Videogame e educação física/ciências do esporte: uma abordagem à luz das teorias do virtual Videogames and physical education/sports science: a virtual's theory approach Videogames, educación física y ciencias del deporte: un análisis a luz de la teoría de lo virtual |
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Doutor em Educação - Unicamp - 2001 (Brasil) |
Alfredo Feres Neto alfredo.feres@gmail.com |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 88 - Setiembre de 2005 |
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1. Introdução
O videogame surge em 1958 como um rudimentar jogo eletrônico de tênis, criado por Willy Higinbotham, então funcionário do governo americano. Foi uma invenção isolada, tanto que o autor jamais a patenteou, não tendo, portanto, impacto direto na evolução dos games. Quatro anos mais tarde, Steve Russell, um aluno de pós-graduação em engenharia no MIT (Massachussets Institute of Technology), cria o Spacewar, um jogo que obteve grande impacto e foi visto por milhares de estudantes nos anos seguintes. Este jogo seria rebatizado como Computer Space, em 1970, ano em que 1500 unidades foram comercializadas. Não obstante, devido à sua complexidade, praticamente não obteve lucro, podendo-se dizer que a primeira década do videogame foi um fracasso financeiro (Stahl, 2004).
Os anos 70 foram de intensa produção de videogames, tendo se destacado o surgimento da Atari, em 1972, empresa que iria criar, naqueles anos, jogos que até hoje despertam o interesse de muitos, como o Pac-Man, Space Invaders e o Pong. Uma curiosidade: Steve Jobs, o hoje todo poderoso dono da Apple, trabalhou no desenvolvimento de alguns destes jogos. Na década de 80, conhecida como a "Idade Moderna" dos videogames, surgem a NES (Nintendo Entertainment System) e o seu principal jogo, Super Mario Bros, grande sucesso de então. Porém, é na década de 90, mais precisamente em 1993, que surge o atual "paradigma" de videogame, com jogos em três dimensões, graças ao avanço da informática e da computação gráfica, através do Playstation, que a Sony introduz neste ano no Japão. Atualmente, já está bastante difundido o Playstation II, jogo que lança mão do DVD como suporte, com muito maior capacidade de armazenamento de dados, e, portanto, possibilitando jogos cada vez mais realistas (Stahl, 2004).
Destes tempos "românticos" para cá, muita coisa mudou, tanto no que se refere ao jogo propriamente dito, quanto à sua caracterização como mais um produto da indústria cultural. Muito embora o formato inicial se mantenha vivo, ou seja, aquele em forma de console "plugado" a televisão, como os atuais Playstations 1 e 2, vem chamando a atenção uma nova modalidade que se beneficia da rede mundial de computadores, e que portanto viabiliza o jogo em rede, seja interna, seja externa. No primeiro caso, destacam-se as LANs (Local Area Network, rede local), nas quais podem ser encontrados basicamente duas categorias de jogos. Os mais populares são denominados "first person shooters" (fps), no qual o jogador assume um personagem (como no Counter Strike, de longe o mais popular, em que se pode ser terrorista ou contra-terrorista. Pergunta inevitável: a vida imita a arte ou a arte imita a vida?). Há também os games de estratégia, como o Warcraft (ambientado num universo fantástico) e o "Age of Mithology" (temática histórica). Os jogos on-line com base em rede externa, porém, impressionam pelos números e pela concepção de "obra aberta", ou seja, passível de ser produzida por centenas, ou até milhares, de jogadores em tempo real (Vianna, 2004).
Só nos Estados Unidos, a indústria de videogame acumulou US$ 27 bilhões em 2002, tendo superado a venda doméstica de ingressos para os filmes de Hollywood e se aproximado das vendas de música. Alguns dos dados comerciais mais impressionantes, porém, vêm da Coréia do Sul. Só neste país, existem 20 mil LANs, estabelecimentos que se caracterizam por serem casas de jogos equipadas com computadores de alta performance conectadas em rede e com a internet de banda larga, sendo que 30% de sua população está registrada em jogos on-line. Foi lá que surgiram os primeiros "videogamers" profissionais, com ganhos de até US$ 100 mil ao ano, e grandes campeonatos internacionais, como o World Cyber Games (WCG), torneio anual que reúne atletas de mais de 50 países. Há, inclusive, canais a cabo voltados exclusivamente para este universo (Vianna, 2004).
Não obstante todo este impacto, e considerando ser o videogame um tipo de jogo (e de esporte), ele não tem merecido grande atenção por parte dos estudiosos da área de estudos do lazer - que historicamente, no Brasil, tem sido vinculado a área de Educação Física -, tampouco da temática "Mídia e Esporte", tanto do CBCE - Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte - como da INTERCOM - Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, conforme podemos observar na produção teórica veiculada nos respectivos GTTs (Grupos de Trabalho Temático). Ao mesmo tempo, tendo em vista as colocações do parágrafo acima, não parece difícil argumentar ser o videogame uma nova modalidade esportiva, como a existência de campeonatos internacionais, profissionalização dos jogadores, espetacularização televisiva, entre outras. Penso que estas colocações justificam o presente texto, cujos objetivos principais são realizar uma apreciação das atuais teorias sobre o videogame - que, como será possível demonstrar no decorrer do presente artigo, encontra-se bastante bem organizado enquanto área de estudos em algumas universidades americanas e européias - bem como aproximar algumas destas teorias com a área de Educação Física/Ciências do Esporte.
2. Algumas teorias sobre o videogame2.1. Videogame: uma obra de arte coletiva?
Mencionei, no tópico anterior, os jogos de rede externa (on-line). Eles podem ser caracterizados como comunidades virtuais, cuja interação ocorre em redes interativas, graças às novas possibilidades de televirtualidade atualmente disponíveis. Uma das características mais interessantes é que podemos ser representados simbolicamente por "seres" que habitam, por sua vez, cenografias virtuais compartilháveis, ambos constituindo o que vem sendo chamado de "imagens de síntese"1. Segundo Philippe Quéau (1993), não se trata de algo absolutamente novo: experiências como estas vêm se realizando há muitos anos nos Estados Unidos e no Japão.
"Podemos citar a experiência Habitat, criada por Lucasfilm Games, e Quantum Computer Services, que funcionou de 1985 a 1989, numa rede que interligava milhares de computadores pessoais Commodore 64; ou ainda o Carib Club da Quantum Link, que funciona [desde 1990] com mais de quinze participantes" (Quéau, 1993, p. 95).
O mais popular destes jogos on-line atualmente disponíveis se chama Everquest. Os números impressionam: são cerca de 500 mil assinantes que pagam US$ 12 por mês para poder jogar com pessoas conectadas no mundo todo, sendo que em alguns momentos, jogam em torno de 300 mil ao mesmo tempo. Para o jogo poder se realizar, os jogadores devem se conectar aos computadores-servidores da Sony Online Entertainment (SOE), via internet. Trata-se de um "game-on-line" descendente dos RPGs (Role Playing Games - um bom exemplo e dos mais conhecidos é o Senhor dos Anéis, que depois, como se sabe, viria a ter versões no cinema). Trata-se de um mundo à parte, mais especificamente, o mundo de Norrath, que é dividido em três continentes, onde habitam 13 raças, como os bárbaros, os ogros, os elfos, e até os humanos, que por sua vez se colocam em diferentes classes, como guerreiros, mágicos, druídas etc (Vianna, 2004). Impossível não lembrar do Admirável Mundo Novo, com seus alfas, betas, gamas, deltas e ypslons. Mas, ao contrário do famoso livro de Aldoux Huxley, Everquest é um mundo em construção, característica que vai marcar um processo de virtualização do jogo, do qual falaremos mais adiante. Cada jogador pode ter até oito personagens, ou avatares, sendo possível escolher a que raça ou classe se quer pertencer. Muito embora algumas regras sejam estabelecidas pelos criadores do jogo, outras relativas à convivência são criadas pelos próprios jogadores, o que leva ao entendimento de que "Everquest" é uma obra aberta, uma criação coletiva. Parece-me particularmente interessante a possibilidade que estas comunidades virtuais, especialmente os jogos on-line, nos oferecem na direção de repensarmos os conceitos de artista-criador e do público-consumidor. Há uma certa indefinição de quem é um e de quem é o outro, ou pelo menos, teremos que repensar a figura supostamente passiva deste último.
"Os designers do game inventam o mundo e suas regras. Mas a 'realidade' criada é tão complexa que não podem prever o que os jogadores vão fazer ali dentro e que novas regras de convivência vão criar. O game é realmente uma obra aberta, uma criação coletiva de centenas de milhares de pessoas. Cada jogador produz novas personagens, lugares onde essas personagens vão morar, além de clãs e maneiras de fazer as coisas que não estão previstas nos manuais. É como se um ouvinte, ao comprar um disco de música, ganhasse o direito de recriar a música junto com outros compradores. A música original só seria um pretexto para novas invenções e novas amizades" (Vianna, 2004).
Interessante notar que, para alguns teóricos da comunicação, os designers de videogame on-line são considerados artistas de vanguarda, na medida em que suas obras podem ser constantemente recriadas. "O artista de amanhã será, sem dúvida, chamado a utilizar a autonomia desses 'seres' intermediários como novo meio de expressão, e poderá tirar partido da sua vida artificial para criar obras em constante gênese, processos quase-vivos, modificando-se sem cessar eles mesmos em função do contexto" (Quéau, 1993, p. 95).
Para Hermano Vianna (2004), tendo em vista o crescimento meteórico da indústria do videogame, pode-se vislumbrar que em um futuro não muito distante, esta forma de entretenimento ocupará o lugar que a música pop ocupa no imaginário mundial, e se tornará uma nova referência simbólica. "As novas gerações não mais estabelecerão conexões emocionais com referência a bandas que todos escutaram nas suas infâncias ou adolescência, pois ninguém vai ter escutado as mesmas coisas; seus pontos de encontros imaginários serão fornecidos pelas paisagens dos videogames. No lugar de 'Norwegian Wood', o escritor das próximas décadas vai ter que citar algo como 'The Frozen Throne', a terceira expansão do game 'Warcraft'. Todo mundo saberá de que sentimento ele vai estar falando" (Vianna, 2004).
Os jogadores de Everquest gastam, em média, 21,9 horas por semana conectados, o que dá em torno de 20% acordado num mundo virtual. Para Vianna (2004), não se trata de escapismo, de alienação, mas sim de exploração de novas possibilidades sensoriais e interativas.
"Mas o que me interessa mesmo nesses mundos virtuais todos é essa possibilidade, que os jogadores de 'Everquest' e outros games on-line exploram todos os dias, de viver várias vidas ao mesmo tempo, como se nossa vida 'real' não bastasse ou fosse muito pequena diante da capacidade de imaginação e interação social aberta que temos em nossa curiosa natureza humana" (Vianna, 2004).
Não seria difícil imaginar que, com todo este impacto econômico e mobilização de pessoas envolvidas na produção e na ponta final - jogando propriamente - que o videogame se tornasse uma nova área de estudos na universidade. É disso que falaremos no próximo tópico.
2.2, Videogame: jogo ou narrativa? um breve olhar sobre a construção de um (incipiente) campo de estudos.O campo de estudos já tem até nome. Chama-se "game studies". Vem se constituindo como um campo interdisciplinar, na medida em que busca o diálogo entre teorias e métodos da psicologia, antropologia, literatura e lingüística. Segundo Hermano Vianna (2004), há basicamente duas abordagens que estão pautando a produção acadêmica, representada pelos autodenominados narratologistas e ludologistas, respectivamente com representação maior nas universidades americanas e européias. "Os narratologistas recheiam suas análises com citações de formalistas russos e da poética aristotélica, pensando o game como obra literária, texto, ou como se fosse filme editado coletivamente. Os ludologistas, discípulos de Roger Caillois ou Johan Huizinga, pensam que os jogos têm especificidades muito próprias - o próprio jogar, como conjunto sempre aberto de possibilidades - e que tratá-los como mera narrativa é perder o essencial". (Vianna, 2004).
Há dois bons sítios para se entender o atual "estado da arte" dos "game studies". Um deles é o da revista eletrônica "The International Journal of Computer Game Research" 2, a primeira do campo com revisão de pares e que já completou três anos de existência, e que tem como principais objetivos elucidar "os aspectos estéticos, culturais e comunicativos dos jogos de computador". O outro é o "Videogame Theory" 3 do ludologista Gonzalo Frasca, professor da IT University of Copenhagen, editor da "Game Studies", pesquisador e desenvolvedor de games, como o September 12th. Em seu artigo "Ludologists meets narratologists: Similitude and differences between (video) games and narrative" (1999), Frasca expõe detalhadamente as duas abordagens. Tentarei, nos próximos parágrafos, sintetizar as principais colocações do referido texto, com o intuito de aproximar este debate dos estudos que se propõe a investigar os fenômenos da linguagem, da comunicação e da mídia relacionados com a Educação Física/Ciências do Esporte.
Frasca (1999) começa argumentando que a grande maioria dos estudiosos entendem os videogames como narrativa ou drama. "O fato é que os programas de computador compartilham muitos elementos com estórias: personagens, ações encadeadas, finais, cenários". Em contrapartida, poucos são os estudiosos que os entendem como jogos (uma contradição em termos?) e as razões, segundo Frasca, são que "os jogos tradicionais quase sempre têm recebido menor consideração do que outros objetos, como a narrativa, e por esta razão, encontram-se [estes estudos] fragmentados em diversas disciplinas acadêmicas, sem um desenvolvimento adequado". Tendo em vista este contexto, Frasca (1999) irá propor o termo "ludologia", como uma "disciplina que estuda as atividades de jogos e brincadeiras4".
Uma possibilidade seria a utilização do campo de estudos denominado "Teoria dos Jogos", cujas aplicações são bem desenvolvidas na economia, ciências políticas e teoria das organizações. Porém Frasca (1999), lembra que, justamente pelo fato destas teorias se basearem em "jogadores idealizados que possuem claros motivos e habilidades ilimitadas", a "teoria dos jogos tem raramente sido utilizada para o entendimento dos significados de como se joga o jogo de verdade".
Com base em estudos de Claude Bremond5, Frasca argumenta que há óbvias similaridades entre jogo e narrativa, como o fato de que ambos descrevem "ações de peso", ou, em outras palavras, "ações que, uma vez 'performadas´, adquirem um valor particular (vitória ou derrota)". Por outro lado, não se pode dizer que jogo e narrativa são equivalentes, pois o "primeiro se coloca como um conjunto de possibilidades, enquanto o segundo se caracteriza como um conjunto de ações encadeadas". O estudioso uruguaio dá o seguinte exemplo para clarear estas diferenças. "Para um observador externo, uma sessão de videogame de aventura se parecerá com um grupo de seqüências narrativas. De fato, é perfeitamente possível gravar em videotape uma sessão de videogame e mostrá-la para um público como um trabalho de narrativa (provavelmente o resultado não irá ganhar uma premiação do Oscar, mas mesmo assim será uma narrativa). Não obstante, o jogador não é um observador externo. Observadores são passivos, o jogador é ativo. Se o jogador não jogar, não haverá jogo, e, portanto, não haverá sessão. Jogar um jogo e assistir a um jogo são atividades completamente diferentes" (Frasca, 1999). Em linhas gerais, sua proposta não é desconsiderar a abordagem do videogame como narrativa, mas buscar "um melhor entendimento sobre as relações entre narrativa e videogames; suas similitudes e diferenças".
No Brasil, os estudos sobre videogame ainda são incipientes, embora já ocorram algumas iniciativas interessantes. Segundo Giselle Beiguelman, professora do curso de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, editora da seção "Novo Mundo" da revista eletrônica "Trópico" e especialista em arte digital, há uma relação bastante forte entre "desenvolvedores" de games e acadêmicos, especialmente nos festivais de arte digital, como o brasileiro FILE (Festival Internacional de Linguagem Eletrônica) 6. "Não diria que ela [produção teórica] nasce na academia, e sim que dialoga com a universidade, pautando-a e sendo pautada por ela. Há projetos, profundamente marcados pelas relações entre arte e ciência, que, pelo montante de profissionais e recursos que envolvem, demandam uma infra-estrutura impossível de ser inserida em um contexto de produção individual ou em diálogo com empresas de comunicação, que são particulares a outro tipo de pesquisa" (Beiguelman, 2004).
Além do programa acima mencionado, da PUC - SP, há um curso de graduação em games na Universidade Anhembi-Morumbi, em São Paulo, denominado "Design e Planejamento de Games"7, cuja meta é formar "profissionais para o desenvolvimento de games, nos seus mais variados formatos - jogos de estratégia, ação, aventura, esporte e RPG - para a aplicação em projetos de entretenimento, cultura, arte, experimentação, educação e treinamento corporativo para diversas plataformas, incluindo web e dispositivos móveis8". Há também um curso em nível de pós-graduação "lato sensu" no Unicenp (Centro Universitário Positivo) em Curitiba, com a duração de um ano e quatro meses, denominado "Desenvolvimento de Jogos para Computadores9".
Como se vê, ainda há muito que caminhar, tanto no Brasil, quanto no exterior. Por esta mesma razão, e pela quase inexistente produção teórica em nossa área, entendo que estas colocações acima são um interessante estímulo para os estudiosos das relações entre mídia e esporte, bem como das questões do lazer e do jogo, avançarem na direção de uma colaboração acadêmica interdisciplinar, na medida em que as abordagens podem ser complementares, e mais ainda, foram pouco exploradas pelos teóricos destas áreas. Passarei a seguir a discutir algumas aproximações possíveis entre estas teorias e a área de Educação Física/Ciências do Esporte, buscando verificar seus limites e possibilidades, enquanto área de estudos e campo de atuação profissional.
3. Videogame e educação física/ciências do esporte: uma possível aproximaçãoArgumentamos, há pouco, ser o videogame mais uma (nova) modalidade esportiva, por atender a pelo menos dois requisitos básicos, quais sejam, realização de competições internacionais e profissionalização de seus jogadores. Também nos referimos ao videogame como jogo, posição que compartilho com alguns autores que o vêem ora como ludus, ora como paidea, a partir de um referencial teórico que vem sendo chamando de ludologia. Ao mesmo tempo, quase inexistem trabalhos nas áreas de Educação Física/Ciências do Esporte que tenham os jogos eletrônicos como tema, não obstante haver algumas abordagens indiretas, particularmente aquelas que visam realçar a necessidade de se vivenciar a motricidade. Nesta situação, os games em geral são vistos como vilões, que supostamente tiram as crianças dos parques e praças, locais em que poderiam brincar em grandes espaços, desenvolver a sociabilidade em situações "face a face" etc. Não pretendo caminhar nesta direção, por não considerá-la produtiva, uma vez que também parto do pressuposto de que, assim como os jogos e brincadeiras de predominância corporal, também os games podem ser bastante educativos, e desenvolver capacidades interessantes - e novas - sem com isso querer dizer que não haja perigos. Em outras palavras, não se trata de uma posição "integrada", expressão consagrada por Umberto Eco (1984), em oposição a uma "apocalíptica", mas de procurar realçar algumas de suas possibilidades pedagógicas. É o que pretendo fazer a seguir.
Em trabalho anterior, propus que o videogame, os esportes radicais e o esporte telespetáculo constituem novas virtualizações do esporte, entendendo este processo como uma mutação de identidade deste conteúdo cultural. "Por exemplo, o que hoje chamamos de esporte não se esgota apenas em sua prática (atualização), mas abarca uma série de outras manifestações que caracterizam a sua 'mutação de identidade'... À prática, até há pouco, juntamente com a assistência in loco ao espetáculo, vêm juntar-se a assistência pela televisão, o videogame, a 'falação esportiva' (expressão cunhada pelo intelectual italiano Umberto Eco), e, mais recentemente, as listas de discussão pela internet" (Feres Neto, 2003, p. 73).
Emprestamos de Pierre Lévy (1997), a definição de virtualização para dar suporte ao entendimento de mutação do esporte contemporâneo acima explicitado. "A virtualização não é uma desrealização (a transformação de uma realidade num conjunto de possíveis), mas uma mutação de identidade, um deslocamento de centro de gravidade ontológico do objeto considerado: em vez de se definir principalmente por sua atualidade (uma 'solução'), a entidade passa a encontrar sua consistência essencial num campo problemático. Virtualizar uma entidade qualquer consiste em descobrir uma questão geral à qual ela se relaciona, em fazer mutar a entidade em direção a essa interrogação e em redefinir a atualidade de partida como resposta a uma questão particular" (Lévy, 1997, p. 17-8).
Uma das questões mais interessantes quando pensamos o videogame como jogo e/ou esporte se refere ao seu caráter desterritorializado, uma vez que sua prática não se encontra em um espaço puro, uma condição a priori necessária para se dar a experiência, como posto em Kant10. Pelo contrário, conforme já mencionamos, os jogos eletrônicos são construídos com base em imagens de síntese, o que não significa que não haja uma experiência interativa. A partir do desenvolvimento de novos consoles e da data suit11, é possível, com roupas e luvas especiais, "tocar" nos "objetos", mudá-los de lugar, criar outros. Com os eletrodos, pode-se "sentir" certas sensações que estão ou não sincronizadas com a própria movimentação. "O corpo, em seus menores gestos e movimentos, é efetivamente suscetível de ser interligado, com o mundo virtual no qual evolui. Uma nova relação entre o gestual e o conceitual pode ser imaginada. Podemos até falar de uma hibridação entre corpo e imagem, isto é, entre a sensação física real e representação virtual" (Quéau, 1993, p. 94). Para o autor em foco, estas possibilidades abrem novas perspectivas "no plano pedagógico, pelas ligações operacionais entre o caráter abstrato dos modelos, e a sua tradução em imagem tridimensional, sua simulação concreta. O corpo pode experimentar fisicamente sensações ou modulações que representam idéias teóricas. O corpo experimenta o inteligível de modo tangível" (Quéau, 1993, p. 96).
Como aquilatar a qualidade destas novas experiências interativas? Pierre Lévy (1999, p. 82-3), propõe parâmetros para a análise da potencialidade de interação de dispositivos comunicacionais, incluindo os jogos eletrônicos. Resumidamente, são relacionadas às possibilidades de personalização e apropriação da mensagem recebida, as reciprocidades da comunicação, a virtualidade em função de um modelo, a implicação da imagem dos participantes nas mensagens, e a telepresença (ver Quadro 1).
QUADRO 1. OS DIFERENTES TIPOS DE INTERATIVIDADE (Lévy, 1999, p. 83)
O que me parece interessante nesta análise dos diferentes tipos de interatividade é perceber os elementos que são mais ou menos interativos em uma ou outra mídia. Vejamos estas colocações de Levy acerca da comunicação por mundos virtuais (por exemplo, videogame em realidade virtual com vários usuários) e a comunicação telefônica. "A comunicação por mundos virtuais é, portanto, em certo sentido, mais interativa que a comunicação telefônica, uma vez que implica, na mensagem, tanto a imagem da pessoa como a da situação, que são quase sempre aquilo que está em jogo na comunicação. Mas, em outro sentido, o telefone é mais interativo, porque nos coloca em contato com o corpo do interlocutor. ... A voz de meu interlocutor está de fato presente quando a recebo pelo telefone. Não escuto uma imagem de sua voz, mas a voz em si. Por meio desse contato corporal, toda uma dimensão afetiva atravessa 'interativamente' a comunicação telefônica" (1999, p. 81).
Penso que estas colocações acima poderão servir de parâmetros para os estudiosos das relações entre mídia e esporte, especialmente na proposição de novas abordagens pedagógicas que lancem mão das novas tecnologias de comunicação, bem como mais um elemento para o que vem sendo chamado de uma "educação para a mídia". Segundo Betti (2003), urge uma educação física que considere a cultura corporal de maneira ampla, que leve em conta a multidimensionalidade do ser humano, bem como as suas representações veiculadas pelas diferentes mídias.
"Se cabe à Educação Física introduzir e integrar o aluno na cultura corporal de movimento há que se considerar que: i) a integração há de ser do aluno, concebido como uma totalidade humana, com suas dimensões físico-motora, afetiva, social e cognitiva, e ii) o consumo de informações e imagens provenientes das mídias faz parte da cultura corporal de movimento contemporânea, e, portanto, não pode ser ignorada; pelo contrário, deve ser objeto e meio de educação, visando instrumentalizar o aluno para manter uma relação crítica e criativa com as mídias" (Betti, 2003, p. 97-8).
Entendo que algumas ações que poderiam ir nesta direção são: 1. incluir nos currículos de graduação em Educação Física conteúdos relativos a uma "educação para as mídias", que englobassem os estudos sobre os jogos eletrônicos (game studies) junto com aqueles relativos à televisão, imprensa, rádio, e mesmo internet, na medida em que os primeiros também se constituem como mais uma mídia bastante pertinente aos fenômenos jogo e esporte, como já tivemos oportunidade de explicitar. 2. propor, dentro das instituições universitárias, a abertura de laboratórios que levem em conta pesquisas relativas a alguns aspectos inerentes aos games e mencionados neste trabalho, como estudos sobre interatividade, realidade virtual, narrativas, aspectos lúdicos, novas possibilidades pedagógicas, entre outros.
Finalmente, empresto de Pierre Babin (1989) os conceitos de mixagem e estéreo, que poderiam ser aplicados, também, para os videogames. No primeiro caso, teríamos a presença de videogames nas aulas de educação física, com o intuito de auxiliar no ensino de técnicas de movimento, por exemplo, a partir da utilização de dispositivos de realidade virtual, conforme verificamos nas colocações acima de Philippe Quéau (1993). Como afirma Betti em relação ao vídeo e a televisão, aqui também teríamos o problema da pouca vivência, por parte dos professores, com os jogos eletrônicos, pois, bem como os primeiros, os últimos "não são ainda extensões de nossas mãos, nossos olhos e ouvidos" (1998, p. 150).
No segundo caso, poderíamos vislumbrar a incorporação dos jogos eletrônicos nas aulas de Educação Física, em vários níveis, entre eles, questões ligadas a sua história, desenvolvimento de jogos (que contaria com interessantes aportes da biomecânica aplicadas em simulações que posteriormente são digitalizadas nos games), os sentidos e significados das diferentes modalidades de jogos (jogos de ação em primeira pessoa, jogos de estratégia, que podem ser offline ou on-line, com ou dois jogadores ou multiusuário no ciberespaço etc) e, claro, jogar os jogos. Em um segundo momento, sugerir aos alunos a produção de games, que evidentemente demandariam conhecimentos de informática, realidade virtual, bem como das demais modalidades esportivas, produzindo o que Betti afirma, em relação ao esporte telespetáculo, um terceiro e mais sofisticado nível de vivência do esporte em estéreo, pois caracterizariam um equilíbrio/fruição destas diversas vivências esportivas (1998, p. 151).
É certo que as colocações acima demandam algum aporte financeiro, bem como uma grande mudança de mentalidade dos agentes envolvidos, para serem implementadas. Não obstante, faço coro aos pesquisadores que vêm chamando a atenção para a necessidade de se atualizar as propostas pedagógicas da Educação Física, processo que não pode prescindir da incorporação das novas tecnologias de comunicação nas escolas, bem como na abertura dos "muros escolares" à estas inovações culturais. Finalizo com uma citação do Professor Mauro Betti (1998), que penso sintetiza bem estas colocações finais.
"A consciência crítica, a humanização, a elevação dos patamares de civilização só podem ser propostas às novas gerações com base no seu contexto de vida, na sua linguagem, nas suas novas formas de comunicação e compreensão do mundo, que incluem a tecnologia audiovisual. Na cultura esportiva das crianças e dos jovens, tomam parte tanto o esporte, como prática corporal "real", como as formas "virtuais" do esporte telespetáculo, dos jogos de videogame e computador" (Betti, 1998, p. 149).
Notas:
Imagem obtida através da síntese de matrizes numéricas através de algorítmos e cálculos algébricos. ... A imagem de síntese é dita virtual porque, ao contrário dos processos de captação mecânicos, ela não remeteria ao "real preexistente". A imagem de síntese é utilizada em videogames, simuladores de vöo, vinhetas, publicidade e em efeitos especiais no ämbito do audiovisual (cf. Glossário do livro "Imagem Máquina - ver referências bibliográficas)".
Ver em www.gamestudies.org
Ver em www.ludology.org
No original em inglês, games and play, que estamos traduzindo por jogos e brincadeiras, respectivamente. O próprio autor lembra as diferenças de entendimento destes termos em algumas línguas, e para dirimir qualquer dúvida, associa os termos em latim "ludus" (jogo) e "paidéia" (brincadeira), propostos por Roger Callois, em Caillois, Roger. Les jeux et les hommes. Le masque et le vertige. Cher: Gallimard, 1967.
Bremond, Claude. Lógique du récit. Paris: Editions du Seuil, 1973.
Ver em www.file.org.br.
Ver em http://www2.anhembi.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=187&sid=44. Acesso em 26/06/2004.
Conforme http://www2.anhembi.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=187&sid=44. Acesso em 26/06/2004.
Conforme http://www.posunicenp.edu.br/index.asp?strCurso=Info4. Acesso em 26/06/2004.
Para Kant, o espaço e o tempo são condições a priori de possibilidade da intuição empírica, da experiência do mundo. Ocorre que a imagem virtual, substrato dos videogames, constitui-se no próprio objeto da experiência, no seu tecido mesmo e a define exatamente (Quéau, 1993, p. 94).
Roupa de dados criados por Tom Zimmerman e Jaron Lanier, utilizadas para produzir a teledetecção dos movimentos do corpo nos sistemas de realidade virtual (cf. Glossário do livro "Imagem Máquina" - ver referências bibliográficas).
Referências
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http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1801200406.htm. Acesso em 25/06/2004.BETTI, M. A Janela de Vidro. Campinas: Papirus, 1998.
_______. Educação Física e Mídia: Novos olhares, outras práticas. São Paulo: Editora Hucitec, 2003.
FERES NETO, A. A virtualização do esporte e suas novas vivências eletrônicas. In: BETTI, M. (org.). Educação Física e Mídia: Novos olhares, outras práticas. São Paulo: Editora Hucitec, 2003.
FRASCA, G. (1999). "Ludologists meets narratologists: Similitude and differences between (video)games and narrative" http://www.ludology.org/articles/ludology.htm. Acesso em 25/06/2004.
LEVY, P. O que é o virtual. São Paulo: Editora 34, 1997.
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revista
digital · Año 10 · N° 88 | Buenos Aires, Setiembre 2005 |