A ginástica geral e seus tempos-espaços-objetos lúdicos: reflexões introdutórias sobre os espaços da cultura lúdica infantil na escola |
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Faculdade de Americana (FAM) Especialista em Educação e Lazer - Universidade Paris 13 Integrante do Grupo de Pesquisa em Lazer (GPL/FACIS - Unimep) |
Profa. Esp. Débora Alice Machado da Silva debeera@hotmail.com (Brasil) |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 90 - Noviembre de 2005 |
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Introdução
O lúdico em suas múltiplas derivações (jogo, brinquedo, brincadeira, folguedos...) é manifestação, senão exclusiva, fortemente associada ao universo infantil. Este conjunto de expressões de caráter abrangente fazia, outrora, parte de um universo social e cultural mais amplo, que pouco diferenciava crianças e adultos. Segundo Ariès (1981), até o início do século XVII os jogos e as brincadeiras infantis eram os mesmos daqueles dos adultos, visto que predominava nesta época um ideal de criança como sendo um "adulto em miniatura".
É a partir de meados do Século XVIII, reforçado pelos ideais Iluministas, que a criança passa a ser vista e considerada em suas particularidades, agora na perspectiva de um indivíduo raso, inacabado a ser 'preenchido' pelo adulto detentor dos conhecimentos de vida.
Ao mesmo tempo, a supervalorização da racionalidade e do intelecto - decorrente do século das Luzes - em detrimento das atividades corporais, acaba marginalizando determinadas práticas, entre elas as festas, os jogos e outros divertimentos. Estes últimos segundo Ariès (1981), se libertam de um inicial simbolismo religioso (próprio das festas sazonais, cultos e rituais religiosos) perdendo, assim seu caráter comunitário e tornando-se ao mesmo tempo elemento profano e individual. Desta forma, o lúdico passa a ser relegado à criança e a outras parcelas da população, consideradas disponíveis, ociosas e, portanto, capazes de se ocuparem com atividades consideradas fúteis.
Mais tarde, com o Renascimento, os jogos e as brincadeiras são enfocados a partir de suas possibilidades educativas, sendo apropriados pelos sistemas de educação formal e informal como instrumento pedagógico. Ao ganharem esta "utilidade" são considerados como elementos estratégicos dos processos de ensino-aprendizagem, se diferenciando, no entanto, de outras formas lúdicas - menos 'dirigidas' - típicas dos encontros comunitários, das festas, das brincadeiras infantis.
Se, de um lado, historicamente a criança se emancipa e se diferencia do adulto, de outro é imprescindível considerar a influência da cultura adulta (dominante) no universo infantil. Ao considerarmos a criança como indivíduo inacabado, outorgamos ao adulto um poder absoluto "natural" - pois justificado em sua experiência 'completa' de vida - de finalizar este indivíduo considerado 'uma obra inacabada'. É deste contexto, segundo Silva (1999), que emerge a idéia de um adulto detentor de um 'conhecimento' que deve ser incutido na criança, visando preenchê-la em suas ausências e imperfeições, resultantes da "inadequação entre seus poderes e suas necessidades" (CHARLOT, 1983, p.106).
Estes desdobramentos históricos dizem um pouco a respeito da polarização do lúdico naquilo que é considerado próprio à criança e ao adulto e reproduzem, ao mesmo tempo, outras dualidades: trabalho e lazer, atividades sérias e não sérias. Estas diferenciações passam a ser problemáticas quando observamos que a relação criança-adulto é significativamente desigual, fazendo com que a cultura lúdica DA criança tenda, muitas vezes e, em diferentes períodos históricos, a sucumbir àquela produzida PARA criança, segundo ideais e interesses da lógica adulta.
Este preâmbulo nos remete a reflexão sobre o processo pedagógico na Educação Física e as relações que se estabelecem entre professor e alunos nas aulas, em que o lúdico em suas diversificadas manifestações se faz significativamente presente. Daí emergem inevitáveis questionamentos:
Qual o espaço da cultura própria da infância na escola e mais particularmente nas aulas de Educação Física?
Como dialogam - ou não - os conteúdos, a cultura lúdica do adulto e àquelas das crianças na estruturação e desenvolvimento das aulas?
Quando se fala em lúdico, a que perspectiva teórica se refere? Em que medida, o resgate das fontes e correntes teóricas sobre o tema podem contribuir com a reestruturação e re-significação da prática pedagógica?
Para refletir sobre tais questões nos remete-se inicialmente a Snyders (1988) que, se reporta a relação professor-aluno como sendo um encontro entre "parceiros culturais" o que significa, portanto, para o professor, o abandono de seu 'pedestal' de detentor do conhecimento, na busca de reconhecer que, sem renunciar a seu papel pedagógico, ele precisa levar em conta e a sério os alunos, respeitando-os e fazendo-os partilhar da alegria de compreender, agir e progredir em direção a satisfação cultural escolar, numa perspectiva em que o conhecimento é considerado como algo a ser construído coletivamente.
Através dos diálogos pedagógicos que se estabelecem entre estes "parceiros culturais" é que vão sendo estruturados, organizados e traçados os contextos educativos que fazem o processo ensino-aprendizagem evoluir da "curiosidade ingênua" a "curiosidade epistemológica" (FREIRE, 1997).
Sendo a Educação Física uma área do conhecimento bastante vasta, que abarca diversificada gama de elementos da cultura corporal, optamos por delimitar nosso estudo a partir da análise das manifestações do lúdico na Ginástica, para posteriormente, em especial, estabelecer relações com a Ginástica Geral.
A obra do Coletivo de Autores (1992) nos apresenta a ginástica como um dos conteúdos a serem tratados pela EF devendo, no entanto, ser re-significada e re-apropriada na escola. A obra defende o resgate dos modelos ginásticos tradicionais (métodos ginásticos) visando confrontá-los às novas formas gímnicas, possibilitando, assim, aos alunos uma prática corporal que lhes permita atribuir "sentido próprio às suas exercitações ginásticas" (p. 77).
Dentre as diferentes modalidades de ginástica (acrobática, artística, rítmica-desportiva...) acreditamos que a Ginástica Geral se apresenta como possibilidade bastante pertinente para o trato deste conteúdo nas aulas de Educação Física. Seus pilares fundamentais (SOUZA, 1997) - modalidade demonstrativa, de regras bastante flexíveis, de participação irrestrita, pautada pela ludicidade, liberdade de expressão e criatividade - mostram-se mais próximos da realidade escolar e da construção do diálogo cultural anteriormente destacado.
[...] a ginástica geral pode ser reconhecida como o caminho mais apropriado para resgatarmos, para re-criarmos e para re-significarmos a ginástica na escola, numa perspectiva de 'confronto' e síntese e, também numa perspectiva lúdica, criativa e participativa. (AYOUB, 1999, p.137).
Além disso, a Ginástica Geral em sua particularidade é entendida como manifestação da cultura corporal que reúne não só as diferentes interpretações e formas da ginástica, mas também outras formas de expressão do ser humano (SOUZA, 1997) - artes plásticas, artes musicais, experiências de vida, artes cênicas, jogos e brincadeiras - que são fundamentadas em torno dos princípios básicos de formação e capacitação humana. Estes últimos podem ser alcançados na medida que o profissional da área tenha subsídios e crie as condições necessárias para que seu aluno desenvolva uma consciência crítica, tendo noção da individualidade, da identidade, sabendo respeitar a si e aos outros, compreendendo seu papel no grupo, no contexto e na sociedade que integra, interagindo em todos os níveis.
Destaca-se assim a interface lúdico-ginástica, que se amplia na medida que observamos no interior da Ginástica Geral o uso de materiais alternativos diversificados (paraquedas, jornais, bexigas, bastões, revistas...), que são explorados em situações lúdicas, buscando elaborar e/ou resgatar 'formas brinquedos' (tradicionais ou não) que integram o processo de composição coreográfica, além de trazerem à tona elementos da cultura de determinado grupo/ povo.
Tal característica recupera parte do que foi outrora a Ginástica, como nos confirma SOARES (1998) ao considerar que os elementos do núcleo primordial desta prática corporal possuem suas características dominantes localizadas no campo dos divertimentos. Reafirma-se assim a relevância de aprofundarmos o estudo do lúdico no âmbito da ginástica.
É a partir da interface lúdico-ginástica que construímos esta pesquisa, buscando compreender como o resgate das diferentes correntes teóricas que se debruçaram sobre o lúdico, influenciam os usos dos jogos, brinquedos e brincadeiras no processo criativo de construção coreográfica da Ginástica Geral, de forma a preservar o diálogo pedagógico e valorizar a manifestação da cultura lúdica infantil na escola.
O trabalho se caracteriza como investigação que combina pesquisa bibliográfica e de campo, estando ainda em etapa de análise das obras. O estudo de campo pretende, a posteriori, observar e elencar a construção de situações e materiais lúdicos nas aulas de EF que tratam da Ginástica Geral, tendo por objetivo analisá-las à luz das diferentes correntes teóricas que abordam o lúdico (filosófica, psicológica e sócio-cultural), para assim buscar compreender se estas formas de apropriação efetivamente dialogam e valorizam a cultura lúdica DA criança na escola, ou se apenas reforçam e reproduzem uma cultura lúdica produzida PARA criança.
Estas reflexões introdutórias buscam levar ao meio acadêmico o projeto inicial desta pesquisa buscando agregar outros elementos e contribuições que possam enriquecer o desenvolvimento do estudo, ainda em fase inicial.
Referências bibliográficas
ARIÈS, Philipe. A história social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
AYOUB, Eliana. Perspectivas da Ginástica Geral para educação física escolar: imaginando um projeto. In: coletânea: Anais do XI Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, Florianópolis: Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 21, 1999.
CHARLOT, Bernard. A idéia de infância. In: A mistificação pedagógica. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do Ensino da Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
SILVA, Débora A.M. O surgimento do sentimento de infância, o lúdico e a pré-escola. Campinas: 1999. 79p. Monografia (licenciatura) - Universidade Estadual de Campinas.
SNYDERS, Georges. A escola: suas engrenagens. In: A Alegria na Escola. São Paulo: Ed. Manole, 1988.
SOARES, Carmen L. Imagens da educação no corpo: estudo a partir da ginástica francesa do século XIX. Campinas: Autores Associados, 1998.
SOUZA, Elizabeth P.M. de. Ginástica Geral: uma área do conhecimento da Educação Física. Campinas: 1997. 163p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas.
revista
digital · Año 10 · N° 90 | Buenos Aires, Noviembre 2005 |