Objetividade da medida do limiar ventilatório Objectivity of the ventilatory threshold measure |
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1. Grupo de Estudo e Pesquisa em Metabolismo, Nutrição e Exercício Centro de Educação Física e Desportos - Universidade Estadual de Londrina. 2. Instituto de Biociências. Universidade Estadual Paulista - Rio Claro. 3. Laboratório de Fisioterapia Pulmonar - Universidade Estadual de Londrina. |
Fábio Yuzo Nakamura1,2 | Daniel Müller Hirai3 Bruno Tesini Roseguini3 | Bruno Moreira Silva3 Bruna Camargo Brunetto1 | Antônio Fernando Brunetto3 schwartz@rc.unesp.br (Brasil) |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 93 - Febrero de 2006 |
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1. Introdução
O limiar ventilatório (LV) foi proposto por Wasserman e McIlroy 17 com o propósito de determinar, de forma indireta, a intensidade de esforço em que o lactato no sangue sofre elevação em relação ao valor de repouso, durante teste de esforço progressivo. Esse índice tem sido utilizado para detectar a máxima intensidade de trabalho segura para pacientes com doenças cardíacas 17, predizer o limiar de lactato 4, 5, indicar a capacidade aeróbia de indivíduos saudáveis 1 e não saudáveis 13, e controlar os efeitos do treinamento sobre a função aeróbia 6, 14.
Vários critérios têm sido utilizados na detecção do LV. Três dos mais empregados são: (1) aumento do equivalente ventilatório de O2 (VE/VO2) sem aumento concomitante do equivalente ventilatório de CO2, (2) quebra da linearidade do aumento da ventilação-minuto (VE) e, (3) quebra da linearidade entre os aumentos do VCO2 e VO2 (V-slope). No entanto, apesar desses critérios estarem bem descritos na literatura, existe um componente subjetivo associado à determinação da intensidade de LV, dependente, sobretudo, da experiência do avaliador e de seu entendimento sobre os critérios.
A qualidade das avaliações de aptidão aeróbia através do LV em laboratórios de pesquisa depende da concordância na detecção desse índice, por meio dos diferentes critérios, entre os diferentes avaliadores. Essa concordância inter-avaliadores é chamada de objetividade 16.
O objetivo primário deste estudo foi verificar a objetividade da medida do LV, mediante avaliação feita por três investigadores de nosso laboratório, habitualmente envolvidos na detecção desse índice através dos critérios (1), (2) e (3). Objetivou-se também verificar a consistência intra-avaliador do LV, bem como comparar as estimativas de LV obtidas a partir dos diferentes critérios.
2. Materiais e métodos
2.1. SujeitosForam sujeitos deste estudo 16 indivíduos jovens (18 - 30 anos de idade), fisicamente ativos, sendo apenas um deles atleta competitivo de canoagem, que consentiram em participar após leitura e assinatura de um termo de consentimento livre e esclarecido. Os procedimentos adotados neste estudo foram aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Londrina.
2.2. Determinação do limiar ventilatório e do VO2pico em teste de esforço progressivoO teste de esforço progressivo foi conduzido em cicloergômetro com resistência mecânica MonarkÒ. As variáveis ventilatórias foram determinadas com a utilização de um aparelho VO2000 (Aerosport Inc.). O equipamento para análise de trocas gasosas foi calibrado antes de cada teste de esforço. A calibração foi feita a partir de amostras de gás ambiente (20,9% de O2 e 0,04% de CO2) e a partir de um cilindro com concentração conhecida de O2 (17%) e de CO2 (5%). Além disso, o fluxo de gases para o aparelho foi calibrado a partir de uma seringa de três litros, conforme padronização do fabricante. O aparelho foi ajustado de forma a realizar as análises dos gases expirados a cada três incursões ventilatórias.
Antes do início do teste, o participante permanecia três minutos sentado sobre o ergômetro, para mensuração das variáveis ventilatórias de repouso. Depois disso, pedalava por mais três minutos sem resistência externa. Sem pausa, o teste de esforço progressivo era conduzido com carga inicial de 20 W, com incrementos de carga de 20 W por minuto, até a exaustão voluntária. Havia incentivo verbal por parte dos investigadores. O VO2 médio alcançado nas últimas seis incursões ventilatórias prévias à exaustão foi considerado o VO2pico, uma vez que, em geral, não se observava platô dessa variável nas últimas cargas do teste progressivo.
Os resultados fornecidos pelo programa (Aerograph) referentes aos testes foram distribuídos e analisados independentemente por três avaliadores, utilizando os critérios (1), (2) e (3) para determinar o LV. A análise foi feita por inspeção visual. Os avaliadores não tinham conhecimento da identidade dos sujeitos avaliados, pois elas foram trocadas por números que não respeitavam, necessariamente, a ordem de realização dos testes. A figura 1 ilustra a detecção gráfica do LV por um dos avaliadores. Em todos os casos, o LV foi expresso em termos de potência mecânica.
Figura 1. Determinação do LV por um dos avaliadores, de um sujeito representativo, por meio do aumento do VE/VO2 (A),
quebra da linearidade da VE (B) e quebra da linearidade da relação entre VCO2 e VO2 (C). O LV está indicado pela seta.Os avaliadores não se reuniram previamente às análises com o intuito de entrar em consenso quanto aos critérios de identificação do LV. No entanto, todos tinham experiência prévia na determinação desse índice fisiológico, e conhecimento de artigos originais e livros que tratam dos critérios de identificação do LV.
2.3. Tratamento estatísticoPara comparação entre as estimativas de LV fornecidas pelos três avaliadores, pelos três critérios apresentados, foi utilizado um índice que representa a concordância inter-avaliadores 16. Esse índice é dado pela divisão entre o número de casos em que houve concordância entre os investigadores, sobre o número total de casos. Ao ser multiplicado por 100, têm-se o percentual de concordância entre dois dos avaliadores. Além disso, foi aplicada ANOVA two way para medidas repetidas, tendo o avaliador como variável independente e o critério de determinação do LV como variável dependente, para analisar a consistência inter- e intra-avaliador, da medida de LV. Foi utilizado teste post hoc de Scheffé, para localizar as diferenças. A mediana dos três valores fornecidos pelos avaliadores a partir de cada critério foi adotada para a análise da consistência entre os valores de LV associados aos diferentes critérios, minimizando, assim, o viés intra-avaliador. A comparação foi feita a partir de ANOVA para medidas repetidas, e por meio do cálculo do coeficiente de correlação intra-classe. O nível de significância adotado para todos os procedimentos estatísticos foi de 5%.
3. ResultadosOs participantes deste estudo apresentaram média de VO2pico equivalente a 3,52 l.min-1. Os valores médios de LV estimados a partir dos três diferentes critérios, pelos três avaliadores, estão apresentados na tabela 1.
Tabela 1. Potência em watts associada à ocorrência do LV mediante utilização dos critérios (1), (2) e (3), pelos três investigadores.
# diferente de critério (1) e (2) do investigador 2, e de critério (3) do investigador 3.
* diferente de critério (2) do investigador 2, e de critério (3) do investigador 3.
Apesar dos resultados da tabela evidenciarem algumas diferenças pontuais entre os critérios a partir dos diferentes investigadores, não foram detectadas quaisquer diferenças significantes entre as estimativas fornecidas pelo mesmo investigador, ao utilizar os três critérios. Isso denota uma alta consistência intra-avaliador na determinação do LV.
Tabela 2. Concordância inter-avaliadores (em percentual) na detecção do LV mediante utilização dos critérios (1), (2) e (3).
Na tabela 2 estão apresentados os dados referentes à concordância inter-avaliadores no que se refere à aplicação dos diferentes critérios. A concordância foi relativamente baixa (entre 18,0 a 62,5%) em praticamente todos os casos. Nota-se que a concordância em torno do critério (1), de aumento do VE/VO2, foi sistematicamente superior se comparada com os outros dois critérios. O pior nível de concordância foi registrado quando da utilização do critério (3), do V-slope, envolvendo os avaliadores 2 e 3.
Ao se determinar um único valor de LV individual a partir de cada critério, considerando a mediana dos resultados apresentados pelos três avaliadores, foram obtidos, em média, 132,5 ± 30,0 W para o critério (1), 135,0 ± 33,1 W para o critério (2), e 135,0 ± 36,1 W para o critério (3), sem diferenças significantes entre os critérios (p > 0,05). O coeficiente de correlação intra-classe foi igual a 0,94 na comparação entre todos os pares de critérios.
4. Discussão
Diversos estudos têm demonstrado a dissociação entre o LV e o limiar de lactato sob condições específicas como: (1) ingestão de cafeína prévia ao teste incremental 3, (2), depleção de glicogênio prévia ao teste incremental 12, (3) prevalência de doença de McArdle 10; (4) utilização aguda de -bloqueadores 11 e, (5) após treinamento aeróbio de médio prazo 7. Dessa forma, o LV parece ser um indicador da função aeróbia não ligado causalmente ao limiar de lactato. A alta associação encontrada entre eles em alguns estudos 4, 5 parece ser casual.
Alguns autores têm sugerido que a dissociação entre os dois limiares pode ser creditada, em parte, à falta de objetividade na determinação de ambos. No estudo de Gladden et al. 9, por exemplo, nove investigadores de laboratórios independentes, conhecedores dos critérios de determinação do LV, realizaram a análise de dados ventilatórios provenientes de testes incrementais de 16 sujeitos. O coeficiente de correlação intraclasse foi, em média, de 0,70 entre os diferentes pares de avaliações do LV. A correlação de Pearson entre os valores de LV estimados por três dos avaliadores mais experientes foi alta (r = 0,79 - 0,88). No entanto, as linhas de regressão ajustadas aos pares de valores fornecidos por esses três investigadores eram bastante desviadas da linha de identidade. As diferenças entre investigadores na avaliação individual do LV, expresso em VO2, oscilou entre 0,10 a 0,53 l/min (3 - 16% do VO2max). Dessa forma, os autores ressaltam que os critérios de determinação do LV sofrem considerável influência subjetiva, a ponto de comprometer a objetividade e, portanto, a acuidade da medida.
Os resultados do nosso estudo confirmam a baixa objetividade inter-avaliadores apontada por Gladden et al. 9, sobretudo ao evidenciarem discrepâncias dentro do mesmo critério entre diferentes avaliadores (Tabela 1). Essas discrepâncias são reforçadas pelos níveis percentuais relativamente baixos de concordância entre os avaliadores dentro de cada critério. Os melhores escores foram obtidos quando da utilização do critério (1). Aparentemente, o aumento do VE/VO2 é o mais inequívoco dos critérios porque o comportamento de "quebra" é o mais nítido visualmente 4 (Figura 1A).
O aumento não linear da ventilação-minuto (figura 1B) durante o exercício, em geral, está associado ao aumento da concentração plasmática de CO2 decorrente do tamponamento do ácido lático. No entanto, existem condições nas quais a resposta ventilatória ocorre com um certo atraso em relação à resposta metabólica, como na obesidade, doença pulmonar obstrutiva crônica, insensibilidade quimiorreceptora e até em alguns indivíduos saudáveis 2. Alguns estudos sugerem ainda que o aumento da ventilação durante o exercício pode ocorrer não apenas pelo aumento da concentração plasmática de íons H+ e CO2, mas também devido a estímulos não humorais originados nos músculos ativos ou no córtex motor 15.
O método V-Slope foi originalmente desenvolvido com o intuito de diminuir a subjetividade da análise e eliminar as limitações dos critérios que são baseados no aumento da ventilação para detectar o LV 2. Entretanto, o tratamento dos dados segundo os procedimentos originais propostos por Beaver et al. 2 é complexo. No presente estudo, adotou-se a avaliação subjetiva do critério (3). Os níveis de concordância inter-avaliadores foram baixos, talvez devido à falta de nitidez visual do exato ponto de "quebra" da linearidade da relação entre VCO2 e VO2 (figura 1C)
De acordo com Caiozzo et al. 4, o critério (1) de determinação do LV é o que melhor se correlaciona com o limiar de lactato, apresentando também elevada reprodutibilidade. Sendo assim, o critério (1) parece ser a melhor alternativa quando apenas um critério for utilizado na determinação do LV de indivíduos saudáveis, tanto do ponto de vista da validade quanto da objetividade, conforme os resultados apresentados pelo presente estudo.
Gaskill et al. 8 compararam a identificação do LV por três critérios separadamente com os mesmos utilizados em conjunto em uma amostra com uma ampla variação de potência aeróbica máxima. Os autores observaram que a combinação dos critérios melhorou a validade e a fidedignidade da determinação do LV, além de diminuir o número de casos nos quais não foi possível a identificação. Sendo assim, os autores mostraram que a combinação dos critérios pode ser uma alternativa viável em detrimento da utilização de apenas um deles. Os resultados do presente estudo mostraram que cada um dos três avaliadores apresentou alta consistência interna, ou seja, apontou valores médios semelhantes de LV, a despeito do critério utilizado. No entanto, com o intuito de eliminar o viés intra-avaliador, utilizou-se a mediana dos três valores de LV atribuídos pelos avaliadores, dentro de cada critério. Isso possibilitou a eliminação dos valores extremos na análise de consistência entre os três critérios. Os elevados valores de correlação intra-classe (r = 0,94), associados à ausência de diferenças significantes entre as estimativas dos três critérios, mostraram que o procedimento parece garantir a qualidade dos dados para suas possíveis aplicações, como por exemplo, na avaliação da função aeróbia, prescrição de treinamento e acompanhamento dos efeitos longitudinais do treinamento, sem interferência significativa dos vieses intra-avaliadores.
5. Conclusão
Os resultados deste estudo indicam que três dos critérios mais empregados na literatura para determinação do LV apresentam objetividade relativamente baixa. Dentre os critérios, a maior concordância inter-avaliadores foi encontrada naquele referente ao aumento abrupto do VE/VO2, sem aumento concomitante do VE/VCO2. A adoção das medianas dos resultados apresentados pelos três avaliadores neste estudo, dentro de cada critério, produziu altos índices de correlação entre os critérios, e ausência de diferenças entre as estimativas de LV, mostrando-se um procedimento viável na eliminação do viés intra-avaliador.
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revista
digital · Año 10 · N° 93 | Buenos Aires, Febrero 2006 |