Educação física escolar: esporte, competição e talento |
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PPGEF/UGF (Brasil) |
Felipe Lucero felipe3870@aol.com Hugo Lovisolo lovisolo@globo.com |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 92 - Enero de 2006 |
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1. Introdução
Nas áreas disciplinares caracterizadas pelo domínio da intervenção, como é o caso da educação física, os temas ou problemas de pesquisa estão vinculados às práticas dos interventores e a seus horizontes críticos. No campo da educação física, enquanto disciplina escolar que integra a formação básica, o debate educacional sobre seus valores orientadores, objetivos, funções e papéis, realizado desde sua criação, é considerável e deu lugar a propostas, por vezes, profundamente divergentes. Entretanto, nem sempre os argumentos estão vinculados a evidências empíricas, mal que afeta a toda a área da educação, fazendo com que os debates sejam intermináveis e que dominem o ensaio sobre os resultados de pesquisa.
Neste artigo, propomos analisar alguns dados de uma pesquisa realizada com alunos de duas escolas do Rio de Janeiro. Basicamente, trabalharemos suas opiniões sobre a função da competição, em jogos e esportes, intra e extra-escolar, sobre o talento e a aquisição da habilidade esportiva, mediante escalas de opinião. Acreditamos que as evidências, embora sem pretensões de universalidade nem para o próprio Estado, poderão subsidiar as discussões sobre a educação física escolar.
Foram entrevistados alunos dos 3º e 4º ciclos do ensino fundamental do Colégio Lemos de Castro (CLC) e da Escola Municipal Silveira Sampaio (ESS) situada em Curicica - Jacarepaguá, área popular do Município.
A ESS tem uma forte influência da prática dos esportes e tornou-se referência no Município do Rio de Janeiro na formação e descoberta de talentos esportivos. Na ESS, com uma média de 1400 alunos matriculados, foram escolhidas duas turmas da 5ª a 8ª série, preferencialmente as de numeração mais baixa, já que a distribuição se dá por idade, ficando as turmas de numeração mais alta com os alunos mais velhos. Com isso se acreditava que haveria uma relação mais próxima das idades por turma em cada colégio. 3 No final, responderam à pesquisa 293 alunos.
O CLC, privado, situado em Madureira, uma área de melhor nível econômico, opera com uma proposta que se encaixa melhor no que poderíamos denominar como "desenvolvimento da cultura do esporte". Possui duas turmas da 5ª a 8ª série e o total de alunos entrevistados foi próximo ao da outra escola, mais exatamente 279.
No quadro abaixo se pode observar que não existem grandes diferenças entre os dois universos pesquisados, nem em termos absolutos, nem proporcionais.
Q.1. Respondentes por escola e série
2. Da escolaridade dos paisAs diferenças da origem social dos alunos entre ambas as instituições, nos levou ao controle da escolaridade e ocupação dos pais, pensando que poderia incidir nas suas respostas. Embora não tenhamos encontrado uma incidência significativa nem da origem nem do projeto de cada escola, destaca-se aqui a escolaridade dos pais para que se tenha uma idéia mais qualificada das diferenças.
Q.2. Grau de escolaridade dos pais
Os dados indicam, como esperado, o melhor nível de instrução de pais e mães dos alunos do CLC. Destaquemos que, em ambas as instituições, há uma alta ignorância da escolaridade dos pais. As razões do desconhecimento merecem ser melhor pesquisadas pois, por ser um dado inesperado, não foram colocados no questionário elementos que possibilitassem seu esclarecimento.
3. Distribuição de idades por séries escolaresNos estudos sobre a distribuição escolar no Brasil, a assincronia idade/série dos alunos das escolas públicas foi suficientemente destacada. Por tal motivo, controlamos a distribuição entre ambas as instituições mediante as médias por série apresentadas no quadro abaixo. Apesar da tendência para médias maiores de idade, no caso da ESS, as diferenças são baixas, apenas de meses, e praticamente inexistentes na 8ª série.
Gráfico 1. Distribuição de idade/série por escola
A distribuição por série, das médias de idades dos alunos, demonstra que, de um modo geral, a ESS possui uma distribuição dos alunos ligeiramente mais alta por série, exceto na sexta série. Assim, podemos pensar que não há uma influência significativa nas respostas determinada por experiências pessoais ancorada em diferenças expressivas nas médias de idade. De fato, poucos alunos se apresentam fora das faixas etárias previstas para cada série, segundo a Secretaria Municipal de Educação.
4. Dois efeitos significativos: correção e adesãoUm aspecto que nos pareceu relevante era a visão dos alunos sobre a orientação conseguida na educação física escolar. Vejamos os percentuais de respostas.
Q.3. A Educação Física orienta sobre a forma correta de exercitar-se fora da escola
As respostas entre as duas instituições são semelhantes. O dado chama a atenção. No CLC existe uma solicitação para que os professores, sempre que possível, durante as aulas, dêem informações sobre utilidade, segurança, finalidade e contra-indicações dos exercícios. O resultado obtido era, portanto, o esperado. Entretanto, os informantes, professores da ESS, mostraram-se surpreendidos com os resultados, já que nenhuma informação extra é dada aos alunos durante a execução dos exercícios. Pensamos que os alunos da ESS possam ter entendido que a pergunta estivesse relacionada com as explicações da execução das técnicas esportivas - estas, sim, intensamente corrigidas e orientadas. De qualquer forma, parece que os alunos avaliam positivamente - quase no nível de 80%, entre concordo muito (CM) e concordo (C) -, as informações recebidas e que podem contribuir com a formação da autonomia do praticante ou, pelo menos, com uma prática mais informada.
A educação física escolar teve e tem como uma de suas propostas, e também como objetivo explícito de muitos projetos escolares, a promoção e o incentivo das atividades físicas, na perspectiva de uma prática contínua e moderada que vá além da vida escolar. Qual a opinião dos alunos?
Q.4. A Educação Física incentiva a prática permanente do exercício físico fora da escola
Os resultados nas duas escolas são bastante semelhantes, tanto entre os meninos quanto entre as meninas. A maioria (CM mais C) parece concordar com a afirmativa, confirmando um dos objetivos da educação física na escola que é o de promover um processo de continuidade das atividades físicas que vá além do âmbito escolar, embora não seja esse seu único objetivo.
5. Finalidades da educação físicaA prática esportiva, mesmo na sua versão inglesa e educativa, esteve associada a valores tais como disciplina, controle e autocontrole, respeito à autoridade do técnico e do juiz, espírito de competição e de equipe. A educação física brasileira, por sua origem militar, foi fortemente associada a uma imagem de disciplina e ordem, de formação de caráter, utilizando-se a ginástica e o esporte como meios de controlar o indivíduo e, no caso dos homens, de formação da masculinidade. Segundo os princípios do treinamento esportivo a aptidão física e a técnica necessitam de uma disciplina rígida para que sejam melhoradas. A melhoria das capacidades físicas e das técnicas do gesto esportivo demanda dedicação que envolve uma reorganização pessoal. As idéias em pauta foram altamente criticadas nas últimas décadas e as principais propostas elaboradas foram críticas dos valores acima enunciados. Alguns deles foram vistos como meios, porém, não como finalidade da educação física escolar. No caso do CLC, sua proposta de desenvolver uma cultura esportiva, usando até aulas teóricas, parece estar distante da tradição. Já a ESS, por destacar o desenvolvimento do esporte de competição, poderia distribuir alguns desses valores. Ou seja, a comparação é boa porque estamos diante de propostas distintas. Será que as mesmas afetam a opinião dos alunos? Tentaremos aproximar uma resposta a partir de um conjunto de variáveis que procuram avaliar a opinião deles.
5.1. Os alunos talentosos e sua relação nas aulas de educação físicaVerificaremos, a seguir, como os alunos das duas escolas percebem o tratamento dado àqueles que se destacam e que têm talento, não deixando de considerar as diferenças entre os projetos e práticas das duas instituições. A visão democrática da educação física escolar realizou fortes críticas ao desenvolvimento do esporte na escola, e uma das principais foi endereçada aos docentes que centrariam sua ação nos alunos com algum tipo de talento esportivo.
Q.5. Os alunos que se destacam recebem tratamento diferenciado durante as aulas de educação física
A concepção de um programa que busca um equilíbrio entre o esporte, jogo atividade física e cultura, como no caso do CLC, parece diminuir a possibilidade de um tratamento diferenciado para o destaque esportivo. A situação da ESS seria quase que inversa (não esqueçamos que se tornou referência para o esporte escolar de desempenho). Os dados parecem refletir a diferença das propostas, sendo considerável a diferença entre CM e C das duas escolas. No caso da ESS, onde o esporte é o eixo central da educação física, a soma dessas duas categorias representa 50%. O percentual de alunos que CM é o dobro do encontrado no CLC e essa percepção é maior nos meninos que nas meninas, mesmo com as tentativas dos professores em não dar tratamento privilegiado aos mais aptos.
Não podemos afirmar se as respostas, no caso da ESS, se limitam somente às aulas de educação física, já que as saídas para os jogos e as viagens que, muitas vezes, as equipes realizam para participar de eventos esportivos, podem ser consideradas tratamento diferenciado por estes alunos. Podemos concluir que a proposta escolar incide sobre as respostas dadas pelos alunos.
Nas propostas educativas destacam-se os que defendem a avaliação como processo de cada aluno. Assim, a habilidade natural, em qualquer campo, não deveria pesar na avaliação ou nota do aluno. Esta lógica avaliativa privilegiaria o "esforço" ou "dedicação" sobre o "talento" ou "habilidade natural", caso, de fato, funcionem como fatores isolados. Contudo, parece difícil que na prática escolar de qualquer disciplina os docentes não favoreçam aos alunos mais dotados. Interessava-nos retratar como os alunos pensam a incidência do talento ou habilidade esportiva no cotidiano da avaliação escolar nas aulas de educação física?
Q6. Os critérios de avaliação são injustos, favorecendo os mais fortes e rápidos
Segundo os informantes, no CLC as provas são teóricas e completam a avaliação notas de freqüência e conceito. Já na ESS é utilizada a hetero-avaliação, que também não recorre a avaliações práticas de velocidade, resistência, força ou qualquer outro protocolo. Ou seja, em hipótese, os alunos não deveriam concordar com a questão, pois, em nenhuma das escolas, existe avaliações onde as capacidades físicas sejam necessárias.
A existência de respostas que concordam com a proposição de que os critérios avaliativos favorecem os mais fortes e rápidos (10,8 no CLC e 20,5% na ESS) sugere que, mesmo com avaliações que se distanciam da performance física, a educação física ainda possui uma imagem cristalizada no rendimento e na seleção de critérios físicos em muitos alunos. É bem possível que a mesma imagem apareça se o objeto da avaliação fosse a habilidade matemática ou lingüística. Em outros termos, é possível que um segmento dos alunos considere como "justo" que a habilidade entre como componente da avaliação, ainda mais quando as aulas objetivam seu desenvolvimento, como no caso da ESS.
Mesmo assim, os alunos do CLC demonstram um maior entendimento dos processos avaliativos enquanto exclusão do talento. As provas teóricas, introduzidas com o intuito de diminuir as distorções entre os alunos da turma, já que critérios baseados nas capacidades físicas não são controlados nas aulas, parece criar um impacto maior do que o sistema de hetero-avaliação adotado na ESS, que ainda pode estar, muitas vezes, associado à performance durante as aulas.
5.2. A motivação dos alunos para as aulas de educação físicaA possibilidade de participação com sugestões e a utilização de atividades já conhecidas dentro da comunidade ocupam lugar de destaque nas propostas pedagógicas participativas ou progressistas que supõem, que essas incorporações, podem ser um fator estimulador para os alunos. A aula de educação física deve ser prazerosa como qualquer outra disciplina: a criança aprende melhor quando o conteúdo faz sentido ou proporciona prazer - esta é a crença dominante em diretrizes e propostas. Na próxima tabela será possível verificar como os alunos se sentem motivados para as aulas nas duas escolas.
Q.7. Estou sempre motivado para as aulas de educação física
Em relação à motivação dos alunos, a ESS apresenta resultados mais favoráveis que o CLC. Em tese, o projeto do CLC enfatiza os jogos e brincadeiras da cultura do aluno, da cultura local e tradicional, e a ESS parte da cultura do esporte rendimento. Podemos pensar que, talvez, o contexto cultural principal sejam os meios de comunicação que é, por si só, um desencadeador de desejos, que teria uma identificação mais intensa na ESS com o esporte rendimento e com a profissionalização esportiva. Esporte e música são lugares de ascensão social dos populares - efeitos altamente apresentados na mídia. De fato, há escolas privadas que oferecem bolsa de estudo para os alunos da ESS que se destacam nos esportes. A maior variedade de perspectivas profissionais e de lazer, dos alunos do CLC, pode incidir sobre a visão das aulas de educação física, que não seriam tão estimulantes e até poderiam dominar a obrigação disciplinar.
Não podemos aferir que dimensões da educação física foram levadas em consideração durante as respostas; apenas podemos admitir que as visões são diferenciadas em cada escola.
5.3. As competições esportivas na escolaAs competições escolares, internas ou externas, ainda mobilizam discussões no campo da educação física escolar. A Revista Movimento dedicou vários números a essa discussão. O fenômeno esportivo está presente no cotidiano e é inegável o fascínio que exerce entre os estudantes. De modo geral, as propostas para a educação física defendem a não reprodução na escola do esporte de rendimento. De fato, as condições e o tempo semanal destinado às aulas de educação física impossibilitam realizar seriamente o treinamento esportivo. O treinamento requer um grupo selecionado, motivado, e com capacidades físicas em níveis semelhantes, coisa que nunca vamos encontrar em uma sala de aula. A intensidade, o volume, a cobrança e as expectativas sobre um grupo de alto nível em nenhum momento se assemelham à nossa realidade escolar; portanto, sessões de treinamento de alto nível na aula de educação física não podem existir. Teriam que ser criados horários alternativos de treinamento para grupos selecionados. Contudo, a competição escolar é um recurso de animação.
Analisaremos, agora, como os alunos percebem as competições internas, verificando, dentro de planejamentos e propostas distintas, como se comportam os alunos acerca dessa questão nas duas escolas.
Q.8. Eu gosto das competições internas da escola
As competições e disputas fazem parte das atividades mais estimulantes da escola, não importando se a metodologia ou o programa as valorizem ou não. Os resultados mostram que nas duas escolas a aceitação é grande, tanto de meninos quanto de meninas. Isso vem demonstrar que as críticas à educação física em promover atividades competitivas, classificadas como seletivas e excludentes, não partem dos atores que delas participam. Kunz (1994), por exemplo, afirma que o esporte na escola constitui-se em uma cópia exata do esporte de rendimento, contribuindo para a seletividade no processo pedagógico e, consequentemente, fomentando vivências de sucesso para uma minoria e o fracasso ou vivência de insucesso para a grande maioria. Ele não apresenta evidências para suas afirmações que se aplicam a qualquer desempenho, matemáticas, desenho, etc, e que também diferenciam os bem sucedidos e os mal sucedidos. Mas, será que isto afeta - e como? - aos atores dos processos de seleção?
Q.9. Eu procuro participar das Olimpíadas Internas da escola
Os resultados são semelhantes nas duas escolas com os meninos demonstrando maior interesse na participação do que as meninas. A busca na participação também parece não sofrer grande influência das formas de organização, já que os Jogos Internos do CLC são realizados em um pequeno período com poucas modalidades, resultando em um evento simples e com pouca divulgação. Já na ESS, os jogos acontecem durante duas ou três semanas, com as aulas suspensas a partir de um horário e com toda a escola envolvida em uma grande atividade, com muitas modalidades. Os alunos são divididos em quatro grupos representados por cores e durante o período de competições podem assistir aula vestidos com a cor do seu grupo. Ou seja, existe uma mobilização total dos setores da escola para a realização dos jogos.
Existem também as competições externas entre colégios que acontecem anualmente. No Rio de Janeiro as mais importantes são, para as escolas particulares, o Intercolegial, patrocinado por uma rede de lanchonetes e por um jornal de grande circulação e o Jepar (Jogos das Escolas Particulares), patrocinado pelo Governo do Estado. Já para as escolas públicas temos os JEEPs (Jogos Esportivos das Escolas Públicas) patrocinados pelo Governo do Estado e os Jogos Estudantis, patrocinados pela Prefeitura Municipal. Encontramos ao longo do ano outras competições, porém as citadas têm uma grande força dentro das escolas.
Todos os anos diversos alunos procuram os horários de treinamento extracurricular para participarem das equipes que disputam essas competições, tanto no CLC quanto na ESS. A movimentação gerada pelas competições afeta não só os que participam, mas também outros alunos que vibram e se mobilizam nos dias de jogos.
Serão verificadas, agora, as opiniões sobre a participação das escolas nessas competições externas.
Q.10. É importante a escola participar das competições externas como os Jogos Estudantis e o Intercolegial
Mais uma vez os resultados mostram que o gosto pela participação nas competições não depende da organização da escola, mas sim de fatores contextuais que afetam a ambas as instituições. Lembremos que a ESS possui um projeto esportivo, envolvendo além da escola a comunidade com equipes de atletismo, futsal, basquete, voleibol, handebol, tênis de mesa e xadrez, colecionando inúmeros títulos nos Jogos Estudantis da Prefeitura que dão à escola uma posição de destaque. O CLC possui apenas equipes de basquete e voleibol, participando apenas de uma competição por ano, em média, e ainda assim os alunos falam da importância dessa participação, compreendendo que é um momento importante no contexto educacional.
Um argumento dos críticos do esporte escolar é que a seleção de alunos para as equipes escolares cria frustrações nos alunos que delas não participam, mas acreditamos que ocorre um outro tipo de emoção: o orgulho por estudar nas instituições que vencem os jogos ou os campeonatos. O gosto de participar, vencendo ou não, não está vinculado à participação enquanto atleta, mas pode também ser dividido e encontrado nos torcedores das equipes. Caso contrário, se o gosto de participar fosse apenas dos atletas, não existiria o esporte-espetáculo, nem as artes, diga-se de passagem.
Na próxima questão será destacado como os alunos percebem esse assunto.
Q.11. Quando as equipes esportivas da escola vencem eu também me sinto um vencedor por estudar na escola
Os dados parecem dizer que mesmo como espectadores os alunos gostam de participar e vencer. As diferenças entre as escolas não são significativas.
5.4. Do talento esportivoNossa sociedade fabrica ídolos e, especialmente, ídolos esportivos. Tal processo de "fabricação" ocorre em todas as instâncias da mídia e pode influenciar os jovens em idade escolar que se espelham em suas atitudes para estabelecer referências na sua própria vida pessoal. Uma questão central diz sobre o talento como sendo natural ou produto do próprio investimento, da dedicação - no caso, ao treinamento. Escolher uma ou outra opção sugere implicações significativas para a vida de cada um.
Q.12. Os grandes jogadores (craques) já nascem prontos para jogar
Nas duas escolas a idéia do craque ainda está fortemente ligada ao treinamento. Ou seja, o talento natural não parece ser suficiente para o sucesso acredita a maioria. Assim, contra uma idéia de seleção natural, de dom ou de predestinação, os alunos se inclinam pela escolha do desenvolvimento do talento. No CLC os valores de discordância com o talento natural são ainda mais altos. Ver abaixo como, em contraposição, os alunos opinam sobre o treinamento.
Q.13. Os grandes jogadores (craques) necessitam de treinamento para serem os melhores
Mais uma vez é possível perceber o valor dado ao treinamento, ao esforço, para ser diferenciado. Mesmo os grandes jogadores necessitam do treinamento. Nas duas escolas fica claro que o treinamento esportivo ainda é o grande diferencial na conquista da excelência esportiva. Ninguém nasce pronto para o esporte. Afastando-se da idéia de que o ídolo é alguém que tem um dom individual, afirma-se a dedicação e preparação do atleta. Para completar a imagem, a opinião sobre o tratamento dos craques.
Q.13. Os grandes jogadores (craques) devem receber tratamento diferenciado por parte de técnicos e dirigentes esportivos
A idéia de um tratamento igualitário para todos é bem desenvolvida nas duas escolas, que discordam sobre o tratamento diferenciado dado aos craques esportivos. A valorização do tratamento diferenciado é maior na ESS, talvez por alguns dos alunos que responderam à questão já se sentirem atletas e demandarem tratamento especial. Contudo, o tratamento democrático domina amplamente as respostas.
5.5. O que o aluno gosta? O que ele aprende?Dentre os conteúdos desenvolvidos nas aulas de educação física escolar podemos identificar quais são os que determinam uma maior ou menor participação dos alunos. Isto pode ser um dado importante se entendermos que um dos nossos objetivos é incentivar um estilo ativo de vida, em que a atividade física, seja ela qual for, faça e continue fazendo parte do cotidiano do aluno. Quando se consegue compor um equilíbrio entre os objetivos da disciplina e as expectativas e gosto dos alunos, começa-se a traçar um caminho de eficiência do processo ensino-aprendizagem.
Então, ver-se-á agora o que os alunos mais gostam das aulas de educação física.
Q.14. O que eu mais gosto nas aulas de educação física
É alto percentual dos alunos que declaram que "gosta de tudo": CLC 26,2% e ESS 37,9%. Os esportes, seguidos dos jogos e brincadeiras são os conteúdos específicos mais indicados pelos alunos como seus favoritos. Percebemos pequenas diferenças entre os colégios que poderiam estar motivados pelos próprios programas e metodologias. Enquanto no CLC os jogos e brincadeiras são valorizados dentro do planejamento, paradoxalmente é na ESS onde estes aparecem com um percentual maior. O esporte, por sua vez, que compõe a linha central de trabalho da ESS, aparece com um percentual maior no CLC. Talvez estejamos diante do desejo daquilo que gostariam ter mais.
A dança e a ginástica aparecem com percentuais superiores no CLC, talvez como resultado da influência direta das metodologias diferenciadas de educação física e/ou estilos de vida diferenciados que possibilitam o contato com essas atividades em ambientes especializados como academias de dança e ginástica.
Outro ponto que pode ajudar a visualizar mais, de uma forma mais geral, a adequação dos objetivos da educação física em cada escola e a realidade, é quando se questionou os alunos acerca do que eles aprendem, efetivamente, nas aulas de educação física. O resultado é mostrado no quadro abaixo.
Q.15. O que eu mais aprendo na educação física
Vemos, claramente, nessas respostas, que a idéia de uma educação física ligada aos conceitos de disciplina, competição e respeito é forte na representação dos alunos. Apesar de no CLC se valorizar a discussão e a ampliação dos conceitos da cultura esportiva e cultural, ou seja, operar com uma proposta inovadora, os valores tradicionais da competição, disciplina e respeito possuem percentuais de respostas muito próximos aos encontrados na ESS que, teoricamente, tem uma proposta mais próxima dos mesmos.
A tradição da educação física e da prática esportiva, com seus valores elaborados no século XIX, parece se impor ainda quando a proposta de atuação vai de encontro com a mesma. Os dados indicam que saber competir, respeitar os outros, ser disciplinado e ter autocontrole significam parte do horizonte de formação. Os valores não parecem ter perdido a atualidade nem seu objetivo último, que é a formação do caráter.
6. Comentários finaisAs diferenças nas origens sociais dos alunos de ambas as instituições têm uma incidência que pode ser negligenciada sob o ponto de vista da diferença nas opiniões diante das questões postas. Também se viu que as diferenças entre os projetos pouco afetam as respostas, apenas parecendo incidir em aspectos muito específicos e mais vinculados ao cotidiano escolar. Se considerarmos que o CLC acredita ter uma proposta ou projeto de educação físico crítico, participativo e progressista, quando se observam as opiniões sobre o que se aprende na educação física, sobre o papel da competição e da formação dos atletas, as diferenças podem ser negligenciadas quando comparadas com a ESS, um projeto mais tradicional e no qual o esporte ocupa lugar central.
Podemos pensar que o CLC, de alguma forma, incide pouco com suas inovações nas opiniões dos alunos. Assim, apesar de valorizar a discussão e a ampliação dos conceitos da cultura esportiva e cultural, ou seja, operar com uma proposta inovadora, os valores tradicionais da competição, disciplina e respeito possuem percentuais de respostas muito próximos aos encontrados na ESS que, teoricamente, tem uma proposta mais próxima dos mesmos. É importante destacar que há uma disciplina boa: é a que autonomamente reconhecemos como necessária, a lei que a nós próprios nos damos, dizia Rousseau. Não há pesquisa boa sem disciplina, sem controle, sem autocontrole e sem vontade de competição, a não ser que admitamos que os cientistas não se motivem pelo prestígio, o reconhecimento e mesmo os retornos financeiros.
Os administradores da educação devem entender que os efeitos positivos da educação física requerem um tempo maior no cotidiano escolar, quer sacrificando tempo de outras disciplinas, quer oferecendo atividades extra-horário. Os educadores físicos, sobretudo os críticos ou progressistas, que em alguns casos insistem em combater a competição e a disciplina dentro da escola, podem verificar que estes são valores ainda importantes para a vida, mais ainda quando ela é competitiva na política, na economia e também na academia. O axioma mor do esporte, além do fair play, talvez seja o que diz: perder é possível, desistir não. Quando damos o melhor e perdemos ficamos satisfeitos.
A escola não é apenas democrática, os alunos o são quando destacam a importância do treinamento e da dedicação sobre o talento. Ela deve formar o cidadão com valores e habilidades básicas; ela, portanto, iguala, Mas, ao mesmo tempo, ela também deve ajudar aos melhores a serem ainda melhores, criando espaços onde possam multiplicar suas vontades esportivas, artísticas, literárias, matemáticas, de criação e pesquisa, entre outras. Deveria promover oficinas onde os alunos desenvolvam a excelência, o talento, a habilidade pouco freqüente. O projeto progressista - de igualdade, solidariedade e fraternidade - por vezes parece que se torna ressentimento, pois acaba indo contra qualquer manifestação de superioridade intelectual, artística ou corporal. A superioridade do talento é admirada por todos, mais ainda quando resulta da igualdade de oportunidades. A sociedade não recusa a seleção e formação igualitária do talento. As camadas populares não têm à sua disposição espaços para desenvolver habilidades em nível de excelência, não apenas básicas. Assim, é a escola a responsável por criar esses espaços, talvez multiplicando as oficinas onde os estudantes possam testar e promover suas habilidades, seus talentos. Quando apenas se aponta para o básico, está se fazendo uma escola que nivela por baixo. E essa escola pareceria estar muito mais a serviço da opressão, mesmo quando eficiente, do que da emancipação.
Notas
A pesquisa foi realizada no PPGEF/UGF, como requisito para a obtenção do título de mestre por Felipe e orientada por Hugo Lovisolo. Neste artigo apresentaremos apenas algumas das repostas dos alunos.
A revista Movimento destinou vários de seus números para a discussão da competição no contexto escolar. O debate se caracterizou pela participação de importantes autores da área e pela falta de dados ou evidências.
As referências completas sobre a metodologia e sobre a caracterização de ambas as instituições podem ser obtidas em Lucero (2005).
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revista
digital · Año 10 · N° 92 | Buenos Aires, Enero 2006 |