As influências que reforçam o cultivo da discriminação nas aulas de educação física |
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Mestrando em Educação Física Universidade Estadual de Campinas Faculdade de Educação Física FEF-UNICAMP |
Fabricio Pomponet Monteiro phabricius@gmail.com (Brasil) |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 95 - Abril de 2006 |
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Introdução
O texto que aqui se inicia traz o relato de uma observação em campo realizada no mês de maio de 2003 em escola pública durante um período de aula vaga.
É chamado popularmente de aula vaga o decorrer de uma determinada aula do Ensino Fundamental Ciclo II ou do Ensino Médio à qual o professor não se faz presente e não há nenhum outro profissional para substituí-lo naquele momento.
Durante as aulas vagas nessa escola, quando não há professores eventuais (substitutos), geralmente são disponibilizados alguns jogos como damas, trilha, ludo e dominó para que os alunos brinquem dentro da sala de aula, ou é viabilizado que se dirijam à quadra para jogar bola, quando está disponível.
Pretendi, nessa observação, analisar várias questões que pudessem dar alguns indícios de como crianças de uma determinada escola percebem e praticam o esporte organizado por eles mesmos em momento de, poderíamos dizer, recreação ou atividade pedagogicamente não direcionada. Quais são as atividades mais praticadas e como são praticadas? Meninos e meninas brincam juntos? Todos podem utilizar a quadra? Em algum momento a quadra é dividida? Quais outros espaços são utilizados? Acontecem formas de exclusão ou discriminação? Como acontecem? E finalmente, como se dá a influência do esporte de alto rendimento ou espetáculo nas brincadeiras livres na escola?
Apresentação da observaçãoA observação foi realizada junto à 1ª Série C do Ensino Fundamental Ciclo II (comumente conhecida como 5ª C, mas adequando-me à legislação atual, eu a chamei 1ª C) da Escola Municipal de Ensino Fundamental Madre Maria Antonieta (conhecida como "o Madre Maria"), localizada no Bairro de São Miguel Paulista, Zona Leste, periferia da cidade de São Paulo.
Selecionei para a pesquisa uma aula vaga de aproximadamente 45 minutos de duração da 1ª C no dia 21 de maio de 2003, uma quarta-feira. Estavam presentes trinta e dois alunos, sendo dezoito meninas e quatorze meninos, de faixa etária média de dez a onze anos.
Durante alguns dias, eu observei várias turmas em aulas vagas na quadra, e identifiquei que a maioria das meninas geralmente jogava voleibol (ou vôlei) e a maioria dos meninos geralmente jogava futebol. Porém, utilizei para o presente trabalho somente a observação do dia 21 de maio da 1ª C. Nesse dia, fui até a 1ª C e os informei que aquela seria uma aula vaga, pois o professor daquele horário não estava presente, e que eles poderiam brincar na quadra, onde encontrariam uma bola de voleibol e uma bola de futebol. Providenciei com antecedência esses materiais para que não houvesse perda de informações a serem observadas enquanto eu buscasse as bolas, pois conforme verifiquei através das muitas observações anteriores, são esses os materiais que eles geralmente solicitam em situação como essa. Também orientei a se organizarem sozinhos para jogar, para que a minha presença ali como professor de Educação Física (embora não professor deles, apenas de outras turmas da escola, mas reconhecidamente por eles, professor de Educação Física) não modificasse o seu comportamento de partícipes das atividades e também não os fizesse aguardar sempre uma "ordem" minha para conduzir a situação.
Os nomes dos alunos da 1ª C foram preservados, e também não foram criados nomes fictícios, por opção. Estes são tratados aqui como meninos e meninas, ou alunos e alunas. Já a escola é chamada por um nome fictício, porém suas corretas localização e categorização (Escola Municipal de Ensino Fundamental) foram mantidas.
Houve pequenas correções ortográficas nas falas de alguns alunos para a transcrição, mas foram mantidas formas como fizeram suas colocações e como conversaram, citando literalmente gírias e frases populares entre eles.
A apresentação dos dados obtidos nessa observação tem influência nos modelos das obras de Daolio (1995) e Ramos de Oliveira (2002).
Caracterização do grupoEm relação à caracterização da comunidade ao redor da escola, ou mais especificamente dos alunos da escola, não foi possível encontrar informações muito precisas, mas pude utilizar um documento da própria escola que relata uma pesquisa realizada com os alunos por profissionais competentes no ano 2000. Essa pesquisa teve como objetivo exatamente tentar identificar algumas características da comunidade, ou da chamada clientela atendida pela escola.
Como resultado dessa pesquisa foi oficialmente apresentado somente um relatório final, sem muita precisão nas informações, o que na época, foi muito criticado pela direção da escola, mas que acabou não sendo refeito.
Conforme consta no documento, os alunos do Ensino Fundamental do curso regular (no qual estão incluídos os alunos e alunas da 1ª C) vêm de famílias de baixa renda, mas grande parte possui moradia, telefone e saneamento básico1. Os pais têm entre 25 e 50 anos e são naturais de diversos Estados brasileiros, como São Paulo (capital e interior), Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas, Ceará e Paraíba. As religiões predominantes são Católica (maior parte) e Evangélicas.
Ainda segundo o referido documento, os alunos não possuem muitas opções de lazer além de televisão, rádio, brincadeiras em casa e na rua com os amigos e atividades na igreja.
A observação na quadra
(ou o domínio dos meninos sobre a quadra da escola)Ao chegarmos à única quadra "do Me. Maria", alguns meninos pegaram a bola de futebol e algumas meninas pegaram a bola de voleibol. Eu me sentei próximo a eles para observar como seriam decididos alguns problemas primários, entre eles, principalmente a utilização ou divisão da quadra.
O que eu identifiquei logo foi uma praticamente total abstenção da grande maioria das meninas de participarem de qualquer negociação pelo seu direito de utilizar a quadra. Surgiam em meio aos gritos dos meninos eufóricos clamando por organização para o início do jogo de futebol, apenas algumas manifestações isoladas das meninas nesse sentido, e tão frágeis que mal se faziam ouvir pelos meninos à sua volta.
Vamos escolher os times!
No início, enquanto as meninas encontravam-se imóveis sobre a quadra, como se aguardassem a intervenção de alguém que pudesse exigir dos meninos que elas também ocupassem aquele espaço maior e privilegiado, alguns meninos até tentaram alertar os demais para o fato de que todos queriam jogar na quadra.
Mas e as meninas?
É melhor a gente jogar vôlei que dá pra todos! Futebol as meninas não gostam.
Algumas meninas tentaram exigir o direito que também era delas, mas de forma tão tímida que ninguém pôde ouvir, ou mesmo quando outras meninas ouviam, o que poderia desencadear o fortalecimento do movimento reivindicatório, acabavam na verdade o enfraquecendo.
Vamos jogar na quadra, que tem mais espaço...
Não! Lá os meninos estão usando.
Através da observação desses primeiros acontecimentos, foi possível perceber que as meninas (pelo menos algumas delas) também queriam utilizar a quadra. Mas por que permaneciam caladas, praticamente sem manifestar nenhuma forma de reivindicação ou negociação em busca de uma parte ou um período de tempo da quadra?
Parece-me que qualquer desejo de negociação esbarrava no paradigma do esporte-espetáculo ou de alto rendimento, que conforme Bracht (1997, p. 9-12), é o modelo esportivo que se subdivide de uma forma de atividade corporal de movimento com caráter competitivo surgida no âmbito da cultura européia (e que, com essa, expandiu-se para o resto do mundo), resultante de um processo de modificação, de "esportivização", de elementos da cultura corporal de movimento2 das classes populares inglesas (como os jogos com bola), e também da nobreza inglesa, com início em meados do século XVIII e intensificação no final do século XIX e início do XX, chamada esporte moderno.
Penso também que o desejo irrefletido dos meninos de iniciar imediatamente o seu jogo de futebol, influenciados por esse mesmo modelo, ajudou a minar qualquer possibilidade de insurreição das meninas em busca de seu direito à quadra, pois eles, em sua grande maioria, ignoraram a presença das meninas da sua própria turma. Estas, por sua vez, se conformaram com muita facilidade a utilizar o corredor de acesso ao estacionamento da escola para o seu jogo de voleibol.
E analisando esses primeiros fatos encontro diversas semelhanças com os descritos por Daolio (2003, p. 107) em situação semelhante, porém em aula de Educação Física para uma turma de 8ª Série3 que jogava voleibol em times formados por meninos e meninas, quando uma aluna, após não conseguir rebater uma bola, indagou "com um misto de desânimo e raiva: 'Por que eu sou uma anta?'" 4. E ainda, mostrando não se tratar de um acontecimento isolado, o autor identifica essa mesma reação em outras aulas de Educação Física, embora de forma implícita, pois as meninas percebem sua inferioridade motora em comparação aos meninos em praticamente todas as atividades realizadas.
Para o autor, as diferenças motoras entre meninos e meninas são, em grande parte, construídas culturalmente, portanto não são determinadas biologicamente, logo, não são naturais, e logo, não são irreversíveis. E, explicando como se constroem essas diferenças, descreve toda a expectativa de altivez e segurança depositada em um menino mesmo antes de nascer. Este ganha na porta do quarto da maternidade uma chuteirinha e uma camisa do time de futebol para o qual os pais torcem, pouco tempo depois ganha uma bola, depois começa a subir em árvores, e brincar de futebol, pipa, carrinho de rolimã, bicicleta, etc. Já as meninas, ao nascerem são cercadas de delicadeza e cuidados. Suas roupas são diferenciadas. Seus presentes, em vez de bola ou outros materiais esportivos, são bonecas e utensílios domésticos em miniatura. São estimuladas a agir com delicadeza, não se sujarem, não suarem. São também orientadas a ajudar suas mães para que aprendam os serviços domésticos, necessários no futuro (Daolio, 2003, p. 110-111).
Vemos que todas essas atividades estimulam, na média, os meninos a gostarem e praticarem esportes, o que lhes possibilita um desenvolvimento motor mais significativo do que as meninas.
Não me parece tão arriscado pensar que dois outros fatores possam ter grande influência nessa situação. O primeiro é a discriminação contra as meninas, que acabam sendo relegadas a uma posição secundária nas aulas de Educação Física mais tradicionais, por (às vezes) não possuírem o nível de habilidade necessário (trazido de casa e/ou das séries anteriores) para a realização das atividades propostas da forma como o são pelo professor, ou por não receberem oferta de atividades mais próximas de sua realidade e necessidades. Não há respeito pelas suas diferenças e seus interesses, não lhes são oferecidas as mesmas oportunidades.
Essa discriminação pode gerar um sentimento de superioridade entre os meninos, que não se preocupam com a participação das suas colegas, já que nas aulas de Educação Física isso não é valorizado, ou quando as turmas são divididas por sexo nem mesmo há a presença das meninas, e eles não precisam se atentar a isso, e também uma posição de conformidade entre as meninas, impedindo que elas consigam, ou mesmo sintam a necessidade de exigir o seu direito.
Para Daolio (2003, p. 112-113), parece haver em nossa sociedade um processo que transforma as meninas em "antas" e, por outro lado, os meninos em "trogloditas". Pois se uma menina assumir determinados comportamentos historicamente vistos como masculinos, como ser mais agressiva, ou praticar determinados esportes como o futebol, implica ir contra uma tradição, ser chamada de "machona" ou ser repreendida pelos pais. Assim como um menino com uma postura mais delicada, mais afetiva e mais contida, seria chamado de "bicha" ou "efeminado". Sobre comportamentos como esses, que contrariam as expectativas que se têm desses meninos e meninas, há o peso de uma sociedade que os marginaliza, o que leva as crianças, na maioria das vezes, a cumprirem esses ditames sociais e serem mais valorizados por isso. Mas o autor alerta que a cultura influencia no comportamento humano, porém são os próprios homens que a produzem e a transformam cotidianamente.
O segundo fator é a excessiva valorização do futebol no Brasil e o desconhecimento ou menosprezo das demais manifestações culturais esportivas, o que reforça a influência exercida pelo modelo esportivo de alto rendimento sobre as brincadeiras das crianças (principalmente meninos), impedindo que se flexibilizem as regras das modalidades esportivas para essas brincadeiras. É como se o professor de Educação Física se preocupasse muito mais com os interesses dos meninos do que das meninas, relegando ele próprio estas últimas à posição de "antas" (Daolio, 2003, p. 110) e ajudando a estender essa condição para fora das aulas de Educação Física e da escola, o que parece ainda mais grave.
E contribuindo para agravar mais a situação, muitos pais ainda preferem ter uma filha "anta" em vez de uma filha que jogue futebol ou suba em árvores, e muitos professores, inclusive de Educação Física, consideram natural as meninas serem "antas" (Daolio, 2003, p. 113).
Na quadra os meninos continuaram tentando se organizar para iniciar o jogo de futebol. As meninas foram se retirando aos poucos, dirigindo-se ao corredor ao lado. Seis delas ainda permaneceram nas arquibancadas, cinco conversando e assistindo ao jogo de futebol dos meninos e a outra envolvida em um jogo eletrônico portátil ("mini-game"). As outras onze alunas rapidamente se dividiram em dois times para jogar voleibol, e mesmo fora da quadra a flexibilização das regras por elas foi muito pequena, prevaleceu a influência do esporte de alto rendimento em seu jogo, em sua brincadeira. Elas optaram por tentar praticar a forma competitiva do voleibol, também influenciadas pelo modelo esportivo já mencionado.
Iniciou-se uma discussão entre os meninos para decidir quantos jogariam em cada time. Alguns defendiam que todos deveriam jogar, flexibilizando-se as regras e formando-se dois times com sete alunos cada, já outros lutavam pela máxima "esportivização" daquela brincadeira, preferindo seguir "ao pé da letra" as regras do futebol de salão (ou futsal) como esporte-espetáculo5. Alguns se dirigiam a mim para reclamar, outros tentavam impor a sua vontade através de gritos de ordem ou forçando o início do jogo da forma como estava.
Professor, só eles querem jogar, eles querem ser os bons... sete e sete de cada lado não faz mal...
São seis na linha e um no gol!
Assim tá certo!
Tá valendo! Tá valendo!
Podemos analisar agora a força do papel do professor de Educação Física na construção cultural do corpo dos alunos (Daolio, 2003, p. 116), pois em um bairro pobre como é o caso de São Miguel Paulista na cidade de São Paulo, poucas crianças conhecem o futebol de salão como esporte de alto rendimento. Sua influência pela mídia se dá mais significativamente através do mais popular futebol de campo, e isso é muito fácil de ser constatado quando observamos crianças jogando futebol na quadra em atividades livres, fora dos horários de aula. Com exceção dos números de jogadores nos times, muito pouco se utiliza do futebol de salão, mas o que se vêem com maior freqüência são os arremessos laterais executados com as mãos e os arremessos de meta em forma de "chutões" para frente, que não são permitidos nesta modalidade. Portanto, podemos perceber que é na aula de Educação Física que as crianças são realmente convencidas de que para jogar futsal, ou para jogar futebol na quadra, é necessário que cada time seja composto por invariavelmente cinco "jogadores".
Após o início do primeiro jogo de futebol com os quatorze meninos em quadra, dispostos em dois times compostos por sete alunos cada, alguns daqueles contrários à flexibilização das regras passaram a utilizar os mesmos recursos anteriores: reclamações e gritos de ordens em busca de concretizar as suas idéias.
Professor, escolha três pessoas pra escolherem os times. Olha quanta gente!
Pára! Pára! Muita gente! Muita gente!
Enfim, os "flexibilistas" não resistiram à pressão e os "esportivizistas" prevaleceram! Assim, alguns meninos foram "expulsos" da quadra para que fosse seguido o modelo esportivo do futebol de salão em número de jogadores.
Em seguida eles tiveram que estabelecer uma forma para saber quando aquele primeiro jogo terminaria para que os alunos que estavam aguardando (que eram "próximos") pudessem jogar. Foi então decidido (no grito) que cada jogo terminaria após um dos times marcar três gols na meta adversária, time este que, triunfante, teria o direito de permanecer jogando.
Acaba três!
Deu-se o final do jogo pelo placar de 3 x 0, saíram os componentes do time perdedor e entraram os alunos que aguardavam.
Quanto às meninas, após o seu jogo de voleibol, começou um jogo de queimada contando com quatro das seis que até então estavam sentadas nas arquibancadas da quadra. Permaneceram lá ainda duas alunas, uma delas assistindo aos meninos jogando futebol e a outra ainda jogando "mini-game" (como desde o início da aula6).
Alguns minutos depois, seis delas acabaram abandonando o jogo de queimada, e depois mais três. Dessas nove, três resolveram brincar de correr pelos arredores da quadra, e aquelas que ainda jogavam queimada voltaram a jogar voleibol. A aluna que jogava "mini-game" permaneceu lá até o final da aula.
Uma das meninas, em um momento que discutiam o que queriam jogar, manifestou sua vontade desde o início reprimida.
Quero jogar futebol!
... então eu a incentivei a reivindicar isso junto aos seus colegas, mas ela imediatamente recuou.
Mudei de idéia!
No final do quarto e último jogo de futebol dos meninos, já com o placar de 2 x 0, foi marcado por eles um pênalti. Desde o início do primeiro jogo, os próprios alunos se encarregaram da arbitragem, pois acostumados a jogar futebol na rua, ou mesmo na escola, sem a presença de um "árbitro", eles procuram marcar as faltas e decidir lances duvidosos por meio de rápidas votações (quantos gritam "pedindo a falta"), comum acordo entre a maioria do grupo, lances explícitos (que não dão margem para contestação), ou pelo grito decisório daquele que possui mais habilidade para o jogo ou do maior.
Para a cobrança da penalidade todos os meninos permaneceram próximos à bola e às traves do gol. Um deles se colocou praticamente encostado à trave direita e acabou interceptando a bola com um dos pés antes que esta chegasse à meta. Não foi possível identificar se o aluno que jogava como goleiro alcançaria, se a bola entraria no gol ou bateria na trave, ou mesmo se sairia. A cobrança foi simplesmente repetida sem muita discussão e então convertida em gol, levando o jogo ao placar de 2 x 1.
No lance seguinte foi marcado um novo pênalti, desta vez para o outro time, também convertido em tento e encerrando o jogo.
A caminho da sala de aula, a aluna que havia manifestado sua vontade de jogar futebol, voltou a me falar sobre ela.
As meninas não sabem jogar futebol... eu quero jogar futebol.
Estas últimas palavras dessa aluna ilustram ainda mais a quase total submissão das meninas em relação aos seus colegas, pois ela não jogou futebol principalmente devido à dominação masculina da quadra, e ainda atribuiu isso à suposta incapacidade ou falta de habilidade das meninas da turma para o jogo de futebol. Também verificamos a representação de uma das meninas em relação a suas colegas como sendo "antas" e os meninos não, pois elas não sabem (nenhuma delas) jogar futebol e os meninos (todos eles) sabem. De forma muito semelhante, Daolio (2003, p. 107) comparou a contundente reação de uma de suas alunas com a dúvida velada de todas as demais: "Por que nós meninas somos antas e os meninos não são?".
Porém, como também lembrou Daolio (2003, p. 108), "nem todas as meninas são inábeis e nem todos os meninos são hábeis. Existe uma enorme gradação entre o mais hábil e o menos hábil, tanto para as meninas quanto para os meninos. Além disso, essa gradação pode se modificar dependendo da atividade realizada".
Considerações finais
(ou o domínio do modelo esportivo de alto rendimento sobre todos eles)É necessário um estudo muito mais aprofundado para se identificar como e porque essas formas de dominações, tanto entre meninos e meninas quanto pelo modelo esportivo de alto rendimento, acontecem na escola ou na rua, enfim, nas brincadeiras das crianças, ou nas aulas de Educação Física como disciplina escolar.
Mas através dessa pequena observação, além de nosso conhecimento empírico sobre esse tipo de atividade, é possível verificar que geralmente os meninos utilizam a quadra para jogar futebol e as meninas utilizam qualquer outro espaço possível para brincar de qualquer outra coisa possível.
Fica claro que o esporte de alto rendimento, que representa hoje a tendência esportiva mais marcante, fornece ainda o modelo para o esporte escolar e para grande parte do esporte como atividade de lazer (Bracht, 1997, p. 12-13).
A influência da mídia exerce um papel decisivo nesse sentido, alterando a maneira como praticamos e percebemos o esporte, fragmentando e distorcendo o fenômeno esportivo, e até nos propondo um modelo específico de esporte, um modelo do que é esporte e do que é ser esportista (Betti, 1998), modelo esse que representa também a transformação do fenômeno esportivo em mercadoria veiculada pelos meios de comunicação de massa (Bracht, 1997, p. 13). Porém não pode ser justificativa essa influência para a falta de criticidade na atuação pedagógica dos professores de Educação Física, assim como de todos os outros professores da escola. Não me parece absurdo pensar que as crianças reproduziram naquela aula a forma como lhes foi transmitida em suas aulas de Educação Física.
Vimos que não coube à forma como foi praticado o esporte pelos alunos da 1ª C praticamente nenhuma manifestação de solidariedade, cooperação, ou respeito. Mas se viram manifestações de discriminação e descaso mais ou menos de um grupo em relação a outro, neste caso, dos meninos em relação às meninas. Será, então, que a forma do esporte de alto rendimento necessariamente leva à internalização destes valores, discriminação e descaso, e não de outros como solidariedade, cooperação, respeito ou justiça? Será que as aulas de Educação Física mais tradicionais realmente cultivam a discriminação de uns em relação a outros?
Eis, então, uma das questões mais importantes deste estudo: Se o esporte nas aulas de Educação Física mais tradicionais realmente leva os alunos a inculcarem valores como preconceito, discriminação e indiferença, pode ele ser utilizado de uma outra forma? Ou, em outras palavras, tal como se indagou Assis (2001, p. 9): "O esporte, forma cultural que ritualiza elementos fundamentais da sociedade capitalista, como a competição, a concorrência e o rendimento, pode participar de um projeto político-pedagógico emancipatório? Pode? Como Pode?"
Para Daolio (2003), é necessário propor atividades que propiciem as mesmas oportunidades a todos os alunos, meninas e meninos, respeitando suas diferenças e seus interesses (p. 110, 115, 116-117). Pois as aulas têm feito isso somente em relação aos meninos, relegando as meninas ao papel de "antas" (p. 110).
Penso que o professor de Educação Física deve encontrar formas de adaptar os esportes para que todos os alunos consigam participar das aulas de maneira descontraída, e sem se sentirem "antas", "burros", "baleias", "cavalos", ou quaisquer outros animais. Penso que ninguém deve sair da aula portando um suposto fracasso por ter tido um resultado numericamente negativo, e isso não significa responsabilizar os próprios alunos por esse sentimento, mas assumir como tarefa do professor a transformação dos resultados dos jogos, que na aula de Educação Física podem e devem ser diferentes de vitória, derrota ou empate.
Vejo também necessário que meninos e meninas brinquem juntos, para que um grupo possa se reconhecer como diferente, mas jamais se sinta inferior ou superior ao outro. Porém, alguns alunos têm um nível de desenvolvimento motor mais elevado do que outros, por sua idade muito diferente (o que ainda é bastante comum em escolas públicas) ou pelas diferentes oportunidades de brincadeiras e atividades físicas das quais dispõem, o que exigirá do professor um planejamento muito mais completo. Nesse sentido, compartilho da opinião de Daolio (2003, p. 116-117):
Aí está, em minha opinião, a difícil tarefa para os professores de educação física: respeitar as diferenças entre meninos e meninas e, ao mesmo tempo, propiciar a todos os alunos as mesmas oportunidades de prática e desenvolvimento de suas capacidades motoras. Pender para um extremo seria respeitar as diferenças entre os sexos, achando que elas são naturais e, portanto, não devem ser contrariadas. Estaria-se reforçando a falsa idéia de que os meninos são mais dotados e as meninas são "antas". Pender para outro extremo seria propiciar a todos as mesmas oportunidades em termos motores, querendo que os resultados de meninos e meninas sejam idênticos. Estaria-se impondo uma igualdade inexistente.
Entendo que se o esporte é remetido à educação da forma como o é, dado o fato de ser atualmente o conteúdo principal de uma das disciplinas do curso regular das escolas em geral, é necessário criar-se uma forma de jamais se propagarem através de sua prática pedagógica valores como discriminação e indiferença. E mais que isso, todo o sistema educacional deve ser pautado em uma perspectiva de educação crítica dos seres humanos, que lhes dê substância concreta em relação aos conflitos da sociedade, entendendo os educadores como indivíduos capazes de intervir significativamente nesta realidade através de uma teoria crítica da educação, formulada do ponto de vista dos interesses dos membros de classes sociais dominadas, evitando que a escola seja apropriada e articulada com os interesses dominantes (Saviani, 2000, p. 30-31).
Novamente a exemplo de Daolio (2003, p. 118)...
Vislumbro uma prática escolar de educação física que faça da diferença entre os alunos condição de sua igualdade, em vez de ser critério para justificar a subjugação de uns sobre outros. Desta forma, meninos e meninas poderão fazer aulas conjuntamente sem nenhum tipo de constrangimento, e a educação física não estará mais contribuindo para a criação de "antas"... nem de "trogloditas".
Notas
Em minha opinião, deveria haver também outras especificações e informações importantes nesse documento, como o que se considera baixa renda, o que corresponde a essa grande parte, e mais detalhes sobre as condições familiares e das moradias dessas crianças.
"Cultura corporal de movimento" é o termo adotado pelo Prof. Valter Bracht, após a publicação do livro Metodologia do Ensino de Educação Física (conhecido como Coletivo de Autores) em 1992, do qual ele participou como autor, para conceituar a Educação Física, termo esse que se diferencia de outros adotados por diversos outros autores, conforme nos apresenta Daolio (2002). Complementando, Bracht, no livro Educação Física & Ciência: cenas de um casamento (in)feliz (1999, p. 15-16) esclarece entender a Educação Física, fundamentalmente, como uma prática que tematiza com intenção pedagógica as manifestações da cultura corporal de movimento.
Atualmente 4ª Série do Ensino Fundamental Ciclo II.
Na seqüência (p. 107), o autor explica que em São Paulo o termo "anta" é utilizado freqüentemente referindo-se a pessoas lentas e descoordenadas sempre com objetivo pejorativo e preconceituoso.
"Esporte-espetáculo" ou "esporte de alto rendimento". Mas conforme Bracht (1997, p. 13), a primeira expressão complementa a segunda por abrigar a tendência mais marcante do esporte hoje, ou seja, a sua transformação em mercadoria veiculada pelos meios de comunicação de massa.
Refiro-me, ao classificar o período desta observação como aula, aos 45 minutos dessa chamada aula vaga.
Referências bibliográficas
ASSIS, Sávio. Reinventando o esporte: possibilidade da prática pedagógica. Campinas: Autores Associados, 1999.
BETTI, Mauro. A janela de vidro: esporte, televisão e educação física. Campinas: Papirus, 1998.
BRACHT, Valter. Educação física & ciência: cenas de um casamento (in)feliz. Ijuí: UNIJUÍ, 1999.
________. Sociologia crítica do esporte: uma introdução. Vitória: UFES, 1997.
DAOLIO, Jocimar. A construção cultural do corpo feminino, ou o risco de transformar meninas em "antas". In: Cultura: educação física e futebol. 2ª ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003, p. 107-122.
________. Da cultura do corpo. 7ª ed. Campinas: Papirus, 1995.
________. A cultura da / na educação física. 2002. (Tese de Livre-Docência. Universidade Estadual de Campinas.)
RAMOS DE OLIVEIRA, Diná Teresa. Por uma ressignificação do esporte na educação física: uma intervenção na escola pública. 2002. (Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas.)
SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. 33ª ed. Campinas: Autores Associados, 2000.
revista
digital · Año 11 · N° 95 | Buenos Aires, Abril 2006 |