que um campo funcione, entende Bourdieu (1983, p. 89), "é preciso que haja objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de habitus que impliquem no conhecimento e reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputas, etc.".

    A existência do habitus é, ao mesmo tempo, condição de existência de um determinado campo e produto de seu funcionamento dentro de uma estrutura específica. Para Bourdieu (1983, p. 90):

A estrutura do campo é um estado da relação de força entre os agentes ou as instituições engajadas na luta ou, se preferirmos, da distribuição do capital específico que, acumulado no curso das lutas anteriores, orienta as estratégias ulteriores. Esta estrutura, que está na origem das estratégias destinadas a transformá-la, também está sempre em jogo: as lutas cujo espaço é o campo têm por objeto o monopólio da violência legítima (autoridade específica) que é característica do campo considerado, isto é, em definitivo, a conservação ou a subversão da estrutura da distribuição do capital específico.

    Dentro dessa relação de força, os agentes que monopolizam o capital específico1, mais ou menos completamente, tendem a estratégias que visem a manutenção da ordem estabelecida, freqüentemente, com intransigência em relação as mudanças no estalão. Os agentes que possuem menos capital, inversamente, tendem a estratégias de subversão e rompimento com o estalão, dentro de certos limites.

    A transposição desses limites pode determinar a exclusão dos mesmos do campo. Assim, as transformações impostas por esses agentes são revoluções parciais, ou seja, são revoluções que não colocam em questão os fundamentos do objeto de disputas (jogo). Bourdieu (1983, p. 91) considera que

[...] um dos fatores que coloca os diferentes jogos ao abrigo das revoluções totais, cuja natureza destrói não apenas os dominantes e a dominação, mas o próprio jogo, é precisamente a própria importância do investimento, em tempo, em esforços, etc., que supõe a entrada no jogo e que, como as provas dos ritos de passagem, contribui para tornar praticamente impensável a destruição pura e simples do jogo.

    Todos os agentes engajados num determinado campo possuem determinados interesses específicos comuns. Entre esses, o principal deles é a existência do próprio campo. A luta entre esses antagonistas pressupõe um acordo sobre o que merece ser disputado e produz a crença no valor dessa disputa.

    Outro fator considerado como relevante é a conservação do que se é produzido dentro do campo. Essa conservação ocorre, normalmente, ligada a aparição de um corpo de conservadores do passado e do presente e serve, aos detentores do capital específico, para conservar e se conservar conservando. O autor considera tal atitude ou estratégia com o passado e com o presente como um dos índices mais seguros da constituição de um campo.

    Tais estratégias, mesmo que objetivamente orientadas em relação a fins que não podem ser subjetivamente almejados, não buscam a maximização de um lucro específico. Elas ocorrem como relação inconsciente entre um habitus e um campo.

    Para Bourdieu, o habitus é uma possibilidade viável de construção de uma ciência das práticas isenta de finalismo e mecanicismo. O delineamento dado ao conceito é o seguinte:

O habitus, sistema de disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou explícita que funciona como um sistema de esquemas geradores, é gerador de estratégias que podem ser objetivamente afins aos interesses objetivos de seus autores sem terem sido expressamente concebidos para esse fim. Há toda uma reeducação a ser feita para escapar à alternativa entre finalismo ingênuo [...] e a explicação do tipo mecanicista (que tornaria esta transformação por um efeito direto e simples de determinações sociais). Quando basta deixar o habitus funcionar para obedecer à necessidade imanente do campo, e satisfazer às exigências inscritas (o que em todo campo constitui a própria definição de excelência, sem que as pessoas tenham absolutamente consciência de estarem se sacrificando por um dever e menos ainda o de procurarem a maximização do lucro específico). Eles têm assim, o lucro suplementar de se verem e serem vistos como perfeitamente desinteressados (BOURDIEU, 1983, p. 94).

    Feita a adução de algumas idéias e conceitos centrais do modelo teórico de Bourdieu, a discussão será deslocada para o texto onde as propriedades aqui sumariadas foram colocadas em contíguo com o esporte. Para tal, duas perguntas prévias são adequadas: 1. Existe efetivamente um campo esportivo? E, considerando que esse campo existe; 2. como funciona o sistema de esquemas geradores para a construção de um habitus esportivo adequado à indústria do entretenimento?


Fronteiras do esporte moderno

    Em Como é possível ser esportivo?, Bourdieu parte da suposição que existe um conjunto de práticas e de consumos esportivos dirigido aos agentes sociais, o qual procura encontrar uma certa demanda social. Essa suposição, colocou, para o autor, duas questões, a saber:

Em primeiro lugar, existe um espaço de produção dotado de uma lógica própria, de uma história própria, no interior do qual se engendram os "produtos esportivos", isto é, o universo das práticas e dos consumos esportivos disponíveis e socialmente aceitáveis em um determinado momento? Segundo, quais são as condições sociais de possibilidade de apropriação dos diferentes "produtos esportivos" assim produzidos, prática do golfe ou do esqui, leitura de jornais esportivos, reportagem televisionada da copa do mundo de futebol? Dito de outra maneira, como se produz a demanda dos "produtos esportivos", como as pessoas passam a ter o "gosto" pelo esporte e justamente por um esporte mais que outro, enquanto prática ou enquanto espetáculo? Mais precisamente, segundo que princípios os agentes escolhem entre as diferentes práticas ou consumos esportivos que lhes são oferecidos como possibilidade em um dado momento? (BOURDIEU, 1983, p. 136).

    A resposta esboçada por Bourdieu produz novas indagações. O autor se manifesta da seguinte forma:

Acho que deveríamos nos perguntar primeiro sobre as condições históricas e sociais deste fenômeno social que aceitamos muito facilmente como algo óbvio, o "esporte moderno". Isto é sobre as condições sociais que tornaram possível a constituição do sistema de instituições e de agentes direta ou indiretamente ligados à existência de práticas e de consumos esportivos, desde os agrupamentos "esportivos", públicos ou privados, que têm como função assegurar a representação e a defesa dos interesses dos praticantes de um esporte determinado e, ao mesmo tempo, elaborar e aplicar as normas que regem estas práticas, até os produtores e vendedores de bens (equipamentos, instrumentos, vestimentas especiais, etc.) e de serviços necessários à prática do esporte (professores, instrutores, treinadores, médicos especialistas, jornalistas esportivos, etc.) e produtores e vendedores de espetáculos esportivos e de bens associados (malhas, fotos dos campeões ou loterias esportivas, por exemplo). Como foi se constituindo, progressivamente, este corpo de especialistas que vivem diretamente ou indiretamente do esporte (corpo do qual fazem parte os sociólogos e historiadores do esporte - o que sem dúvida não facilita a colocação do problema)? E mais precisamente, quando foi que este sistema de agentes e de instituições começou a funcionar como um campo de concorrência onde se defrontam agentes com interesses específicos, ligados as posições que ocupam? (BOURDIEU, 1983, p. 136-137).

    A sugestão de Bourdieu, contida nessa passagem, permite argumentar e, ao mesmo tempo, responder a questão colocada de início: efetivamente existe um campo esportivo, ou seja, existe um sistema, de instituições e agentes vinculados ao esporte, que funciona como um campo. Os ditames teóricos do autor, considerando a efetiva existência do campo esportivo, proporcionam possibilidades distintas para a compreensão do mesmo ou, ainda, de um campo determinado. Uma dessas possibilidades está articulada com a autonomia que o campo apresenta. Assim,

não se pode compreender diretamente os fenômenos esportivos num dado momento, num dado ambiente social, colocando-os em relação direta com as condições econômicas e sociais das sociedades correspondentes: a história do esporte é uma história relativamente autônoma que, mesmo estando articulada com os grandes acontecimentos da história econômica e política, tem seu próprio tempo, suas próprias leis de evolução, suas próprias crises, em suma, sua cronologia específica. (BOURDIEU, 1983, p. 137)

    Nessa ótica, uma história torna-se uma história particular com uma periodização própria e uma realidade específica irredutível a qualquer outra realidade, ainda que, por vezes, articuladas a uma série de acontecimentos idênticos. Essa particularidade coloca a existência de um momento2 em que uma dada modalidade torna-se um esporte.

    Esse aporte é nodal para a construção de um conceito relevante utilizado por Bourdieu: o conceito de esporte moderno. Para o autor, a constituição de um campo de concorrência no interior do qual o esporte se apresentou como uma prática específica, irredutível a atividades rituais ou divertimentos festivos processados na forma de jogos, determina a existência do esporte moderno.

    Enquanto um campo de práticas específicas, o campo esportivo passou a ser dotado de lutas e regras próprias e do investimento de competências específicas. Essa leitura permite supor a existência de uma espécie de fronteira móvel em cada história que compõe o campo3.

    Tal especificidade, pensando numa história social do esporte, permite interrogar a constituição de um espaço de jogo, dotado de lógica própria, com práticas sociais particulares e definidas em uma história própria. A compreensão de uma história específica somente pode ocorrer no curso da mesma.

    De uma forma geral, esportes mais antigos apresentam maiores sinais de desenvolvimento. Bourdieu sugere que os esportes surgidos mais tardiamente passaram por uma história diferente, abalizada justamente nos esportes mais desenvolvidos.

    Apesar de histórias diferentes, torna-se vidente a existência de um "momento" consensual do surgimento das ditas modalidades mais antigas, ou seja, das modalidades que assumiram inicialmente um sentido moderno. Para Bourdieu (1983, p. 139),

Parece indiscutível que a passagem do jogo ao esporte propriamente dito tenha se realizado nas grandes escolas reservadas às "elites" da sociedade burguesa, nas public schools inglesas, onde os filhos das famílias da aristocracia ou da grande burguesia retomaram alguns jogos populares, isto é, vulgares, impondo-lhes uma mudança de significado e de função [...] Para caracterizar os princípios desta transformação, pode-se dizer que os exercícios corporais da "elite" foram separados das ocasiões sociais ordinárias às quais os jogos populares permaneciam associados (festas agrárias, por exemplo) e desprovidos das funções sociais (e, a fortiori, religiosas) ainda ligadas a vários jogos tradicionais (como os jogos rituais praticados em muitas sociedades pré-capitalistas em certas passagens do ano agrícola). A escola, lugar da skhole, do lazer, é o lugar onde as práticas dotadas de funções sociais e integradas no calendário coletivo, são convertidas em exercícios corporais, atividades que constituem fins em si mesmas, espécie de arte pela arte corporal, submetidas à regras específicas, cada vez mais irredutíveis a qualquer necessidade funcional, e inseridas num calendário específico.

    Essa passagem, ainda que de forma sumária, apresenta importantes indicativos para a compreensão do sentido moderno assumido pelos jogos ancestrais. É verdade que, para clarificar vários pontos relacionados por Bourdieu, torna-se imprescindível outras leituras4. Outras leituras, como a de Weber, pai da modernidade e de onde Bourdieu bebe abundantemente, são indispensáveis. A passagem que segue ilustra a forma weberiana de racionalidade antevista por Bourdieu (1983, p. 140) nos esportes:

A autonomização do campo das práticas esportivas também se acompanha de um processo de racionalização destinado, segundo os termos de Weber, a assegurar a previsibilidade e a calculabilidade para além das diferenças e particularismos: a constituição de um corpo de regulamentos específicos e de um corpo de dirigentes especializados (governing bodies) recrutados, pelo menos em sua origem, entre os old boys da public schools, caminham par a par. A necessidade da aplicação universal de regras fixas se impõem desde o momento em que as "trocas" esportivas se estabelecem entre as diferentes instituições escolares, e depois entre regiões, etc. A autonomia relativa do campo das práticas esportivas se afirma mais claramente quando se reconhece aos grupos esportivos as faculdades de auto-administração e regulamentação, fundadas numa tradição histórica ou garantidas pelo Estado: estes organismos são investidos de direito de fixar as normas de participação nas provas por eles organizadas, de exercer, sob o controle dos tribunais, um poder disciplinar (exclusões, sanções, etc.), destinado a impor o respeito às regras específicas por eles editadas; além disso, podem conceder títulos específicos, como títulos esportivos ou, como na Inglaterra, os títulos de treinadores.

    A institucionalização, mencionada nessa passagem, foi acompanhada de uma filosofia política do esporte. Essa filosofia, arquitetada no interior da aristocracia, determinou, entre outras coisas, a teoria do amadorismo.

    O esporte, com o espírito amador, tornou-se um instrumento vital para as elites. Por um lado, suas características possibilitavam a formação das virtudes necessárias aos futuros líderes e, por outro, os limites impostos pelas regras, tomado na forma do jogo limpo (fair play), privilegiava a disposição cavalheiresca (refutação à busca da vitória a qualquer custo).

    Essa ética aristocrática, construída no permeio da aristocracia e mantida em seu interior, teve seu esplendor em 1896, com a realização da primeira Olimpíada dos tempos modernos. Bourdieu lembra que o primeiro Comitê Olímpico era composto basicamente por duques, condes e lordes, todos de nobreza antiga; situações idênticas eram correntes nas organizações internacionais e nacionais que regiam o esporte. Essa situação, adaptada as exigências da época, tiveram sua representação na figura do barão Pierre de Coubertin. Um aristocrata convicto, que projetou na realização dos Jogos Olímpicos os pressupostos essenciais da moral burguesa da iniciativa privada.

    Destarte, professa Bourdieu, o esporte se configurou como um novo tipo de aprendizagem que colocou, no interior da classe em que se difundiu, a urgência de uma instituição escolar inteiramente nova. Na verdade, transcendendo em muito o esporte, o que se colocava em jogo era uma definição de educação burguesa. Essa definição explicitava-se por uma oposição a definição pequeno-burguesa e professoral. Dito de outra maneira, a educação pretendida buscava a liderança e a iniciativa (privada) em detrimento da erudição. Com efeito,

a definição moderna do esporte, freqüentemente associada ao nome de Coubertin, é parte integrante de uma 'idéia moral', isto é, de uma ethos das frações dominantes da classe dominante realizado através das grandes instituições de ensino privado, destinados prioritariamente aos filhos dos dirigentes da indústria privada, como a École des Roches, concretização paradigmática deste ideal" (BOURDIEU, 1983, p. 141).

    Enquanto campo (das práticas esportivas), o espaço passou abarcar as lutas provenientes da disputa do monopólio de imposição da definição e da função legítima da atividade esportiva: amadorismo x profissionalismo, esportes distintivos x esportes populares, etc.

    Destarte, a prática de esportes, principalmente para os adolescentes das classes populares e médias, possibilita, dentro da lógica do campo, o surgimento de uma demanda futura, ou seja, produz futuros consumidores de espetáculos esportivos. Para Bourdieu (1983, p. 144),

[...] o esporte que nasceu dos jogos realmente populares, isto é, produzidos pelo povo, retorna ao povo, como folk music, sob a forma de espetáculos produzidos para o povo. O esporte espetáculo apareceria mais claramente como uma mercadoria de massa e a organização de espetáculos esportivos como um ramo entre outros do show business, se o valor coletivamente reconhecido à prática de esportes (principalmente depois que as competições esportivas se tornaram uma das medidas da força relativa das nações, ou seja, uma disputa política) não contribuísse para mascarar o divórcio entre a prática e o consumo e, ao mesmo tempo, as funções do simples consumo passivo.

    Ou seja, os espetáculos esportivos, antes restritos a praticantes e aos espectadores presenciais, alcançaram as massas quando esses eventos, através da mass media, foram conformados como um produto midiático, Esse cenário presente representa a passagem de um esporte praticado em círculos sociais restritos, otimizado pela máxima do amadorismo, para um esporte espetacularizado, com produção profissional e destinado ao consumo de massa.


Considerações finais

    A longa trajetória existente desde a invenção do esporte nas escolas de "elite" inglesas até as organizações esportivas de massa, sugere Bourdieu, é acompanhada de modificações da função atribuída a prática e de transformações que sejam adequadas às exigências e expectativas dos consumidores dos espetáculos esportivos.

    A leitura de cenários tão díspares, como o da invenção e o das organizações esportivas de massa, exige reinterpretação de significados. Um exemplo profícuo é a ascensão social proporcionada pelo esporte. O esporte, inicialmente tido como condição de pertencimento de classe, no cenário presente é metamorfoseado, transformando-se numa possibilidade de ascensão através do profissionalismo.

    Na perspectiva do estilo de vida e, por que não dizer, do habitus, cabe discutir as variações dos significados e das funções sociais que classes diferentes dão ao esporte. Práticas diferentes, em cada classe, possuem variações da percepção e da apreciação dos lucros (imediatos e futuros) proporcionados. Essas variações devem-se não apenas às variações dos fatores que tornam possível ou impossível assumir seus custos econômicos e culturais.

    Cria-se, nessa ótica, um conjunto de propriedades dos esportes populares ou, dito de outra forma, um conjunto de valores que não são adequados as práticas distintivas: "exaltação da competição e das virtudes exigidas, força, resistência, disposição à violência, espírito de 'sacrifício', de docialidade e de submissão, antítese perfeita da 'distância em relação ao papel' que os papéis burgueses implicam, etc." (BOURDIEU, 1983, p. 150).

    Denota-se que a busca por atividades distintivas e a relação com o próprio corpo, enquanto dimensões privilegiadas do habitus, são fatores determinantes para a distinção de diferentes esportes. Mesmo no interior de uma mesma classe, caracterizada por todo um universo de estilos de vida, frações podem ser demarcadas com os mesmos indicadores.

    Com esse raciocínio, a lógica proporcionada pelo tipo de relação com o corpo que a prática favorece ou exige permite pensar a História do Esporte numa perspectiva moderna. Esse é o caminho demarcado por Bourdieu em seus escritos. Trata-se de um caminho metodológico profícuo, apesar de exigir cuidados, principalmente por se tratar de um modelo sociológico de análise.


Notas

  1. A terminologia capital específico, utilizada por BOURDIEU, expressa a idéia de que um capital determinado é o fundamento de dominação ou autoridade específica de um campo e que, o mesmo, tem valimento em um determinado campo, ou seja, dentro dos limites internos desse campo. A sua conversão para um capital de outra espécie é feita sobre certas condições.

  2. O entendimento de momento, conferido no texto, mais se aproxima de um conjunto de fatos ocorridos em um tempo restrito do que o estabelecimento de uma data precisa. Assim, um esporte surge, não com a fundação de uma federação internacional para reger a modalidade, mas, e isso sim, com a efetivação de um conjunto de fatos que tornam sua prática irredutível a atividades anteriores.

  3. A terminologia fronteira, mesmo não sendo utilizada por BOURDIEU, é adequada para clarificar o entendimento pretendido. Para BOURDIEU, a desconsideração da ruptura "leva ao questionamento de todos os estudos que, por um anacronismo essencial, aproximam os jogos das sociedades pré-capitalistas, européias ou não, tratado erroneamente como práticas pré-esportivas, aos esportes propriamente ditos cuja aparição é contemporânea à constituição de um campo de produção de 'produtos esportivos'. Esta comparação só tem fundamento quando, indo exatamente na direção inversa da busca das 'origens', tem como objetivo, como em Norbert Elias, apreender a especificidade da prática propriamente esportiva ou, mais precisamente, de determinar como alguns exercícios físicos pré-existentes passaram a receber um significado e uma função radicalmente novos - tão radicalmente novos como os casos de simples invenções, como o vôlei ou o basquete - tornando-se esportes definidos em seus objetos de disputas, suas regras do jogo e, ao mesmo tempo, na qualidade social dos participantes, praticantes ou espectadores, pela lógica específica do 'campo esportivo'". Ibid., p. 138.

  4. Uma dessas leituras é um escrito do historiador inglês E. P. Thompson sobre o tempo. Outros autores como Eric HOBSBAWM - especialmente em A era dos impérios - e Thorstein VEBLEN - em A Teoria da classe ociosa - permitem um melhor entendimento do conjunto de fatos e características que determinaram o surgimento dos esportes modernos. THOMPSON, E. P. O Tempo, a Disciplina do Trabalho e o Capitalismo Industrial. In: DA SILVA, Tomaz Tadeu (org.) Trabalho, Educação e Prática Social: por uma teoria da formação humana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. p. 44-93. HOBSBAWN, Eric J. A Era dos Impérios: 1875-1914. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. VEBLEN, Thorstein. A teoria da classe ociosa: um estudo econômico das instituições. São Paulo: Pioneira, 1965.


Referências

  • BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.

  • __________. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.

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revista digital · Año 11 · N° 97 | Buenos Aires, Junio 2006  
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