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Género e desporto: a construção de
feminilidades e masculinidades

   
Universidade do Porto
Faculdade de Desporto
(Portugal)
 
 
Paula Silva
Paula Botelho Gomes
Paula Queirós

psilva@fcdef.up.pt
 

 

 

 

 
Resumo
    O género deve ser perspectivado como uma construção histórica das relações de poder entre homens e mulheres, e deve contemplar definições plurais de masculinidade e feminilidade (Connell, 1990). O desporto é um mundo onde o conhecimento, alicerçado em relações de poder, não é neutro, em que a quase totalidade desse mesmo conhecimento é construída, validada e representada por homens (Scraton, 1997). Esta hegemonia masculina não deve ser considerada como algo estático, mas como um processo que, embora frequentemente contestado, desenvolve formas adaptativas e reconstrutivas. A própria noção de hegemonia masculina sofre de uma dominância quando se expressa por uma heterossexualidade e por um poderio físico, revelado por um modelo de corpo.
    Para além do considerado, parece evidente a presença de uma cultura homofóbica também no domínio das práticas desportivas. Alguns estudos (Young, 1997; Scraton et al. 1999) salientam a complexa relação entre o praticar um desporto tradicionalmente masculino e as construções de feminilidade e sexualidade. O clima homofóbico do desporto pressiona as mulheres atletas a apresentar uma imagem feminina heterossexual (Cox e Thompson, 2000), como também parece exercer uma necessidade de rapazes e homens reforçarem a imagem da sua masculinidade, quando os gestos e expressões corporais do desporto praticado não a ratificam (Williamsom, 1996).
    Será em torno destas questões que se situará a nossa reflexão, realçando-se os estudos de género no âmbito do desporto.
    Unitermos: Género. Desporto. Masculinidade e feminilidade.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 96 - Mayo de 2006

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    Quando falamos de género, comummente referimo-nos às diferenças culturais entre mulheres e homens assentes numa base biológica de feminino e masculino, substanciado nos conceitos de dicotomia e diferença. Ou seja, ao falar de género o senso comum centra o seu pensamento nas diferenças entre mulheres e homens em que crenças familiares, sociais e culturais acerca das diferenças de sexos direccionam o foco para o que caracteriza e justifica a diferença, desprezando ou secundarizando o entendimento das relações sociais de género.

    O género deve ser perspectivado como uma construção histórica das relações de poder entre homens e mulheres, e deve contemplar definições plurais de masculinidade e feminilidade (Connell, 1990). Assim, o conceito de género varia ao longo do tempo e de cultura para cultura. Acima de tudo, género refere-se às relações sociais nas quais indivíduos e grupos actuam (Connell, 2002).

    A distinção e a interacção entre sexo e género ou entre biologia e cultura não são claras. Na verdade não podemos definir com precisão onde acaba o domínio da biologia e começa o da cultura, além de que parece evidente que o significado de uma diferença sexual biológica também pode variar consoante a cultura (Fasting, 1992). Se, por um lado, a biologia por si só não providencia claras justificações de uma dicotómica visão de sexo, por outro, a sua interacção com a cultura parece ser constante, complexa e frequentemente não reconhecida.

    No mundo hodierno, o género constitui-se como uma relação social mas também como uma relação de dominação. Tanto para mulheres como para homens o entendimento de conceitos como anatomia, biologia, corporalidade, sexualidade e reprodução estão parcialmente impressos pelas já existentes relações de género, bem como as reflectem e as justificam (ou mesmo as desafiam). Por sua vez, a existência das relações de género ajuda-nos a ordenar e compreender os factos da existência humana. Simplificando, o género pode tornar-se uma metáfora para a biologia tal como a biologia pode tornar-se uma metáfora para o género. No sentido de compreender o género como uma relação social, Flax (1990) aconselha as teóricas feministas a continuarem o processo de desconstrução dos significados associados a biologia/sexo/género/natureza, processo que está longe de estar completo e que não é uma tarefa nada fácil. Para que as relações de género sejam úteis como categoria de análise social temos que ser social e pessoalmente tão críticos/as quanto possível, tanto acerca dos significados que usualmente atribuímos a essas relações, como aos modos como pensamos acerca delas. De outra forma corremos o risco de replicar as mesmas relações sociais que estamos a tentar compreender.

     Na sociedade do futuro Vale de Almeida (2004) perspectiva que uma parte do debate político irá centrar-se na definição das fronteiras entre o natural e o cultural, ou seja, na explicação do absurdo que é querer continuar a estabelecer essas fronteiras.

    Parece-nos imprescindível entender não só natureza e cultura como complementares mas fundamentalmente perspectivá-las num continuum, sem fronteiras, limites definidos, sem certezas da implicação da natureza 'aqui' e da cultura 'ali'. Deste entendimento emergirá uma visão fluída e situacional do género e das relações de género.

    Quando associamos conceitos como género e desporto, um denominador comum emerge - o corpo. O desporto desenvolve-se no e pelo corpo, e o género é corpóreo.

    O corpo não é simplesmente a medida ou a manifestação de um ser sexuado, ele molda a identidade de género e é moldado pelas noções dominantes de feminilidade e de masculinidade. Parece existir um enredo de considerações de ordem natural e cultural à volta da questão da genderização do corpo (Kirk, 1993).

    Os corpos masculinos e femininos são genderizados pela masculinidade e feminilidade e são-no também no desporto (Hargreaves, 1994; Messner e Sabo, 1990). A globalização da cultura e uma crescente consciencialização acerca da importância do corpo impulsionaram as actividades físicas e desportivas para uma das mais importantes áreas sociais e culturais dos nossos dias.

    A prática desportiva centraliza-se na sua relação com o corpo. O corpo movimenta-se, actua, reage, modifica-se, molda-se, transgride, expressa, recupera, transfigura-se de modo a responder às solicitações que aquela prática desportiva exige. Pode fazê-lo com maior ou menor prazer, com mais ou menos esforço e visando objectivos diferentes. É um corpo de múltiplas configurações, de idades variadas, que expressa etnias, de diferentes raças, que sofre ou beneficia dos tratos que lhe são dados, portador ou não de deficiência, e é um corpo sexuado. É uma multiplicidade de corpos, o corpo que pratica desporto.

    O desporto é uma área onde o corpo é dominante mas largamente ignorado como ente social. Cada vez temos mais informação relacionada com as funções e movimentos do corpo mas tampouco relacionada com as suas experiências e significados sociais (Fasting et al., s/d).

    O corpo no e do desporto deve ser visto em si mesmo e nos modos como é incorporado na construção do género. As desigualdades e injustiças entre mulheres e homens que o desporto demonstra, estão também presentes, com maior ou menor extensão, na sociedade em geral. O desporto não existe fora da sociedade mas, pelo contrário, contribui activamente para a construção do género noutras esferas da vida da pessoa (Kirk, 2003).

    E no desporto, como em outras dimensões culturais, o masculino e o feminino assumem valores distintos. A predominância do masculino no mundo do desporto tem raízes históricas, culturais e políticas. No desporto o conhecimento alicerçado em relações de poder não é neutro, a quase totalidade desse conhecimento é construído, validado e representado por homens (Scraton, 1997) e, embora cada vez mais homens e mulheres tenham a oportunidade de participar nas mais diversificadas actividades desportivas, muitas destas ainda continuam a padecer de um vínculo social e cultural ao género.

    O corpo como sujeito subentende toda a actividade física incluindo o desporto, e este representa o protótipo do corpo-sujeito. O desporto é, então, o modelo ideal do corpo-sujeito. A cultura patriarcal, por sua vez, definiu mulher como o outro, o objecto, mais especificamente o corpo-objecto. Daqui deriva que quando associamos mulheres e desporto a cultura, e considerando que esta, a cultura, define desporto como corpo-sujeito e mulher como corpo-objecto, deparamo-nos com uma incompatibilidade (Hall, 1990). O que aqui parece manifesto é que as mulheres sempre foram excluídas dos símbolos, práticas e instituições do desporto, ou, quando aí participavam, o que faziam não era considerado como verdadeiro desporto, ou em alguns casos elas não eram vistas como verdadeiras mulheres, ou seja, elas teriam que provar sempre a sua heterossexualidade (Lenskyj, 1986). "Mostrar ou exercer a sua força, entregar-se a um combate, dar ou levar golpes e assumir riscos corporais são atributos que as mulheres parecem não poder fazer seus e que, portanto, pertenceriam, em exclusivo, à masculinidade" (Louveau, 2000).

     É hoje reconhecido um percurso histórico do desporto e da Educação Física, orientado por valores e práticas competitivas hegemónicas masculinas (Hargreaves, 1986; Kirk, 1993), que contribui para uma reprodução social das diferenças de género (Griffin, 1989; Talbot, 2001). Esta cultura da masculinidade no desporto e na Educação Física teve impactos negativos na participação das raparigas nas actividades desportivas (Vertinsky, 1992).

    O desporto rege-se por uma particular forma de dominação masculina, e quando uma prática desportiva e quem a pratica não se encaixa nesta esfera de masculinidade hegemónica então é situada no/a 'outro'. Esta categoria de 'outro' é plural, onde cabem homens e mulheres desportistas. As fronteiras culturais e sociais nunca deixam de existir e, também no desporto, elas estão constantemente a ser reconstruídas num qualquer lugar. Aquele/a que transgride os limites torna-se parte integrante de um processo de transformação social que delimita um novo "eu" mas, também, um novo "outro". A vigilância destas fronteiras é uma das principais características das sociedades actuais, que, embora permitam a mobilidade dos seus limites, as reconfiguram ou as reconstroem de modo a fazerem prevalecer a construção do "outro" (Louro, 2001).

    As mulheres que praticam desporto parecem incorrer em múltiplos riscos. Não falamos de riscos enquanto danos biológicos ou físicos no seu corpo decorrentes de uma prática desportiva mais ou menos intensa, mas referimo-nos a todo um conjunto de riscos subsequentes da observação dos seus corpos de atletas, pelo tipo de modelação que apresentam e que a prática desportiva desenvolve, e pelos movimentos que expressam. Um corpo feminino actuante, desportista, é, não um corpo libertado, mas um corpo aprisionado por uma cultura masculina hegemónica.

    Os riscos referidos advêm de variadas situações: se a mulher apresenta as formas dominantes de feminilidade, nem tão pouco se espera que pratique desporto, mas, se praticar, espera-se que o faça numa actividade desportiva tradicionalmente considerada como feminina. Neste cenário, enquanto a sua feminilidade permanece inquestionável, alguns homens, e mulheres também, olham para estas desportistas como praticantes inferiores. Por outro lado, se a mulher escolhe praticar um desporto visto como masculino, arrisca-se a que a sua feminilidade seja colocada em causa e a sua sexualidade questionada (Kirk, 2003), sendo frequentemente designada de lésbica (Bryson, 1990).

    A maioria dos estudos e análises do desporto parece ainda não se ter afastado da base patriarcal que sustentou o seu desenvolvimento. Nem tampouco podemos afirmar que se tenha desenvolvido uma visão reconstruída do desporto a partir de uma perspectiva feminista. Sem uma ruptura com os esquemas patriarcais que regem, ainda, a maioria dos estudos no desporto, as questões da mulher no desporto permanecem como experiências problemáticas pela 'natureza' inferior e desviante dos seus comportamentos e rendimentos, e os homens só cabem numa masculinidade hegemónica que glorifica a virilidade e certifica a dominância do masculino no desporto. Nas arenas do desporto, nos mais diversificados cenários, actuam, com excelência, uma feminilização acentuada e uma masculinização hegemónica. Mas as actuações dos corpos desportistas transgridem, não raras vezes, estas tácitas configurações de controlo - um controlo social exercido sobre a sexualidade dos homens e das mulheres que praticam desporto, e que ratificam o desporto como uma instituição de controlo social.

    Parece evidente que a nossa sociedade se rege por uma cultura homofóbica que se expressa em diversos domínios entre os quais o das práticas de actividades físicas e desportivas.

    Homofobia pode definir o medo ou o desprezo pelos homossexuais mas esta definição não capta o seu real significado nos nossos dias. Homofobia raramente assume o seu significado literal de verdadeira fobia ou medo do seu semelhante, como o termo grego 'homos' sugere. Esta palavra é comummente usada com um significado mais abrangente, referindo-se ao receio das próprias pessoas serem homossexuais e, principalmente, de que os/as outros/as pensem que elas o são. Ao falarmos de homofobia estamos implicitamente a falar de heterossexismo1 e de uma institucionalizada orientação sexual de cada pessoa. Numa sociedade heterossexista todas as pessoas são consideradas heterossexuais até prova em contrário. Tal como o sexismo e o racismo, o heterossexismo discrimina e ostraciza pessoas.

    Estudos que reflectem acerca da hegemonia masculina no desporto (Bryson, 1990, 1994; Messner, 1994; Whitson, 1994; Theberge, 1994) e acerca de uma cultura homofóbica no desporto (Griffin e Genasci, 1990; Griffin, 1992; Iannotta e Mary, 2002, Fasting et al, 2002) contribuíram para uma consciencialização de como a prática de uma modalidade desportiva pode adaptar-se ou desafiar a cultura dominante.

    A homofobia pode reforçar os estereótipos ligados ao género e influenciar a prática só no grupo de actividades desportivas consideradas 'apropriadas ao género' (Coakley, 1994), condicionando, deste modo, a participação de rapazes e de raparigas noutras actividades físicas e desportivas. Alguns estudos (Young, 1997; Scraton et al, 1999) salientam a complexa relação entre o praticar um desporto tradicionalmente masculino e as construções de feminilidade e de sexualidade. Tal é particularmente notório no contexto que Butler (1990) descreve como de 'matriz heterossexual', isto é, o modo como a heterossexualidade estrutura e codifica a vida do dia-a-dia. O clima homofóbico no desporto pressiona as mulheres atletas a apresentarem uma imagem feminina heterossexual que evite suspeitas e confrontações (Cox e Thompson, 2000), como também parece exercer uma vincada necessidade de rapazes e homens reforçarem a imagem da sua masculinidade quando os padrões de movimentos das actividades desportivas que praticam não lhe estão associados (Williamson, 1996).

    Pelo que temos vindo a expor, parece que o desporto, enquanto bem cultural, ainda não se pode considerar como um meio de libertação. Há ainda guetos e preconceitos a abater.


Nota

  1. Heterossexismo descreve uma atitude mental que primeiro categoriza para depois injustamente etiquetar como inferior todo um conjunto de pessoas que não correspondem à esperada heterossexualidade.


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revista digital · Año 11 · N° 96 | Buenos Aires, Mayo 2006  
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