Contextos pessoais e formação em Educação Física | |||
Departamento de Didáctica e Tecnologia Educativa Universidade de Aveiro, Aveiro |
Rui Neves rneves@dte.ua.pt (Portugal) |
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Comunicação apresentada nas IX Jornadas de Intercâmbio de Educación Física "O passado introduz uma faixa larga de prática autenticada no futuro" |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 95 - Abril de 2006 |
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Introdução
A formação de professores do 1º Ciclo do Ensino Básico (1º CEB) requer cada vez mais uma contextualização próxima da subjectividade pessoal de cada futuro professor, de forma a fazer emergir conhecimento estruturado e reflectido nas vivências e experiências pessoais e competências experimentadas e validadas. De uma forma clara, cada vez mais os professores ao falarem da escola e do seu trabalho referenciam factores de natureza pessoal e biográfica (Goodson, 1992). Cada um de nós faz melhor aquilo que gosta de fazer, mas essencialmente aquilo que sente que faz bem, com eficácia, com sucesso. As nossas aprendizagens têm um suporte naquilo que sabemos. Então porque não formamos a partir do já vivido, com base nas experiências pessoais significativas dos nossos alunos?
Neste contexto importa conhecer o percurso de vida dos alunos, as suas vivências, as suas experiências, mas acima de tudo colocá-los em reflexão sobre o que significaram para si. Assim, conhecer o que viveram os alunos, reflectir sobre a natureza dos percursos e experiências pessoais em EF e compreender o reflexo do vivido sobre as crenças e conhecimentos em construção dos futuros professores afigura-se-nos pertinente.
Cordoba (2002) referencia como parâmetros condicionantes das decisões curriculares em EF a experiência pessoal do docente enquanto aluno, a sua percepção do papel da EF na escola, o próprio contexto material da acção e a sua formação inicial e contínua. Esta perspectiva de salientar a importância das experiências pessoais de Actividades Físicas e Desportivas (AFD's) nas decisões pedagógicas do professor, permite mesmo a Cordoba (2002:4) afirmar que "a hora da EF confronta o professor com a sua história corporal, a relação com o seu próprio corpo e a sua afinidade para com a área". Daí o significado de uma reflexão contextualizada a práticas vividas e experimentadas. Allison et al (1994) num estudo biográfico sobre futuros professores de EF, a partir de relatos de dimensões críticas das suas vivências na escola primária identificou 6 características: sucesso, vergonha, lesões físicas, igualdade entre sexos, equipamento e acontecimentos especiais e o professor. Num estudo de natureza etnográfica Armour (1997) a partir das histórias de vida de 4 professores de EF constatou que o desenvolvimento de filosofias pessoais acerca da natureza dos objectivos da EF se estruturou articuladamente em quatro fases: influências familiares, percurso escolar, formação superior e o ensino. Interessa-nos aqui referenciar o papel da natureza e significado do percurso escolar, para este estudo. Isto porque a área de EF tem na sua essência a vivência pessoal sem intermediações e por outro lado no 1º CEB, tem tido uma abordagem marginal que leva os seus professores a perspectivá-la de forma diferente e condicionada pelas suas próprias histórias de vida, formação inicial e contínua, concepções e crenças sobre a área (Rocha, 1998)
Formação contextualizada e conhecimento profissionalA construção de conhecimento profissional dos professores é um processo múltiplo ao nível das influências estruturantes. Para Shulman (1987) a natureza multidimensional do conhecimento profissional dos professores, caracterizado a partir do conhecimento prático, desenvolve-se em sete dimensões: conhecimento do conteúdo, conhecimento do curriculum, conhecimento pedagógico geral, conhecimento pedagógico do conteúdo, conhecimento dos contextos, conhecimento do aprendente e suas características e conhecimento dos objectivos, fins e valores. Por outro lado a aprendizagem da profissão docente não principia com a frequência de um curso de formação de professores (Carreiro da Costa, 1996), já que entre outras dimensões o grau de familiarização com a escola, sua cultura e organização, levam à aprendizagem por observação (Lortie, 1975) que poderá ser um factor de filtragem a partir das suas crenças e conhecimentos, das perspectivas a veicular posteriormente durante a formação inicial. Não podemos deixar de salientar a forte influência das experiências biográficas sobre a orientação profissional dos futuros professores em geral (Lortie, 1975). Estamos perante o que alguns autores referenciam no âmbito da socialização profissional, como de socialização antecipatória (Carvalho, 1996)
Groves e Laws (2000) num estudo centrado sobre as experiências na infância em EF, junto de jovens entre 11 e 16 anos concluíram que o comportamento e crenças das crianças depende do seu envolvimento nas situações de aprendizagem e da forma como estas lhes são apresentadas. Referem mesmo que a experiência é interactiva e um produto de negociação, dependente daquilo que as crianças são capazes de identificar naquilo que lhe pedem para fazer.
É tendo em consideração estas referências da literatura, que o presente estudo exploratório adquire sentido, visando os seguintes objectivos:
Conhecer formas de reflexão contextualizada dos futuros professores do 1º CEB;
Caracterizar as relações estabelecidas pelos futuros professores, entre o conhecimento do conteúdo (programa de EF do 1º CEB) e o conhecimento do contexto (escola 1º CEB, recursos materiais) em contextos específicos.
Procedimentos metodológicosOs dados foram recolhidos junto de alunos da Licenciatura em Ensino Básico - 1º Ciclo da Universidade de Aveiro, durante o ano lectivo de 2002/2003 no âmbito da frequência da disciplina de Didáctica da Expressão e Educação Físico-Motora (DEEFM) da formação específica na área de EF do 2º ano. Utilizaram-se questionários individuais, resolução de fichas de trabalho e narrativas de práticas de EF.
Grupo de inquiridosO grupo de futuros professores do 1º CEB inquiridos no questionário inicial foi de 34 elementos, todos do sexo feminino e com a média de idades de 21.4 anos. Dos 34 futuros professores 22 (64.7%) referem possuir uma prática regular de AFD's no momento da resposta ao questionário. Ainda que com diferente regularidade ("treino ao fim de semana"; "duas vezes por semana" ; "todos os dias"; "semanal"; "3 vezes por semana"; "de vez em quando"; sempre que tenho tempo disponível"). Refira-se que três pensam iniciar uma actividade física em breve.
Quadro 1 - Vinculação actual a práticas de AFD's
A Ficha de trabalho Nº 3 da disciplina de DEEFM foi respondida por 42 futuros professores
Instrumentos de Recolha de DadosAo longo da nossa prática enquanto formadores, temos adoptado um conjunto de estratégias centradas na contextualização dos processos de formação. Importa assim referenciar as diversas formas de confronto dos futuros professores, reflectindo acerca da natureza dos seus percursos pessoais na área de EF e os desafios que se lhes colocam na sua própria formação específica. Apesar de o presente estudo utilizar unicamente dados da disciplina de DEEFM do 2º ano da licenciatura, no quadro 1 apresentam-se os diferentes instrumentos utilizados no âmbito das restantes disciplinas de formação específica da área de EF identificados pelas suas características, contexto disciplinar e ano de formação.
Quadro 2 - Dimensões de Contextualização da Formação em EF
O questionário inicial (Fevereiro, 2003) da disciplina de DEEFM foi respondido na primeira aula da disciplina. A principal questão colocada foi a seguinte:
"De uma forma pessoal, procura lembrar-te da tua escola do 1º CEB. Recorda o teu/tua professor(a). Recorda as tuas aulas. Recorda as tuas aulas de Educação Física. Agora, peço-te que descrevas com o maior pormenor possível o que foram para ti essas aulas de Educação Física." (questão 1 do questionário inicial)
A ficha de trabalho Nº 3 da disciplina de DEEFM (Março, 2003) foi respondida individualmente através de um texto escrito e colocava a questão seguinte:
"A partir das tuas recordações de infância, procura fazer um NVENTÁRIO DOS RECURSOS MATERIAIS (espaços, material portátil, transportável e fixo, suas características e quantidades, etc.) disponível na tua escola para a prática da EF.
Com base nesse inventário define um QUADRO DE POSSIBILIDADES DE ABORDAGEM DOS ACTUAIS BLOCOS PROGRAMÁTICOS, numa lógica de associação das necessidades de recursos materiais dos blocos e conteúdo do inventário" (questão 3 da Ficha de Trabalho Nº 3)
Tratamento de dadosA informação foi utilizada como suporte ilustrativo das diferentes dimensões do objecto do estudo, numa perspectiva marcadamente qualitativa através de análise interpretativa de conteúdo (Bardin, 1977). Foram estruturadas unidades de análise emergentes das respostas dos inquiridos.
Resultados - apresentação e discussãoFormação Contextualizada em EF
Os dados do questionário inicial apresentados no quadro 3, relativos à frequência da EF no 1º CEB, assumem uma certa diversidade. Saliente-se que apenas 10 dos inquiridos (30.3%) referem ter tido a área de EF na sua escola do 1º CEB. Estes dados confirmam outros indicadores acerca da frequência e regularidade do ensino da EF na escola do 1º CEB como os de Branco (1994) em que apenas 18% dos professores inquiridos dizem realizar, duas vezes por semana, aulas de EF. E mais recentemente os de Guimarães (2002) em que 66.8% dos professores dizem realizar uma aula de EF por semana, 19.7% duas aulas, 0.5% três aulas e 12.8% não responde. A questão da frequência do ensino da EF na escola do 1º CEB, deve cruzar-se quanto a nós com o reconhecimento da área e identificação de finalidades educativas pertinentes para a aprendizagem e desenvolvimento dos alunos. Como narra uma inquirida "a escola foi algumas vezes visitada por alguns colaboradores dos "Jogos Juvenis", que traziam com eles colchões, para a realização de cambalhotas e bolas para alguns exercícios de driblar, atirar e passar a bola, quer em grupo, quer individualmente. Estas visitas, julgo eu uma vez por ano, foram as únicas actividades físicas coordenadas, programadas, com vista a novas aprendizagens físico-motoras" (FT37).
Quadro 3 - Frequência das Aulas de EF
Durante a frequência da escola do 1º CEB as características das aulas de EF mais identificadas reflectem a natureza da participação dos alunos. Tal como noutros estudos, salientam-se as referências à forma como as actividades integrantes das aulas de EF são descritas.
Quadro 4 - Características das aulas de EF
A descrição narrativa das características das aulas de EF interliga uma forte participação baseada no prazer, no gosto e satisfação. Tal como noutros estudos (Neves, 2000), salientam-se as referências à forma como as actividades integrantes das aulas de EF são descritas - "a minha recordação é positiva"; "muita interacção"; "divertíamos imenso"; "dias divertidos"; "maior entusiasmo" - sendo marcantes as características das aulas como dimensões recordadas.
As descrições das práticas vividas da EF (quadro 5) centram-se muito na identificação das AFD's desenvolvidas - jogos tradicionais, estafetas, ginástica, jogos, futebol, etc. - o que permite muitas vezes inferir do seu impacto nas vivências pessoais, por não serem dissociáveis das qualificações e juízos de valor acerca da forma como foram sentidas.
Quadro 5 - Natureza das actividades em EF
Os títulos - o início da subjectividadeA própria forma como cada inquirido intitulou a sua reflexão contextualizada acerca da escola da sua infância (FT), traduziu a natureza desse retorno a um período da sua vida escolar com significado. Analisemos como alguns centravam-no na EF com "A Educação Física na minha infância" (FT1) ou "A minha escola do 1º CEB e a Educação Física" (FT13), "A Educação Física na minha escola primária: realidade e possibilidade" (FT2) ou ainda a ligação com a natureza dos blocos programáticos de EF "Os blocos da minha infância" (FT38). Com um ar nostálgico há quem refira "Um olhar sobre o passado" (FT11), "Uma viagem pela infância" (FT22). Uma visão mais fria intitulava "Inventário de recursos materiais" (FT18). Com uma carga mais pessoal e afectiva "A Educação Física na minha escola primária" (FT19), "A minha escola" (FT23, FT40) ou de forma mais clara e evocatória "Memórias da infância" (FT29). Como intitula uma futura professora "E se eu fosse dar aulas na escola em que estudei …" (FT24) traduz um assumir da postura prospectiva sobre a escola onde se foi criança e aluno, em que se colocam num futuro papel como "Se eu fosse professora na minha escola" (FT34). A partir de iguais solicitações, a subjectividade da reflexão começa logo no título que cada futuro professor assume. A diversidade e pluralidade dos títulos fazem emergir uma reflexão fortemente contextualizada, permitindo indiciar olhares e percepções de forte cunho pessoal.
Condições das práticas versus conhecimento do contextoNesta dimensão emerge uma clara consciência de que o contexto material do desenvolvimento da EF, não é uma mera questão física e estática. Pensar os recursos materiais para a área de EF não implica apenas identificar espaços e materiais, mas acima de tudo reflectir as decisões pedagógicas numa perspectiva ecológica. Os recursos materiais assumem-se como um dos factores condicionantes da acção do professor na área de EF. Nesta linha podemos referenciar respostas que referem "no que se refere a espaços, a escola possuía um espaço coberto e outro descampado. Ao nível de recursos materiais portáteis, transportáveis e fixos, estes não se observaram. Se queríamos jogar futebol, ao elástico e até mesmo ao berlinde tínhamos que ser nós a levar o material" (FT2) ou "talvez por ser uma aldeia do interior não possuía grandes infra-estruturas, nem tão pouco muitos instrumentos com que se pudesse praticar todo o tipo de actividades existentes no programa do 1º CEB" (FT7). Outros de sentido contrário referem que "ao nível dos recursos materiais esta dispunha de alguns a saber: um pequeno ginásio, um pouco mais pequeno que um campo de voleibol, bolas, arcos, cordas, 3 bancos suecos e 3 colchões. Possuía também dois campos, onde se podia jogar sobretudo futebol" (FT11) ou menos positivamente "uma escola que, na minha opinião tem razoáveis condições em termos de espaço para a prática da EF - uma sala polivalente, um campo de saibro, uma área de areia com baloiços, escorrega, cavalinhos" (FT12) ou mesmo quando se consegue relativizar a leitura das condições com as práticas decididas "na minha escola não existia um pavilhão, mas existia um átrio quase na sua totalidade fechado. Esse era talvez o melhor lugar da escola para a prática da EF. Para além deste recinto, existia também um campo de jogos com balizas e em terra batida. Nesse campo só se jogava no intervalo, pois a professora em tempo de aulas nunca nos levou a jogar" (FT39). A natureza destas análises permitiu, a partir da recordação, caracterizar com mais rigor cada realidade material de cada escola. E essa caracterização permitiu olhar o espaço vivido, o material experimentado já com alguma distância, que foi suficiente para emitir juízos de valor acerca da sua maior ou menor qualidade para o desenvolvimento da área de EF, como quando se refere que "quando passo hoje na rua da minha escola verifico que esta em relação ao passado (desde que eu lá andei a aprender) não mudou muito. É um facto eu nunca ter tido EF na escola, mas também é verdade, por aquilo que me lembro, que o material existente na escola era pouquíssimo ou raro; ao contrário dos espaços" (FT 41). Este conhecimento do contexto é salientado por uma futura professora quando diz "embora os recursos materiais existentes já fossem mais do que suficientes para a prática da EF, eram raras as vezes que eram aproveitados para esse fim" (FT29). É ainda de salientar o rigor e precisão com que algumas respostas caracterizam o contexto das condições materiais das escolas, como "o espaço exterior era um pátio com cerca de 16 m2, vedado com um muro de 3 metros de altura e tinha no seu interior 1 poço, 1 nespereira e erva muito densa" (FT23) ou na mesma linha "quanto ao espaço exterior, este era bastante amplo e dividido, imaginariamente em três partes: a mais pequena, era um espaço rectangular com relva e algumas árvores; o segundo com areia e ferros fixos: três em escada, duas barras paralelas e uma barra tipo "banco tipo"; o terceiro espaço, era um amplo espaço de terra batida com uma baliza" (FT24). Daqui emerge uma competência de análise sobre uma dimensão condicionante das decisões dos professores na abordagem desta área, as condições materiais das escolas do 1º CEB, caracterizadas pela diferença e diversidade.
Atitudes dos professoresApesar da distância temporal, a reflexão sobre as realidades vividas na escola do 1º CEB na área de EF, arrastam muitas crenças relativas às atitudes e práticas pedagógicas dos respectivos professores. Assim, a reflexão acerca das práticas não vividas de EF e das razões que o fundamentaram remetem algumas vezes para a identificação de atitudes por parte dos professores como "esta escassez de material limitava em grande parte as actividades que a professora poderia realizar com os alunos, no entanto esta também não demonstrava grande interesse na área de EF" (FT31) ou numa linha claramente mais crítica "quando frequentei esta escola, o meu professor não se mostrava muito disponível para ensinar ou cativar as crianças à prática da actividade física, porque na realidade, apesar do diminuto espaço disponível, a prática desta actividade podia ser possível" (FT33). As referências críticas podem assumir outro pendor quando se refere que "na minha óptica o procedimento das actividades práticas não era o mais conveniente, nem correcto, dado que a criança, ser que está em constante actividade, necessitava que a prática da EF fosse contínua e regular, e orientada pelo professor" (FT 27), ou "como tive sempre a mesma professora, não pude experimentar outras formas de ensino, logo, e durante os três anos nunca realizei nenhuma actividade física acompanhada pela mesma. O material existente na escola para tal fim, nessa altura, ou não existia, ou era praticamente inexistente, contudo esta desculpa não é razão para a professora nunca se ter preocupado com esta área de ensino" (FT 40). É possível identificar respostas que relacionam e comparam as atitudes dos seus professores com a formação na área de EF "uma vez que a minha escola era relativamente grande, eu penso que não se justifica o facto de eu e os outros colegas naquela altura não termos tido EF desde o primeiro ano. Claro que tudo dependia da disponibilidade dos professores para isso, assim torna-se compreensível se pensarmos que eles não tiveram a mesma formação que os professores de agora estão a ter, até aí tudo bem!" (FT41). Estes resultados coincidem com outros Neves (2001) em que se clarificava que o "conhecimento é indissociável das atitudes e crenças de quem assume as responsabilidades pedagógicas da construção ecológica do currículo no 1º CEB, articulando dimensões de interdependência entre o papel nuclear do Professor, a natureza do Curriculum e das características das Condições de ensino da EF."
Prospectivas de intervenção versus conhecimento do conteúdoCom base na relação estabelecida através do conhecimento e análise dos diferentes blocos programáticos da área de EF e a identificação dos recursos materiais das respectivas escolas, surge um contextualizado inventário de possibilidade de actividades pedagógicas na área de EF. Tratou-se de colocar cada futuro professor em situação de decisão, em função de dois tipos de conhecimento em interacção - o conhecimento do conteúdo e o conhecimento do contexto material - num exercício marcadamente pessoal e subjectivo.
De forma clara e específica identificamos abordagens reveladoras de um cruzamento entre o conhecimento dos contextos e do conteúdo específico da área de EF. Podemos referir "no que se refere ao bloco 2 - Deslocamentos e Equilíbrios poder-se-ia realizar exercícios como: saltar sobre obstáculos e para um plano superior (utilizando-se carteiras e cadeiras); transpor obstáculos sucessivos; realizar saltos de "coelho" no solo; subir e descer uma corda suspensa; saltar em comprimento e saltar em altura" (FT2). E por vezes mais especificamente ainda "depois utilizaria o campo - o espaço grande - para jogar, por exemplo o jogo do mata (Jogos) e saltar ao eixo (Ginástica)" (FT12) ou "no bloco Perícias e Manipulações as minhas crianças poderiam lançar uma bola à parede e depois apanhá-la com as duas mãos ou passar a bola ao companheiro com passe picado, a pingar ou de peito" (FT13) revelador de um conhecimento acerca dos diferentes tipos de passe do bloco. Nesta linha refira-se ainda "dentro deste bloco (Ginástica) poderiam ser realizadas as seguintes actividades: salto ao eixo por cima dos companheiros; combinação das diferentes posições de equilíbrio estático, com marcha lateral, para trás e para a frente e "meias-voltas"; saltar à corda, individualmente e em grupo e poderiam ainda ser exercitadas variadas posições de equilíbrio" (FT20). Desta forma os futuros professores analisam a natureza e as características dos blocos programáticos (DGEBS, 1990) não de forma abstracta, mas em função de uma realidade mais do que conhecida, vivida e sentida. Como se refere "este bloco [Ginástica] poderia ser executado na escola porque existia uma sala de ginástica com todo o material exigido para efectuar este bloco, como também, todas as condições de segurança" (FT 34), não sendo de desprezar aqui as referências às condições de segurança que normalmente a abordagem deste bloco coloca. Algumas reflexões revelam mais análise e diálogo entre conhecimento do contexto e conhecimento do conteúdo, quando referem que "o bloco de Deslocamentos e Equilíbrios e o bloco da Ginástica seriam mais difíceis de realizar por inteiro, visto que necessitam de materiais específicos: boque, plinto, espaldar … Mas mesmo sem muitos materiais, não são impossíveis de realizar" (FT18) ou "no bloco 1 Perícias e Manipulações, não poderia realizar as acções motoras básicas com aparelhos portáteis, na medida em que a escola não possuía a quantidade e diversidade de bolas e arcos necessários para a sua realização" e "o bloco dos Jogos, assim como o das Actividades Rítmicas e Expressivas, em que poderia realizar todas as actividades propostas, é um bloco que apresenta muitas possibilidades de jogos susceptíveis de serem realizados como a rabia, o jogo dos passes, a bola ao capitão, a bola ao poste, a bola no fundo, o jogo do mata, o jogo do bitoque e o futebol, em que apenas com uma bola se faz a diferença, pois é o único material necessário" (FT19). Devemos salientar nestes resultados a emergência de um conhecimento do conteúdo específico da EF para este nível de ensino, revelador de análise e estudo por parte dos futuros professores. Eles não só referenciam os diversos conteúdos da EF como parte integrante dos blocos programáticos, como os enquadram articuladamente com as características das condições materiais disponíveis no contexto escolar vivido. Não se trata de falar em Jogos, mas antes de ser capaz de especificar as características dos vários jogos susceptíveis de poderem ser desenvolvidos curricularmente naquela escola. Como é referido "neste bloco [Ginástica] seria impossível a realização dos exercícios que apelassem à utilização dos materiais referidos no bloco anterior, com o acréscimo do boque, do plinto e da corda. Apenas as actividades de equilíbrio, envolvendo somente o corpo e o uso de bolas ou arcos seriam passíveis de se realizar" (FT32) ao contrário do que a mesma inquirida salienta quando diz que "no âmbito dos jogos, quase todos seriam realizáveis, uma vez que, na sua maioria, requerem somente o movimento corporal e o uso de bolas. A excepção seriam aqueles que exigissem o uso de raquetes e de balizas" (idem).
Apesar do espectro de elevada valorização relativamente às possibilidades de realização de grande parte dos blocos programáticos, são identificadas impossibilidades como "os blocos de Patinagem e Natação em princípio muito dificilmente seriam realizados" (FT13) ou "dois dos blocos que à partida seriam quase impossíveis de realizar são o bloco da Patinagem e o bloco da Natação" (FT18).
Reflexividade crítica versus conhecimento dos objectivos, fins e valoresPor vezes a EF é demasiado assumida pela actividade, pela característica da actividade. Estes resultados fazem evidenciar também uma perspectiva de a equacionar no âmbito das suas próprias finalidades educativas e das próprias crenças de quem decide a sua construção curricular. Como é referido "Uma vez que a minha escola era relativamente grande, eu penso que não se justifica o facto de eu e os outros colegas naquela altura não termos tido EF desde o 1º ano. Claro que tudo dependia da disponibilidade dos professores para isso, assim, torna-se compreensível se pensarmos que eles não tiveram a mesma formação que os professores de agora estão a ter, até aí tudo bem!" (FT41, ou mesmo quando se reconhece a realidade, mas se perspectivam possibilidades de acção "esta escassez de material limitava em grande parte as actividades que a professora poderia realizar com os alunos, no entanto esta também não demonstrava grande interesse na área de EF" (FT31) e se emitem juízos de valor acerca da valorização da área de EF por parte do professor. Outras ainda dizem que "quando frequentei esta escola, o meu professor não se mostrava muito disponível para ensinar ou cativar as crianças à prática da actividade física, porque na realidade, apesar do diminuto espaço disponível, a prática desta actividade podia ser possível" (FT33), numa forma de identificar a reduzida valorização da área, apesar das possibilidades de realização.
Toda a acção pedagógica implica valores e objectivos, que a reflexividade crítica ajuda a situar num plano de pensar a abordagem curricular implicando as atitudes e os valores dos sujeitos da decisão curricular. Como é referido numa resposta "posso concluir que poderíamos ter feito a maior parte das actividades propostas pelo programa do ensino básico. Como não sei qual era o programa do ensino básico que vigorava na altura em que andei na escola primária não quero, nem posso julgar a actuação da minha professora. Como futura professora, espero poder realizar todas as actividades propostas actualmente no programa do ensino básico, para assim atingir os objectivos gerais da expressão e educação físico-motora" (FT22) ou "como se pode concluir não é preciso muitos materiais nem um "ginásio completo" para realizar com as crianças os blocos programáticos do 1º CEB, basta ter força de vontade e aplicarmo-nos ao máximo naquilo que estamos a fazer que tudo se consegue" (FT18). Algumas referências acerca das possibilidades de intervenção pedagógica na futura prática profissional esclarecem que "como futura professora do 1º CEB, penso que esta área é fundamental para melhorar o processo educativo" (FT29).
Considerações finaisPodemos salientar que as práticas de AFD's realizadas na infância são recordadas num contexto próprio da sua realização, não só em termos de recursos materiais, mas também das interacções suscitadas entre os participantes. Na sua generalidade emerge a ideia de que a reflexão centrada em realidades vividas - a realidade da escola do 1º CEB da infância - ajuda a contextualizar o conhecimento do conteúdo - programa de EF do 1º CEB, os blocos programáticos e seus conteúdos - ajudando a "reflexividade crítica" no perspectivar de possibilidades de intervenção pedagógica na área de EF. Como clarifica narrativamente uma futura professora "para além de me conduzir ao meu "baú de recordações", permitiu-me reflectir acerca da forma como no meu 1º ciclo a EF poderia ter sido trabalhada e agora, como irei eu trabalhar esta área no futuro" (FT20). Em simultâneo a interacção entre conhecimento do conteúdo e conhecimento do contexto, parece ser acentuada pela reflexão centrada no já vivido - as características, os problemas, os recursos, as atitudes, as percepções pessoais - o que na área de EF salienta o papel condicionador dos recursos materiais nas decisões do docente na construção do currículo nesta área. Finalmente as crenças acerca das possibilidades prospectivas de intervenção na área de EF no 1º CEB, parecem sofrer influência do melhor domínio do conhecimento do conteúdo, já que a segurança, o domínio das habilidades técnicas de ensino, o aperfeiçoamento das competências de intervenção também nesta área exigem um sólido conhecimento do conteúdo. Como referia uma futura professora "através da minha viagem pelas minhas memórias, consigo agora compreender que sem recursos materiais também se pode desenvolver a EF, desde que nós professores sejamos criativos e que tenhamos predisposição para tal". (FT21).
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digital · Año 11 · N° 95 | Buenos Aires, Abril 2006 |