Futebol de classe: a importância dos times de fábrica nos primeiros anos do século XX |
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Mestre em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) Niterói/RJ (Brasil) |
Fernando da Costa Ferreira bfgeo@uol.com.br |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 90 - Noviembre de 2005 |
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Introdução
Há várias décadas, o futebol é considerado o esporte mais popular do planeta, constituindo-se num dos maiores fenômenos de massa de todos os tempos. Na América Latina, a importância a ele atribuída alcança níveis extraordinários, tendo sido responsável até mesmo por guerras, como foi o caso do conflito envolvendo Honduras e El Salvador no ano de 19691.
Ao analisarmos a história dessa modalidade, constatamos a existência de equipes formadas a partir de diferentes origens. Elas podem estar ligadas a grupos étnicos: Vasco da Gama, Tuna Luso, Cruzeiro e Palmeiras (Brasil), Central Español (Uruguai), Audax Italiano e Palestino (Chile); cidades: Coritiba, Marília, Fortaleza, Caracas, Bucaramanga; personagens históricos: Bolívar e Jorge Wilsterman (Bolívia), O'Higgins e Colo Colo (Chile), Jorge Newberry (Argentina), Saprissa (Costa Rica), Juan Aurich (Peru); instituições de ensino: Universitário (Peru), Newell's Old Boys e Estudiantes (Argentina), Universidad Autonoma de Guadalajara (México), Universidad de Chile; bairros: Botafogo, Boca Juniors, Madureira, Campo Grande; e fábricas: Cruz Azul (México), Talleres de Córdoba (Argentina) e Bangu. Giulianotti (2002) afirma que o futebol moderno possui três formas fundamentais de identificação social: nação, localidade e classe (p.55). É exatamente a respeito do surgimento de um novo tipo de identidade de classe a partir do desenvolvimento do futebol no interior do ambiente fabril que nos dedicaremos no presente trabalho.
Iniciaremos com um breve histórico acerca da criação do futebol moderno e da sua rápida difusão pelo planeta. Posteriormente, analisaremos a sua chegada à América Latina, o estranhamento inicial por ele provocado, culminando na formação de uma Liga Contra o Foot-ball fundada pelo escritor Lima Barreto, e a resistência enfrentada por parte da militância anarquista e comunista. Por fim, estudaremos a importância que os times de fábrica tiveram não somente para o desenvolvimento do esporte, como também das sociedades locais, colaborando para a superação de barreiras raciais e sociais, e com a mudança nas relações de trabalho a partir do surgimento da figura do operário-jogador, uma espécie de transição entre o amadorismo e o profissionalismo.
Para tal, optamos por um estudo mais detalhado acerca do Bangu Atlético Clube, devido ao fato dele historicamente constituir-se no mais importante time de fábrica do país, por ter sido a primeira equipe a romper com a barreira da cor da pele no nosso futebol e por ser um marco numa nova perspectiva nas relações patrão-empregado no Brasil.
Assim sendo, não teremos a preocupação de percorrer a história do futebol brasileiro e latino-americano até os dias atuais. O nosso recorte temporal se limitará até o início da década de 1930, época da implantação do profissionalismo no nosso país, período áureo dos times de fábrica.
Das escolas às fábricas: um breve históricoMuito antes de se disseminar pelo ambiente fabril, o futebol, como o entendemos nos dias de hoje, teve nas tradicionalíssimas instituições de ensino inglesas o seu ambiente inicial, servindo como um verdadeiro laboratório para a unificação das regras deste esporte. Após longas discussões com as faculdades rivais de Eton e Rugby, favoráveis à permissão de pontapés nas canelas e do uso das mãos, os alunos de Harrow tomaram a iniciativa de, em 1863, codificar as regras do chamado football asociation (FA), enquanto que os alunos de Rugby criaram as regras do esporte batizado com o nome daquela mesma instituição de ensino.
Naquela época, as escolas inglesas acolhiam os filhos de algumas das famílias mais abastadas do planeta, além dos descendentes dos cidadãos britânicos espalhados pelos quatro cantos do globo, que, após travarem contato com o esporte que despontava, tiveram papel fundamental na difusão do futebol nos seus países de origem, funcionando como verdadeiros "missionários da bola".
A popularização do esporte fez com que, num segundo momento, o futebol deixasse o ambiente escolar, se disseminando rapidamente entre a cada vez mais numerosa classe operária britânica.
Podemos relacionar o processo de proletarização pelo qual passou o futebol na Inglaterra à intensa urbanização por ela vivida na segunda metade do século XIX. Giulianotti (2002) afirma que entre 1820 e 1860 surgiu um enorme vácuo no lazer popular, com o abandono dos antigos esportes praticados nas aldeias (adestramento de cães para atacar ursos, futebol primitivo, briga de galos etc.) pela população que seguia em massa rumo às cidades em busca de emprego nas indústrias. Desse modo, fazia-se necessário que esse numeroso contingente humano adotasse uma nova forma de distração para os seus raros momentos de lazer. Sendo assim, o futebol moderno veio então não somente a preencher essa lacuna como também transformou-se num dos principais símbolos de uma nova sociedade urbana e industrial.
O mesmo autor afirma, sem entrar em maiores detalhes, que a teoria marxista serviria para explicar os conflitos vividos pelo futebol moderno nos seus primeiros anos, especialmente em relação à adoção ou não do profissionalismo, mas nada que se resumisse à linha "capitalista versus proletariado". Segundo ele:
(...) Quando o futebol expandiu-se durante o século XIX, aconteceram batalhas hegemônicas dispersas de classe e regionais. O principal conflito ocorreu dentro das classes médias, divididas por região e sobre a questão do profissionalismo (Mason, 1980, p.69-81). No sul, o caráter amador da FA e o elitismo geral predominaram, simbolizados pelo Corinthians Football Club que se negou a acreditar que cavalheiros cometessem faltas e assim recusaram os pênaltis (Mason, 1989a, p.147). No norte e na região central da Inglaterra, as classes médias profissionais, os industriais e a pequena burguesia controlavam a maioria dos clubes bem-sucedidos. Aqui, e na Escócia industrial, o poder do capital prevaleceu. (...) Diretores bem ricos logo fizeram pagamentos por baixo dos panos para os melhores jogadores, principalmente os "professores escoceses" incitados a ir para o sul ensinar aos ingleses os requintes do jogo (p. 19).
Assim sendo, a passagem do futebol das escolas para as fábricas não se refletiu apenas na adoção do profissionalismo, mas também numa mudança de mentalidade em relação ao esporte que deixou de ser tratado apenas como atividade de lazer ligada à melhoria da condição física e mental do indivíduo, sendo agora alçado também à condição de mercadoria.
O futebol transformou-se rapidamente numa das principais válvulas de escape da classe operária das Ilhas Britânicas. De acordo com Agostino (2002), "nas rodas de conversa do operariado masculino inglês apenas dois fatos chamavam a atenção de todos: sexo e esporte2" (p.23). Não foi a toa que Hobsbawn (1987) classificou o futebol como "a religião leiga da classe operária".
Muitos dos times de fábrica, que se desenvolveram naquela época, passaram por um processo de profissionalização, ainda que, em muitos casos, disfarçado. Logo surgiram equipes como o Blackburn Olympic, onde os operários eram contratados muito mais em função da habilidade demonstrada com a bola nos pés do que pela sua eficiência no trabalho nas minas de carvão3. Com isso, surgiu a figura do "operário-jogador", assunto do qual trataremos mais adiante.
Essa verdadeira febre de bola vivida na Inglaterra a partir da segunda metade do século XIX não tardou para que se espalhasse pelos mais diversos cantos do mundo, encontrando no continente americano um de seus campos mais férteis. Vejamos então, quais os fatores que fizeram com que o futebol ao aportar na América Latina tivesse uma aceitação tão grande, vindo mesmo a ganhar ares de religião em diversos países.
O foot-ball aporta na América LatinaApesar de, historicamente, em grande parte, terem sido colonizadas por portugueses e espanhóis, podemos observar nas sociedades latino-americanas a predominância, exceção feita a algumas nações caribenhas e à Venezuela4, de uma prática esportiva implementada pelos ingleses na virada do século XIX para o XX. Estamos nos referindo ao futebol, que, de apenas mais um símbolo de dominação estrangeira passou em diversos países a se constituir num dos mais importantes elementos formadores de identidades nacionais.
Após a sua introdução, não tardou para que este esporte rompesse o círculo inicial representado pelos clubes ligados predominantemente à colônia britânica, ou então, aos membros da aristocracia local. Segundo Pereira (2000), o futebol aparecia naquela época como "uma celebração da identidade bretã" (p.27). A força com a qual essa modalidade se espalhou por boa parte do planeta deu-se de uma forma tão impressionante que, Mascarenhas (2002), afirma ser esse esporte "o mais duradouro, bem sucedido e disseminado produto de exportação da sisuda Inglaterra vitoriana".
Na passagem do século XIX para o século XX, a Inglaterra ainda despontava como a principal potência marítima, colonial, comercial e industrial do planeta. A expansão da rede capitalista somada ao surto desenvolvimentista vivido por alguns países latino-americanos, especialmente Argentina e Uruguai, fez com que um intenso intercâmbio comercial, aliado a vultosos investimentos em obras de infra-estrutura e serviços públicos, notadamente na ampliação da malha ferroviária,5 atraíssem capitais e cidadãos ingleses (operários, professores, técnicos de ferrovias, comerciantes etc.) que passaram a funcionar como os grandes agentes disseminadores da modernidade, sendo o futebol um de seus mais importantes elementos6.
As atividades relacionadas à exploração mineral e ao comércio despontavam entre aquelas que mais despertavam interesse dos capitais ingleses. Não por acaso, as cidades portuárias (Buenos Aires7, Montevidéu, Valparaíso, Rio de Janeiro, Rio Grande8 etc.) e mineiras (Coquimbo, Iquique, Pachuca9 etc.) consolidaram-se como alguns dos mais importantes centros pioneiros do futebol na América Latina.
No Brasil, a data oficial de implantação do futebol remonta a 1894, por obra de Charles Miller10. Entretanto, existem relatos de partidas realizadas por marinheiros ingleses na Praia do Russel11, em 1874, e, em 1878, em frente à residência da Princesa Isabel12 (UNZELTE, 2002, p.20-21).
Apesar da existência de divergências em relação à paternidade do futebol no nosso país13, uma coisa é certa: após cada partida realizada, apesar de toda uma sensação inicial de estranheza em relação àquele curioso esporte trazido das Ilhas Britânicas, a prática do foot-ball rapidamente incorporava-se aos hábitos da nossa aristocracia, ávida por tudo aquilo que representasse a reprodução nos trópicos de um modo de vida moderno, refinado, europeu.
Entretanto, da mesma maneira que o novo esporte caiu no gosto da elite, ele também chamou a atenção das camadas menos favorecidas da nossa população. Era fato comum a presença nos barrancos localizados ao redor das primeiras canchas de uma pequena multidão de curiosos a assistir a exibição de um grupo de vinte e dois bem nascidos jovens, divididos em dois teams de onze, disputando a atenção de uma platéia composta por moças e rapazes, elegantemente trajados, das mais distintas famílias locais.
Logo o entusiasmo tomou conta das classes populares que rapidamente começaram a procurar os terrenos baldios, improvisando marcações, balizas e adaptando as regras do jogo às condições do terreno. Surgia dessa maneira uma das mais importantes instituições do futebol: a pelada, mais um reflexo da imensa capacidade de improvisação que caracteriza o povo brasileiro.
Assim como na Inglaterra, aqui no Brasil, o ambiente fabril constituiu-se num dos mais importantes ambientes de disseminação do futebol nos seus primeiros anos. Procuraremos a partir de agora, mostrar de que forma a criação de times ligados às fábricas influenciou no desenvolvimento dessa prática desportiva e das relações patrão-empregado no nosso país. Para tal, estudaremos mais a fundo o caso emblemático do Bangu Atlético Clube.
O Bangu e o futebol proletárioNo dia 8 de março de 1893 foi inaugurada a Companhia Progresso Industrial do Brasil, fábrica de tecidos de capital português, no distante e até então praticamente despovoado arrabalde de Bangu. Para tocar o novo empreendimento, foram contratados técnicos e funcionários de diversas nacionalidades, principalmente ingleses. A escolha de Bangu para sediar uma indústria têxtil se deveu ao fato daquela parte da cidade apresentar fartos recursos hídricos, com um grande número de cachoeiras e nascentes, pois "a água era fundamental em seis das oito etapas do processo têxtil" (ASSAF, 2001, p.13).
Não tardou para que os técnicos ingleses que trabalhavam na fábrica tratassem de se organizar em torno da formação de um clube no qual pudessem se dedicar à prática desportiva durante os momentos de lazer14. Após algumas tentativas frustradas, finalmente, em 17 de abril de 1904, contando com o apoio dos diretores da fábrica, iniciava as suas atividades o The Bangu Athletic Club15, inicialmente voltado à organização de jogos de football, cricket e lawn tennis (HAMILTON, 2001, p.69), que, ao contrário de outros clubes ingleses da cidade, como o Paysandu, não restringia o ingresso de elementos de fora da comunidade britânica16.
Entretanto, o novo clube não apresentava um caráter tão democrático quanto parece, já que a idéia inicial era a de congregar apenas os trabalhadores especializados de origem britânica que ocupavam cargos de chefia. A abertura a uma gama maior de associados aconteceu devido a uma exigência por parte da direção da fábrica para formalizar o seu apoio à nova agremiação. Segundo Pereira (2000), o próprio valor da mensalidade - menos da metade daquele cobrado pelo Fluminense - facilitava o ingresso de funcionários menos qualificados, como era de interesse dos diretores da companhia17 (p.32-33).
A esse respeito Caldas (1994) escreveu o seguinte:
Ainda que fundado por altos funcionários ingleses da Cia. Progresso Industrial do Brasil, o Bangu, pela própria condição geográfica, sempre teve tendências proletárias. Localizado na periferia distante, num bairro proletário, a Cia. Progresso iria estimular o futebol entre seus executivos como forma de lazer. Mas, como formar dois times se o número de funcionários mais graduados e interessados neste esporte não chegava a tanto? A alternativa seria a de aceitar operários para completar as duas esquadras. O critério de escolha, para isso, obedecia a algumas exigências administrativas na empresa, tais como: desempenho profissional, o tempo de serviço e o comportamento pessoal. Surgiria, assim, o primeiro time de futebol no Brasil não inteiramente elitizado. Mas, como se vê, por questões meramente circunstanciais. Desse contexto surgiria, mais tarde, o time proletário do Bangu (p.42-43).
Corroborando com o texto, a localização geográfica de Bangu, muito distante das demais porções da cidade nas quais a prática do futebol se desenvolvia, gerou um isolamento dos jogadores bangüenses em relação aos seus colegas futebolistas (ingleses e brasileiros) dos clubes das zonas sul e norte que, muitas vezes, se recusavam a fazer a penosa viagem de trem em direção ao bairro18. Isso tornava necessária a formação de pelo menos dois teams dentro do próprio clube para que os seus associados pudessem se dedicar à prática futebolística. Esse fato, aliado à relativa abertura existente no interior do clube, proporcionou que um número cada vez maior de brasileiros tomasse gosto pelo esporte. Sendo assim, não tardou para que, em 1905, em meio a uma equipe composta por cinco ingleses, três italianos e dois portugueses (MÁRIO FILHO, 2003, p.32) surgisse a figura do primeiro negro a atuar em um time de futebol no Brasil. Seu nome, Francisco Carregal (Foto 1) 19.
Foto 1: Francisco Carregal (sentado à esquerda) e parte do time do Bangu de 1905.
Fonte: O Malho, 5 de agosto de 1905 apud Pereira, 2000, p. 68.Como não poderia deixar de ser, o Bangu pagou um preço bastante alto pelo seu pioneirismo. Logo o clube tornou-se num dos principais alvos por parte da arbitragem e de torcedores (inclusive negros!) dos grandes times da época. É o que podemos constatar a partir do relato de Mário Filho (2003):
Era sempre bom, mesmo para um clube de fábrica, ter mais brancos do que pretos no time. Os pretos muito visados, quase não podendo fazer nada em campo. Tendo de jogar um futebol muito limpo, muito decente, respeitando os brancos.
Quando um preto metia o pé num branco era sururu na certa. Todo mundo achando que o preto devia ser posto para fora de campo. A torcida dos clubes brancos, muito maior. O Bangu vinha jogar com um Fluminense, com um Botafogo, com um Flamengo ou com um América, não trazia quase ninguém: o time, meia dúzia de torcedores.
Os torcedores do Bangu perdiam-se na geral, na arquibancada, nem abriam a boca. Os pretos que se portassem muito direitinho, senão apanhavam. Até de outros pretos, os pretos da geral, que torciam pelo grande clube, que vinham logo ofendendo com um 'negro sujo' (p.88-89).
As perseguições sofridas pela equipe da zona oeste serviram para reforçar ainda mais os laços que uniam o clube aos moradores do bairro e operários da fábrica. Laços esses que se faziam mais fortes ainda quando o Bangu tinha o mando de campo contra os grandes clubes aristocráticos. De acordo com o mesmo Mário Filho:
As coisas mudavam, é fato, lá em cima, jogo em Bangu. Aí o Bangu lamentava não ter mais pretos no time. Os pretos metendo o pé, tomando a bola do branco na força bruta. Podia ser do Fluminense, do Botafogo, do América, do Flamengo. Quem mandava lá em cima era o Bangu.
Por mais gente que o clube levasse com ele, para garantir o time, não adiantava. Lá em cima havia sempre mais gente do Bangu. Gente que ia para a geral, para a arquibancada, disposta a tudo. Invertiam-se os papéis: o time de branco é que não podia fazer nada (p.89).
Fatos como esses fizeram com que o novo clube conquistasse a simpatia dos funcionários da fábrica de tecidos e dos moradores do bairro, criando uma forte identidade entre eles. A impressão que se tinha ao chegar a Bangu era de que clube e fábrica pareciam compor um único conjunto (Foto 2):
Foto 2: O campo do Bangu com a fábrica ao fundo. Lazer e trabalho se misturam.
Fonte: Alured Bell, The Beautiful Rio de Janeiro, Londres: W. Heinemann, 1914, p.182 apud Pereira, 2000, p. 259.Casos como o do Bangu se repetiram em outros pontos do planeta. A partir de agora, nos dedicaremos ao estudo das reações contrárias ao futebol (especialmente entre os intelectuais e no interior do movimento operário); às razões que levaram à criação e desenvolvimento das equipes fabris; o uso do futebol como veículo de propaganda do nome e produtos das fábricas; e o surgimento da figura do "operário-jogador". É o que veremos a seguir.
Os inimigos da bolaEngana-se quem pensa que o futebol tenha sido recebido de braços abertos por toda a nossa população. Uma parcela considerável da sociedade, tanto no meio intelectual quanto no político, posicionou-se, sob diversos argumentos, contrária à novidade recém-chegada das Ilhas Britânicas. Debates acalorados entre defensores e opositores do esporte tomaram conta das páginas dos principais jornais da época.
Escritores como Afrânio Peixoto e, principalmente, Coelho Neto alardeavam aos quatro cantos as vantagens da prática do foot-ball como uma forma de curar os males sociais do país a partir da disciplina e do desenvolvimento do espírito de grupo ensinados pelo novo esporte em oposição à tradição individualista dos povos latinos. Segundo Pereira (2000), para os seus primeiros defensores, o futebol poderia ser caracterizado como "o grande elemento de regeneração nacional" (p.211). Tais argumentos iam de encontro às teorias eugênicas que tomavam corpo no país naquele momento.
Em contrapartida, não foram poucas as reações contrárias à crescente e rápida popularização do futebol no país. Manifestações que partiam dos mais diversos cantos do Brasil.
Da distante cidade de Palmeira dos Índios, estado de Alagoas, o ainda pouco conhecido escritor Graciliano Ramos, em artigo publicado no ano de 1921, mostrava toda a sua revolta contra a "invasão" do esporte inglês em terras brasileiras, especialmente no Nordeste20. Segundo ele, o futebol jamais se tornaria popular em terras nordestinas pelos seguintes motivos:
"...somos, em geral, franzinos, mirrados, fraquinhos, de uma pobreza de músculos lastimável. (...) fisicamente falando, somos uma verdadeira miséria. Moles, bambos, murchos, tristes - uma lástima! Pálpebras caídas, beiços caídos, braços caídos, um caimento generalizado que faz de nós um ser desengonçado, bisonho, indolente, com ar de quem repete, desenxabido e encolhido, a frase pulha que se tornou popular: Me deixa" (RAMOS, 1921 apud SOARES & LOVISOLO, 2001, p.125) 21.
O texto acima, ao pintar um quadro tão negativo a respeito do brasileiro revela um claro complexo de inferioridade da nossa classe intelectual em relação a outras nações. Enquanto Coelho Neto via na prática desportiva uma forma de nos aproximarmos do nível dos povos mais adiantados, Ramos, tinha um ponto de vista contrário, com o futebol servindo como mais uma prova da superioridade européia em relação ao nosso "lastimável" povo. Mal sabiam eles que algumas décadas depois, este mesmo esporte que, segundo o próprio Graciliano Ramos previra, seria apenas fogo-de-palha, uma moda passageira, viria a tornar o nosso país respeitado em todo o planeta, inclusive na Inglaterra. Entretanto, ninguém fez uma campanha tão feroz contrária ao futebol do que o escritor Lima Barreto, que classificava o futebol como um fator de dissensão. Sua aversão era tamanha que o levou a comandar a criação, em 1919, de uma "Liga Contra o Foot-ball", na qual alardeava os malefícios trazidos pela prática do jogo da bola (pernas quebradas, brigas, mortes etc) 22.
Segundo a interpretação de Pereira, o ódio de Lima Barreto teria a sua origem em questões sociais e raciais. Os grandes clubes, para ele, seriam dirigidos pelos descendentes dos antigos senhores de escravos. O caráter elitista dessas agremiações reforçaria ainda mais a distinção social no país. Vale lembrar que, naquela época, o acesso dos futebolistas negros aos grandes clubes ainda era bastante restrito, culminando com o pedido formal por parte do governo brasileiro para que estes atletas não fossem levados para representar a Seleção Brasileira no Campeonato Sul-Americano a ser disputado na Argentina, em 192123 (SUSSEKIND, 1996, p.17).
A popularização do futebol entre a classe trabalhadora nas primeiras décadas do século passado foi vista com extrema desconfiança pelas lideranças sindicais da época, formadas principalmente por militantes anarquistas e comunistas, que viam na prática futebolística, assim como na dança e no carnaval, formas de alienação patrocinadas pelos donos das fábricas com o objetivo de desviar o foco de atenção do proletariado em relação à causa operária.
O uso do futebol como estratégia de manipulação da massa trabalhadora elaborada pelos patrões e a passividade do operariado nacional, especialmente do carioca, eram veementemente criticados por anarquistas e comunistas, provenientes na sua maioria do continente europeu, dotados de uma consciência de classe totalmente diferente daquela do proletariado local24. Existe uma relação direta entre o pensamento desses grupos com o de Lima Barreto, que via no futebol um grande elemento de perpetuação do domínio exercido no passado pelos senhores de escravos, figura essa, agora substituída pela dos donos das fábricas.
Entretanto, a partir do final da década de 1910, houve uma mudança de posição, especialmente dos anarquistas em relação ao futebol25. Ao perceberem que, ao incentivar a prática esportiva, poderiam também atrair para as suas reuniões os aficionados do jogo da bola, tornaram-se comuns os eventos que, tendo como objetivo principal a divulgação da doutrina libertária, utilizavam como chamariz partidas de futebol entre times operários, como foi o caso do festival promovido na Quinta da Boa Vista26, em 1919 (Foto 3).
Foto 3: Festival operário de 1919: o futebol como estratégia de atração da militância libertária.
Fonte: O Malho, 21 de junho de 1919 apud Pereira, 2000, p. 274.Compete ressaltar que a Foto mostrada reflete exatamente a intenção dos promotores do encontro. Vale reparar que nela, os jogadores dos dois times estão misturados ao público, com o claro intuito de simbolizar a igualdade entre todos os componentes do operariado carioca. A estratégia sindicalista é assim descrita por Pereira:
Mostrando-se capaz de construir entre os trabalhadores da cidade uma sólida articulação, o futebol era utilizado por sindicalistas e militantes libertários como forma de aproximar os trabalhadores pouco afeitos às discussões políticas de seu movimento, transformando-se, assim, em seu aliado potencial na tarefa de formar no operariado carioca a consciência que desejavam (p.275).
Tal estratégia no entanto não surtiu o efeito desejado, pois, o que a classe proletária realmente queria era utilizar o futebol como um meio de distração, pouco interessando a ela a discussão da causa operária. O que os anarquistas e comunistas fizeram, na verdade, foi tentar, assim como os próprios patrões, utilizar o futebol como um veículo para disciplinar e controlar o operariado.
Com a crescente proletarização do futebol, não tardou para que aqueles atletas de maior destaque conseguissem, dentro do próprio ambiente de trabalho, uma série de regalias anteriormente inimagináveis, originando a formação de uma "elite operária do futebol" Caldas (1994), assunto sobre o qual falaremos no seguinte item.
O operário-jogador: a elite proletária do futebolA popularização do futebol no ambiente fabril trouxe consigo uma modificação nas relações entre patrões e empregados. Os donos das fábricas logo perceberam que o sucesso das equipes que levavam o nome das empresas27, servia como um excelente veículo de divulgação e popularização do nome das fábricas e de seus produtos28. Dessa forma, o apoio aos grêmios que, num primeiro instante, visava incentivar o lazer entre o operariado como estratégia de disciplinarização e controle de seus funcionários, além de uma forma de incentivar o aumento da produção, passou a apresentar uma faceta muito mais profissional, na qual, muitas vezes, um operário era contratado muito mais devido à sua habilidade com a bola nos pés do que pela capacidade com a qual operava uma máquina ou manipulava uma ferramenta. Surgia então a figura do operário-jogador.
Aqueles trabalhadores que conseguiam se destacar a ponto de fazer parte do primeiro time da fábrica, passaram então a constituir uma espécie de elite operária, pois, começaram a desfrutar de uma série de privilégios até então inimagináveis, tais como: transferência para um serviço mais leve, dispensas mais cedo do trabalho para poder treinar, maior facilidade de ascensão dentro da empresa, recebimento de prêmios por vitória (os populares "bichos") etc. Dessa maneira, passou a ocorrer aquilo que Antunes (1994) descreveu como uma valorização do "capital esportivo" dos operários no mercado de trabalho, pois entre contratar um bom futebolista ou um bom operário a preferência sempre recaía sobre o primeiro. É o que podemos constatar a partir da leitura do seguinte trecho do clássico O Negro no Futebol Brasileiro, escrito por Mario Filho (2003):
Operário que jogasse bem futebol, que garantisse um lugar no primeiro time, ia logo para a sala do pano. Trabalho mais leve. O operário-jogador, no dia do treino, recebia um ticket. Para apresentar no portão, para poder sair sem perder hora de trabalho. O campo era um prolongamento da sala do pano, quem entrava na sala do pano só via jogador do primeiro time dobrando fazenda. Devagar, para não se cansar. Reservando as suas energias para o treino. (...) E podia ser ainda melhor se continuasse a merecer a confiança da fábrica, do Bangu. Havia o escritório, o trabalho mais suave do que na sala do pano. E o ordenado maior (pp.84-89).
Talvez o exemplo de Garrincha seja aquele que simbolize melhor a figura do operário-jogador, ou seja, aquela pessoa que não precisa apresentar a menor vocação para trabalhar como operário para permanecer no emprego, bastando apenas saber jogar bola:
Contratado aos quatorze anos para trabalhar na fábrica de tecidos de Pau Grande, sua terra natal, logo revelou-se um péssimo funcionário, "candidato ao título de pior operário que passara pela América Fabril" (CASTRO, 1995, p.35): faltava demais, chegava atrasado e, muitas vezes, deixava o seu serviço de varredor na seção de algodão para tirar sonecas dentro das enormes caixas armazenadas no porão. Mesmo assim, no ano seguinte, foi promovido a carregador de equipamento na seção de fio. Suas indisciplinas eram motivo mais do que justo para culminar em demissão. Isso só não acontecia devido à proteção dada por seu Boboco, um dos chefes de seção da fábrica e presidente do S.C. Pau Grande. Entretanto, seus constantes deslizes, tornaram a situação insustentável, e Garrincha acabou sendo demitido. Porém, não tardou para que o seu talento como jogador falasse mais alto e ele fosse recontratado. Depois de algum tempo, lá estava ele na famosa seção de pano, onde o seu trabalho limitava-se apenas a entregar os tecidos para a revisão. Isso tudo com a concordância da diretoria e dos funcionários da fábrica que não podiam ficar sem o seu jogador mais importante.
O fortalecimento da figura do operário-jogador proporcionou que o futebol se transformasse numa segunda fonte de renda para diversos trabalhadores, além de agente de mobilidade social no interior do ambiente fabril. Enquanto que, muitos operários, utilizavam os times de fábrica como uma espécie de vitrine em busca uma vaga em um dos grande clube, outros, como o legendário Domingos da Guia, buscavam através do futebol a garantia de uma boa colocação para quando tivessem que parar de jogar29. Para muitos, a habilidade com a bola nos pés representava a chance de se garantir de um bom emprego no futuro.
Vejamos agora, quais os verdadeiros laços que uniam os associados dos grêmios ligados às fábricas, incluídos aí os operários-jogadores e torcedores destes times e de que maneira eles se identificavam uns com os outros.
Identidade operária e consciência de classeDurante muito tempo, os militantes libertários viram na prática desportiva um forte elemento de alienação e fator de dissensão ao colocar os trabalhadores uns contra os outros. Já para a classe dos patrões, o futebol aparecia, pelo contrário, como um elemento aglutinador, e, mais do que isso, como estratégia de dominação e controle dos seus empregados, como veículo de divulgação dos produtos e da imagem da fábrica, além de uma forma de disfarçar as péssimas condições de trabalho por eles oferecidas.
E os trabalhadores, qual era a sua posição nessa história? O que ocorria na verdade, é que os empregados precisavam que os patrões estivessem ligados ao clube, pois somente com o apoio formal da direção da fábrica (cessão de terreno para a construção do campo e da sede, ajuda na compra de bolas de futebol e material esportivo etc.) é que essas instituições conseguiriam se desenvolver. Por isso, era bastante comum oferecer ao dono ou ao diretor da fábrica o título de "presidente de honra" do clube.
Entretanto, apesar das freqüentes acusações de manipulação dessas associações por parte dos patrões, o que realmente muitas vezes acontecia, o sentimento reinante entre os componentes dessas instituições era o do espírito de classe (sentir-se operário e jogador), que funcionava dessa forma como um agente construtor de uma identidade própria, independente da ação dos patrões e dos sindicatos30.
As torcidas dos times de fábrica como Andaraí, Bangu, Carioca e Mavílis eram consideradas, como as mais temidas do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX (PEREIRA, 2000). Isso porque, naquela época (embate amadorismo x profissionalismo), enquanto que os times tradicionais (Fluminense, Botafogo, América e Flamengo) representavam a camada mais rica da nossa população, com o futebol sendo encarado como um passatempo praticado por moços de boas famílias, os times de fábrica e de subúrbio (incluídos aí Vasco da Gama e São Cristóvão) marcavam uma nova realidade, na qual o jogo, praticado por membros das camadas menos favorecidas, serviria como uma chance de vencer a miséria a partir da adoção de um profissionalismo disfarçado ou "amadorismo marrom", uma possibilidade de ascensão social. A bola passou a ser encarada como um verdadeiro prato de comida. A disputa no campo de jogo passou a representar também uma luta pela própria sobrevivência. Os simpatizantes dos times de fábrica não iam aos campos para gritar o nome da empresa e sim para torcer pelos companheiros operários com os quais eles se identificavam.
Sendo assim, não foram poucos os registros de confusões acontecidas durante os embates envolvendo essas equipes. Bastava um jogador de time de fábrica sofrer algum tipo de agressão de um adversário, ou mesmo uma marcação polêmica da arbitragem em favor da equipe adversária para que o caos se instalasse. Era a senha para que a torcida entrasse em campo e armasse um verdadeiro "sururu" (para usar a linguagem da época), com o intuito de defender o seu colega de time e de ofício. Tal fanatismo, jamais visto anteriormente em torcida de clube nenhum, servia para reforçar ainda mais os laços de identidade e de união entre esses trabalhadores, algo que fugia ao controle dos patrões e dos sindicatos.
ConclusãoAo longo dos anos, os times de fábrica tiveram uma importância que transcendeu em muito à sua função inicial de passatempo do operariado nacional servindo como um marco inicial do processo de popularização do futebol no Brasil. Inicialmente fundados com o apoio dos patrões como um mecanismo de controle dos seus funcionários, estes times logo se caracterizariam pelo seu perfil democrático, que contrastava com o padrão imposto pela sociedade altamente segregacionista da época.
Graças a equipes como o Bangu Atlético Clube, teve início o processo de proletarização do futebol brasileiro com a aceitação de membros das camadas sociais menos favorecidas inclusive a população negra, que passaram a ter no futebol a partir do surgimento da figura do operário-jogador (precursor do atual atleta profissional) uma chance de ascensão social e, conseqüentemente, de vencer a miséria.
Os grêmios esportivos das fábricas conseguiram criar uma identidade própria, independente dos patrões (com os quais tinham uma relação meramente de interesse econômico) e da ação dos sindicalistas, pois o verdadeiro sentimento que os unia residia no fato deles serem operários e amantes do futebol.
Assim sendo, podemos afirmar que, a partir do surgimento das equipes fabris, teve início o processo que culminaria com o título carioca de 1923, conquistado pelo Vasco da Gama, onde, pela primeira vez, uma equipe composta na sua maioria por negros, brancos pobres e analfabetos triunfaria frente aos "moços finos de boas famílias" de Fluminense, Flamengo, Botafogo e América rompendo os limites étnicos e sociais impostos desde a chegada do jogo da bola ao nosso país31. Graças ao processo de proletarização iniciado pelos times de fábrica, o esporte deixou de ser algo branco, aristocrático, fleumático para se tornar mestiço, popular, vibrante, marcando o início de um futebol genuinamente brasileiro.
Notas
Esse incidente, conhecido como "A Guerra do Futebol" teve início após o suicídio de uma jovem salvadorenha, inconformada com o tratamento dispensado pelos torcedores hondurenhos à seleção de seu país, em jogo válido pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de 1970. Na partida de volta, em San Salvador, milhares de aficionados foram ao estádio com retratos da torcedora, àquela altura elevada à condição de mártir. A vitória de El Salvador, responsável pela realização de um jogo extra na Cidade do México, gerou uma onda de violência contra os imigrantes salvadorenhos residentes em Honduras. Após novo triunfo salvadorenho e a classificação da equipe para o Mundial do México, as hostilidades continuaram, culminando com o bombardeio aéreo a quatro cidades hondurenhas e a resposta imediata com ataques aéreos e de blindados. Esse incidente, também conhecido como Guerra das Cem Horas deixou um saldo de quatro mil mortos e milhares de camponeses desabrigados (AGOSTINO, 2002, pp. 192-194).
Essa paixão cresceu de forma tão rápida que só para se ter uma idéia, a final da FA Cup de 1901 levou ao estádio Crystall Pallace, em Londres, um público de 110.000 espectadores, composto na sua grande maioria por operários (op.cit., p.23).
A esse respeito, ver Mascarenhas (2001).
Mascarenhas (2002), em artigo publicado no Jornal do Brasil, afirma que o fato do beisebol ser o esporte mais popular em nações como Cuba, República Dominicana e Venezuela se deve ao fato de que a transição da hegemonia inglesa para a norte-americana se dá após o término da Iª Guerra Mundial, quando o futebol ainda não se encontrava suficientemente consolidado nessas nações.
Sobre esse assunto, Buchmann (2002) listou mais de noventa times brasileiros (Ferroviária de Araraquara, Ferroviário do Ceará, Noroeste de Bauru etc.) que possuem algum tipo de ligação com a expansão da malha ferroviária, espalhados por todo o país, de Uruguaiana a Manaus. No restante da América do Sul, podemos destacar as equipes do Peñarol (Uruguai) e Rosário Central (Argentina), fundadas graças ao desenvolvimento da rede ferroviária local.
No cidade de Buenos Aires a maior parte dos primeiros times de futebol surgiu no interior dos estabelecimentos de ensino ligados à colônia britânica, como foi o caso do time do colégio St. Andrews, primeiro campeão argentino e do famoso Alumni, da Buenos Aires English High School (MASCARENHAS, 2002, pp.42-43).
Mascarenhas (2002) calcula que em 1895, dos 600.000 habitantes de Buenos Aires, aproximadamente 40.000 fossem ingleses. Outras cidades com intensa movimentação portuária e com significativas colônias britânicas como Montevidéu e Valparaíso também assistiram ao desenvolvimento precoce da prática futebolística (pp.42-43).
Não foi por coincidência que o clube de futebol mais antigo em atividade no Brasil, o Sport Club Rio Grande, fundado a 19 de julho de 1900, date da época na qual a cidade de Rio Grande era dotada do porto mais importante e da mais numerosa colônia inglesa do Rio Grande do Sul.
De acordo com informações colhidas no sítio www.senorgol.nu/pachuca/pachucahistoria.htm, o Pachuca Athletic Club (1900), mais antigo time de futebol mexicano, foi fundado por mineiros ingleses da companhia Real Del Monte.
Vale lembrar que Charles Miller apesar de paulistano de nascimento era filho de britânicos e a implantação do futebol no nosso país se deu quando da sua volta dos estudos na Inglaterra, onde tomara contato com o até então desconhecido (no Brasil) foot-ball.
Também chamada por Aquino (2002) de praia da Glória. Corresponde ao local onde atualmente se encontra o Hotel Glória.
Além dessas duas partidas, Aquino (2002) faz referência a relatos de partidas disputadas em 1872 no Colégio São Luís, em Itu.
Para todos os efeitos consideramos Charles Miller como o verdadeiro introdutor do futebol no Brasil pelo fato dele ter sido o primeiro a chegar ao nosso país com um livro contendo as famosas dezessete regras do chamado football association, criado em 1863, além de exercer um papel de missionário da bola, organizando times, partidas, convencendo os amigos acerca dos benefícios desse esporte, dando início à prática contínua do futebol, contribuindo decisivamente para a sua consolidação no país.
Desde o final do século XIX o futebol era praticado pela comunidade inglesa radicada em Bangu. Gerson (2000) faz referência a esporádicos encontros futebolísticos disputados com bolas trazidas da Europa pelos próprios técnicos da fábrica, sendo um deles, William French, o seu primeiro diretor executivo (p.404). Molinari (1999) chega mesmo a afirmar que o verdadeiro "pai" do futebol brasileiro teria sido o escocês Thomas Donohoe, que, em 1894, organizara o primeiro match com seus compatriotas da Companhia Progresso Industrial.
De acordo com Antunes (1994), o Bangu não foi o primeiro time de fábrica a surgir no Brasil. Tal primazia caberia ao Votorantim Athletic Club, fundado em 1902, fruto da iniciativa de técnicos e operários ingleses Fábrica de Tecidos Votorantim, localizada na cidade de Sorocaba (p.104).
Podemos comprovar a nossa afirmação a partir do estudo da obra de Assaf (2001), na qual constam os nomes presentes na ata de fundação do The Bangu Athletic Club. Nela, nem todos os seus fundadores eram ingleses. Misturado a nomes como Andrew Procter, William Hellowell e John Stark havia também um José Soares que, se não fosse brasileiro, deveria ao menos ser português (p. 77).
Mesmo com essa relativa abertura, ao analisarmos a escalação da equipe que disputou a primeira partida da história do clube, realizada contra os britânicos do Rio Cricket Athletic & Association, de Niterói, constatamos a existência de apenas dois nomes "brasileiros" (Augusto Alvarenga e Luis Gaspar) e de um "afrancesado" (Frederich Jacques). Os outros oito, com certeza, eram de origem britânica.
De acordo com Molinari (1999), naquela época, a viagem de trem da Central do Brasil até Bangu tinha duração superior a duas horas.
O papel de pioneiro em relação à aceitação de futebolistas negros em seus quadros é equivocadamente atribuído ao Vasco da Gama. O departamento de futebol do clube só veio a ser criado em 1915, ou seja, dez anos depois de Francisco Carregal ter estreado pela equipe da zona oeste. Outros times de fábrica, como foi o caso do Andaraí a partir da década de 1910, também escalavam jogadores negros em seus quadros.
Para Graciliano Ramos, os esportes genuinamente brasileiros tais como a cavalhada, o cambapé, a rasteira e o jogo de palha de milho poderiam perfeitamente substituir o futebol no gosto popular (PEREIRA, 2000, p.305).
Esse retrato altamente preconceituoso elaborado a respeito do nosso povo acabou sendo por ele mesmo incorporado e, como visto, por parte de nossos intelectuais, vindo a se refletir num complexo de inferioridade que o brasileiro possui até hoje em relação a outros povos, em especial aos dos países desenvolvidos. Não é nada incomum encontrarmos pessoas que, como forma de negar essa "inferioridade", existente pelo simples fato de terem nascido no Brasil, evocam suas origens em antepassados estrangeiros que, na maior parte das vezes, elas nem chegaram a conhecer. Era o que Nelson Rodrigues chamava de "complexo de vira-latas".
Irônica e tragicamente, os argumentos de Lima Barreto ganharam ainda mais força após a morte, em 1922, de Mano, filho mais velho de Coelho Neto, após um acidente em campo durante a disputa de uma partida entre Fluminense e São Cristóvão. Desde 1916, a Academia Nacional de Medicina estudava a hipótese da proibição do jogo para menores de 18 anos. Em 1919, a prática do futebol foi oficialmente vetada no Colégio Pedro II (PEREIRA, 2000, p.219-221).
Tal proibição partira do presidente Epitácio Pessoa, sob a alegação de que poderia haver um desgaste da imagem do Brasil, cujos jogadores foram, um ano antes, retratados numa charge publicada por um jornal portenho, como macaquitos, devido à presença de atletas negros na nossa Seleção (AGOSTINO, 2002, p.42; JORNAL DA TARDE, 5 de julho de 2002). Tal denominação, de cunho pejorativo, é até hoje utilizada por
Na Europa, assim como no Brasil a adoção do futebol também encontrou forte resistência no interior do movimento socialista, onde o esporte era encarado como "mera expressão da manipulação consumista e alienante da burguesia" (AGOSTINO, 2000, p.25).
Tal mudança de posição em relação ao futebol não se fez notar apenas no Rio de Janeiro. Na cidade de Santos, ponto de entrada de muitos militantes anarquistas, foi fundado o Libertários F.C. (www.punksunidos.com.ar/textos/49.htm). No entanto, foi na Argentina que estas equipes alcançaram maior popularidade. Times como o Argentinos Juniors, cuja denominação anterior, Mártires de Chicago, fazia uma alusão aos operários enforcados nos Estados Unidos ao lutarem por uma jornada diária de oito horas de trabalho (www.bichopress.com.ar/todop4.htm), Chacaritas Juniors, fundado numa biblioteca libertária; e, Independiente, fruto da iniciativa de funcionários do comércio local que queriam criar uma agremiação sem a interferência dos patrões (AGOSTINO, 2002, p.27), sobrevivem até os dias atuais.
Antiga sede da Corte Imperial Brasileira, transformada posteriormente em área de lazer para a população da cidade do Rio de Janeiro
O Bangu, time operário mais famoso de todos não possuía o mesmo nome da fábrica, que se chamava Cia. Progresso Industrial do Brasil, porém, os produtos por ela vendidos no mercado recebiam o nome de Tecidos Bangu.
Como exemplos de times que adotaram o mesmo nome das fábricas à qual pertenciam, podemos citar o Carioca F.C. (Cia. de Fiação e Tecelagem Carioca), o Confiança Atlético Club (Fábrica de Tecidos Confiança Industrial) e o Botafogo Athletic Club (Fábrica Botafogo) entre outros.
Segundo relato de Pereira, o próprio Domingos da Guia em entrevista concedida em 1967, admitira que o seu início no futebol se dera muito mais por necessidade do que por vontade. Seu interesse maior era o de receber os "bichos" por vitória dados por Guilherme da Silveira, dono da fábrica (p.312). Leite Lopes (1994) relata que o mesmo Domingos só aceitara trocar o Bangu pelo América ao receber a promessa de que trocaria o seu emprego como mata-mosquito (conseguido após ter trabalhado durante algum tempo na Cia. Progresso Industrial) por outro melhor numa serraria. Somente em 1932, ao se transferir para o Vasco é que ele passaria a ser dedicar integralmente ao esporte (p.74).
Um bom exemplo acerca da questão da identidade operária e das redes de relações estabelecidas por esses grupos, diz respeito ao caso do enterro do operário paulista Deodato Morais, em 1918. Sendo ele filiado a diferentes clubes de futebol (o que era comum naquela época), seu funeral foi acompanhado por operários de diversas fábricas, cujos laços de amizade se formaram no interior das agremiações esportivas (PEREIRA, 2000, p.273-274).
Segundo Moreira Junior (1999), a equipe vascaína, campeã carioca de 1923 era composta pelo chofer de táxi Nelson da Conceição, o estivador Nicolino, o pintor de parede Ceci e o motorista de caminhão Bolão, todos negros, além de quatro brancos analfabetos (p.19).
Sites relacionados
www.senorgol.nu/pachuca/pachucahistoria.htm
www.bichopress.com.ar/todop4.htm
www.punksunidos.com.ar/textos/49.htm
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